31.1.07

Ainda perseguindo a beleza...



"Mais uma vez, então, isto", escreve ele no seu diário, "mais uma vez o amor, o fascínio por um ser, o profundo impulso para ele - há já vinte e cinco anos que não morava aqui, e isto deveria acontecer-me uma vez mais." (...) é para ele um momento de felicidade quando pode trocar algumas palavras com o rapaz que lhe acende o cigarro (...) e quando o rapaz lhe agradece com um sorriso amável. Nada mais se passa entre eles, mas de manhã à noite, e ainda em sonhos, os pensamentos do escritor giram em volta do "querido", a quem ele também chama - no perfeito sentido de Platão - "excitador" ou "enlouquecedor".

Acorda a meio da noite e, como escreve com orgulho e vergonha em simultâneo, experimenta um "violento ataque de poder e liberdade". Fica cada vez mais nervoso, desconcentrado, incapaz de trabalhar, dorme ainda pior do que habitualmente, tem de tomar valeriana e, "como calmante", lê Adorno, o que não lhe adianta nada, porque tudo para ele está "impregnado e dominado (...) pela privação enlutada do excitador, pelo sofimento, pelo amor, pela espera febril, pelos devaneios a toda a hora, pela dispersão e pela dor". (...)

Este amor é uma embriaguez, vê - e nomeia - o divino na beleza do amado, à la longue leva à criação, e procura e encontra a imortalidade, ou seja, na obra do escritor. (...)

Não tem a ver com o aspecto homossexual do caso - este Franzl poderia muito bem ser uma Franziska, se as preferências do escritor tivessem sido outras (no velho Goethe foi uma Ulrike). Não, trata-se da perfeita unilateralidade deste amor e da renúncia deliberada do escritor a empreender a mínima tentativa de o tornar recíproco. Na verdade, ele sabe muito bem que este amor (...) se revelaria muito rapidamente uma futilidade, um nada insípido (...) e, o que é mais importante ainda, se revelaria inútil naquilo que verdadeira e unicamente ele toma a peito: ele próprio e a sua obra. (...)

A morte será um tema? Ou será antes aquilo que não pode ser tema? Pode-se falar tanto e tão vivamente sobre o amor, e há tão pouco a dizer sobre a morte! (...)
Como é possível então que esta sinistra maçadora seja relacionada com Eros, que é louco, diga-se, mas mais virado para a alegria e para o prazer; e não só a título de pólo oposto (...), mas na qualidade de parceira? E como é possível que a iniciativa desta parceria não parta de Tanatos (...), mas do próprio Eros, o "enlouquecedor", o "excitador" que estaria pretensamente na origem de todo o impulso criador?


Extractos de sobre o amor e a morte de Patrick Süskind
Edit. Presença, pp. 21-33
[Esta associação entre a paixão de um velho escritor por um jovem Franzl, analisada por Süskind, e a de Gustav Von Aschenbach por Tadzio, criada por Thomas Mann e recriada por Visconti, é minha. O Süskind não foi tido nem achado. Foi assim, sem querer, que o autor de O Contrabaixo me ajudou a "ler" A Morte em Veneza.]

Mkt do livro #7

Em Portugal, o número de leitores é reduzido e as taxas de leitura e de compra de livros evoluiram muito lentamente na última década. Segundo dados de 2004 (Quantum/APEL), apenas 44% da população com idade compreendida entre os 15 e os 65 anos declara ser leitor de livros. O número médio de livros lidos por ano não chega aos 9.

Seria interessante centrarmo-nos no conjunto de livros mais vendidos, e aferir a correlação que existe entre o número de exemplares vendidos e o correspondente investimento em comunicação (melhor ainda, fazer uma análise qualitativa das diferentes estratégias de comunicação adoptadas, ponderando o target de cada livro).

Melancolia nos manequins #5

Montra de Natal, Paris

30.1.07

Pura beleza pura beleza...

O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS

XXIX


Não sei bem quando começou a acontecer. Acordo completamente ensopado em suor, inundado. A testa fica húmida mas não tenho febre. Sento-me na cama para me refrescar, tenho arrepios de frio. Ponho a mão na camisola e o peito gela, puxo-a, espremo, e correm fios de água. Mergulho os dedos na nuca, sinto os cabelos encharcados. Coço-me, esfrego-me, e o desconforto não passa. As costas e nádegas colam-se ao lençol. Dispo-me completamente, apetece-me atirar o pijama para longe, cheira a mofo. Cada dois, três dias, vai tudo para lavar. As fronhas fedem e ando com vontade de mandar queimar a almofada, deve estar podre por dentro, quando pouso a cabeça sinto aquele odor próprio dos asilos de velhos. Onde nasce este liquido pestilento em que me afogo quase todas as noites? Que tumor é este que comprimo adormecido?



Todas as semanas saiem novos Princípios: às segundas n'O Afinador de Sinos, às terças aqui, às quartas no Ponto.de.Saturação. Para ler todos e seleccionar um, abram O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS.

29.1.07

Mkt do livro #6


A promoção dos livros via internet aumenta em larga escala. Este canal permite maior fluidez na troca de informações, pelo que os editores têm todo o interesse em fomentar, e também em auscultar, as conversas dos leitores e potenciais leitores internautas. Mais de 50% dos livros são comprados por conselho de familiares, amigos ou conhecidos, e agora, uma elevada parte desses influenciadores residem na net. Em 2004, segundo os dados do estudo que a APEL encomendou à Quantum, 25% dos leitores de livros - com internet em casa ou no trabalho, procuravam informações sobre livros na internet.

Atento a essa realidade, Javier Celaya, editor e responsável de comunição do Grupo DosDoce de Comunicación, criou uma revista on line que nació en marzo de 2004 con el propósito de convertirse en un nexo entre todos los profesionales del sector de la comunicación, ya sean periodistas, responsables de comunicación institucional y empresarial, y el público en general interesado en la interacción entre la comunicación, el arte y la literatura. (...) Durante sus dos primeros años la revista ha publicado más de 100 artículos de opinión sobre el impacto de la cultura de masas en la sociedad, la pérdida de credibilidad de los medios de comunicación, la responsabilidad social de las empresas y el impacto de las nuevas tecnologías en el sector cultural, entre otros. Por otra parte, ha elaborado cerca de 300 reseñas de libros de reciente publicación.(link)

Mais recentemente, constatando o papel cada vez mais importante da internet como canal de informação e opinião dos seus leitores, a DosDoce lançou o Buscador Cultural que rastreia os conteúdos de mais de 150 blogues e de outros media digitais que normalmente publicam crítica literária, assim como o Agregador Cultural, com 50 blogues culturais, e que visa facilitar a tarefa de gestão da informação aos editores.

Saímos definitivamente do modelo piramidal de produção de informação, em que as estratégias de comunicação editoriais assentavam na produção de informação dirigida aos media tradicionais (notas de imprensa, envio de exemplares, entrevistas), para um modelo que contempla a ampla participação dos leitores e potenciais leitores na formação de uma opinião sobre o livro. Toda a informação produzida pelo editor deve ter um formato digital que facilite a divulgação. Uma das consequências da Web 2.0, ou da possibilidade dos usuários da rede poderem criar conteúdos, é também esta: já obrigou as empresas a rever as suas estratégias de comunicação. Como/quem pode/deve orientar depois o utente da web, de forma a que ele não se perca na maré de informações, é outra questão.

Melancolia nos manequins #4

Montra de Natal, Paris

28.1.07

Mais vale tarde...

... e ontem assistimos ao grande evento.
Oradores: Susan Sarandon, Tim Robbins, Jane Fonda, Rev. Jesse Jackson, ...

(link via Arquitectura das Palavras)

Ute Lemper

Sings friedrich hollaender
"Gesetz dem Fall" (o just suppose)

You know and I know you know
and you know I know you know
all that we both need to know
and we've known it all along
and since we both know
neither one will say "no"
Tell me what is it going to take to turn
knowing into a "yes"


ou

My day is gray,
your day is gray
Let us go together!

We both want to hold hands us
And we understand so right!




Arquivo: Ute Lemper I

Dois

Dois
Rui Lopes Graça
Coreógrafo e Director Artístico


“Dois” é um espectáculo para dois intérpretes, pensado a partir da ideia de Romeu e Julieta, em que o acessório é apagado, para enfatizar o essencial do encontro entre os dois.O texto, suporte e base da pesquisa do material coreográfico, é recortado e recomposto a partir do texto original recriando-se assim uma nova dramaturgia.

Romeu/Bruno Guillore e Julieta/Joana Bergano, num cenário magnífico-conceptual-um labirinto de João Mendes Ribeiro, com imagens de Pedro Sena Nunes que participam na narrativa. Música seleccionada por Ruy Vieira Nery para nos transportar à época (Falconiero, Monteverdi, Samuel Scheidt,...) mesmo que este encontro pretenda realçar a intemporalidade da peça de Shakespeare. A dramaturgia é de Joana Craveiro.

Difícil resistir ao encanto e entusiasmo de Rui Lopes Graça quando nos explica a coreografia, as opções, a abjecção pela violência em palco, que aos bailarinos fosse dispensado o uso de espadas e baionetas, e então o vídeo com imagens de guerra, a discordância com o suicídio de Julieta e então a vida, sem uma celebração, sem euforia, mas a vida. E a peça é bela___ ma non troppo.

Expressiva ma non troppo. Tocante ma non troppo. O efeito do cenário e da iluminação é perceptível, ma non troppo (só no vídeo com o making of do espectáculo imaginei o que poderia ter sido; o público sentado na plateia apreende o labirinto mas não capta em pleno o efeito visual).

Mesmo assim, belo este Dois.
E no Teatro Aveirense (co-produtor com o Centro Cultural Vila Flor), a sala não encheu, ficou-se pelo "compostinha". Às vezes gosto desta cidade, outras vezes não a percebo.

27.1.07

Mkt do livro #5

Por exemplo...


(Anúncio descoberto em La Bodega Recôndita)

Mkt do livro #4

A literatura não se confunde com os sinais exteriores de literatura. Um escritor não são "500 000 livros vendidos", "traduzido em mais de 20 línguas", ou "vai já na 7 edição".

Mas quantos livros não precisam de um sinal exterior apelativo para que mais leitores o descubram? A promoção dos bons livros é uma prioridade, e não pode ser exclusiva dos best sellers intraduzidos [intradução: importação literária sob a forma de tradução].

Melancolia nos manequins #3

Montras de Natal, Paris

26.1.07

Mkt do livro #3

O posicionamento no mercado e a imagem do editor de livros são também condicionados por todo o mix do produto (preço, qualidade gráfica, etc.), circuitos de distribuição e comunicação.

Centro-me agora no domínio da comunicação. Temos assistido nos últimos tempos a algumas inovações. A massificação do acesso à internet gerou novas oportunidades. Os sites das editoras estão mais activos, e algumas (novas, independentes) passaram a usá-lo como canal privilegiado de vendas. A blogosfera, através da pré-publicação de obras - a estreia aconteceu via Abrupto, o Miniscente tem agora uma rubrica regular - participa também nessa mudança. Cada um de nós, bloggers, é ou pode ser, também, um novo agente cultural ao serviço do livro (com o interesse e os riscos todos que daí possam advir).

Mas as estratégias de comunicação são normalmente fracas e pouco originais. Procura fazer-se notícia das sessões de apresentação do livro, tarefa mais ou menos facilitada segundo o grau de notoriedade e imagem do autor, o seu capital social, ou seja, a estatuta mediática dos seus amigos, nomeadamente o apresentador da obra. Trabalha-se para e aguarda-se a saída das notas e críticas nos media, em particular na imprensa escrita. Multiplicam-se sessões de autógrafos. Pontualmente arrisca-se o investimento em publicidade directa. Mas sobretudo, diz-se, se o livro é bom, vende por si. O boca a orelha faz o sucesso. Depois, os prémios, a presença em feiras internacionais, enfim, a consagração.

Os preconceitos associados à promoção do livro são imensos. Um bom escritor não precisa de ir à televisão. Os escritores não fazem grandes audiências televisivas. Os escritores são uns chatos. Um livro não é uma mercadoria, pelo que um marketing agressivo pode até gerar um efeito perverso e "desqualificar" uma obra. Quem aposta no marketing não aposta na arte da escrita. O marketing é para a literatura light. São imensas as nossas verdades absolutas.

Em França, país onde vivi alguns anos, os escritores já consagrados, os novos escritores que são ou talvez venham a ser bons, eram presença constante nos écrans televisivos, eram convidados para programas que passavam no horário nobre. O lançamento de um livro era notícia e, se casos como o interesse suscitado por "A vida sexual de Catherine M." de Catherine Millet, não abonam a favor do critério, a verdade é que raramente assisti a debates sobre livros polémicos sem enquadramento da obra, ou sem uma contra-argumentação objectiva. O escândalo pelo escândalo, apoiado em fotos e breves citações, não servia editores de jornais.
Nas rentrées litteraires do Outono, em que, em média, mais de 500 livros são lançados todos os anos, editores e autores batem-se por um lugar de destaque nos media. O lançamento de um novo livro de Michel Houllebecq, um dos melhores escritores da actualidade, é sempre acompanhado de uma enorme (e distinta) polémica. No seu caso há quem fale de "marketing da abjecção". Mas não é preciso chegar a tanto. Os prémios literários e suas novelas são seguidos com expectativa, os media suscitam e jogam com o interesse do público.

Por cá, é o marasmo.

Sem complexos, sem medo de que a publicidade seja mais interessante do que o livro, eu gostaria de assistir a lançamentos mais criativos.

Melancolia nos manequins #2

Montra de Natal, Paris

A recusa dos carniceiros #3

"Ano em que o sr. Théodore Taunay publica, no Rio de Janeiro, Idilles Brésiliennes, escrito em versos latinos; e o sr. Wilhelm von Humboldt, conhecido filólogo alemão, apresenta, ao ensejo de seus estudos sobre a antiga língua dos javaneses, interessantes conclusões sobre a heterogeneidade da linguagem e sua influência no desenvolvimento intelectual da humanidade; segundo o conhecido autor de Prufung der Untersuchungen uber die Urbewohner Hispaniens vermittelst der vaskischen Sprache, o homem passou a andar erecto para poder falar melhor, pois com a face voltada para o solo não podia emitir as palavras com a necessária clareza.
Provavelmente nem todos os deputados conhecem essa original teoria do sábio alemão, mas, conscientes de que postando-se curvados como certos macacos suas vozes não seriam ouvidas com nitidez, sempre se põem de pé para fazer seus discuros. De pé, portanto, e estendendo à frente um dos braços, como, se assim ajudasse a transmitir os sons emitidos por seu aparelho fonator pelo inteiro recinto da Câmara, Paula Calvalcanti fala pausadamente: "Tem-se dito em geral: a sociedade não tem o direito de impor a pena de morte; mas também qualquer homem não deposita na sociedade o direito de o prenderem, e a sociedade toma esse poder. (...) Não duvido que o sentimento de humanidade exigisse a extinção da pena de morte; mas o poderemos nós fazer no Brasil, com costumes tão bárbaros?(...)"."


Extracto de A recusa dos carniceiros, in Romance Negro e Outras Histórias, de Rubem Fonseca
Ed. Campo das Letras, pp 136-137

Melancolia nos manequins #1

Montra de Natal, Paris

25.1.07

Mkt do livro #2

Talvez a edição-como-uma-arte implique, nos tempos que correm, conciliar o saber dos Gallimard ou Feltrinelli do século passado com o domínio da Teoria dos Jogos de John Forbes Nash. Como encontrar um ponto de equilíbrio em jogos de estratégias para múltiplos jogadores!

Mas não compliquemos. Fixemos o objectivo de um simples e sólido catálogo de autores em que se equilibrem as duas necessidades, qualidade-arte e sustentabilidade económica. E que o esforço diligente e minucioso de selecção de obras, apoiado num imenso sentido de missão, a que não pode deixar de se acrescentar uma distintiva qualidade, produzam um posicionamento diferenciado no mercado. Para sobreviver, o lema: unrest in peace. E o editor (os editores) seja premiado pelos leitores com a sua preferência. Isto é bom marketing. e não polui.

Sem vos querer levar pela cintura...

Diz Olavo Aragão: "Tenho novas revelações sobre o caso Rute Monteiro. Foram-me enviadas do Médio-Oriente e estou a ponderar se as coloco online ou não. Vou decidir até amanhã (ou nem tanto...)."

Decidiu... nem tanto... Ontem mesmo saiu um novo capítulo da novela. Pessoas mais sensíveis devem abster-se de ver as imagens dramáticas. Digo isto, mesmo sabendo que o enforcamento de Saddam Hussein se tornou uma atracção no You Tube. Percebo mal o nosso novo mundo. E também não sei como é que este drama que envolve a jornalista portuguesa vai acabar. Fonte segura afirma que, na melhor das hipóteses, só em Março poderei compreender. Até lá, um intervalo de tempo. Mas esperar não é um verbo fácil.

A recusa dos carniceiros #2

"Retornamos a 1830. Acaba de ser editado o romance Le Rouge et le noir do sr. Marie-Henri Beyle, que assina Stendhal, baseado na notícia do guilhotinamento de um criminoso passional publicada na Gazette des Tribunaux. Ainda em França, a estreia da peça Hernani, ou L'honneur castilhan, do sr. Victor Hugo, provoca na plateia um conflito entre adeptos do classicismo e do romantismo; lutando pelas tropas românticas foi visto o poeta sr. Théophile Gautier, vestido com "um colete cor de cereja e calças verde-água". Notícias de Weimar dizem que o sr. Johann Wolfgang von Goethe está a terminar a segunda parte do seu monumental poema dramático Fausto, "uma fantasmagoria teatral filosófica". Estamos no Rio de Janeiro, de volta, mais uma vez, à Câmara Dos Deputados.
(...)
O sr. Ferreira França rejeita o projecto por "ver nele uma hidra de crimes e culpados! As penas devem ser reduzidas ao menor número possível. Todo legislador que a cada falta impõe uma pena, que só quer achar criminosos, não é certamente digno do nome de homem; é um tigre digno de só legislar para os animais ferozes"."


Extracto de A recusa dos carniceiros, in Romance Negro e Outras Histórias, de Rubem Fonseca
Ed. Campo das Letras, pp 133

Eu voto SIM #5

"Maria de Belém Roseira, deputada do PS, vai bater-se pela consagração na lei de um “período de aconselhamento obrigatório” às mulheres que queiram abortar, para que possam ponderar a sua decisão e serem informadas das alternativas..." (continua aqui)

Em Outubro escrevi:
(...) Outro aspecto que me desconcerta é próprio conceito que se debate, a despenalização do aborto. Como se pode despenalizar sem legalizar? (...) Eu não pretendo apenas que as mulheres deste país deixem de cometer um acto ilegal ao optar por, em determinado momento, fazer uma interrupção voluntária de gravidez. Parece-me mesmo óbvio que todos desejamos muito mais do que isso. Queremos um quadro legal que sustente a prática da IVG com segurança e responsabilidade. A garantia de estabelecimentos que prestem bons cuidados de saúde é importante, mas o clean cirúrgico não é tudo. É preciso conhecer princípios e limites, para além da duração máxima de dez semanas de gravidez.
Quantas IVG poderá uma mulher requerer? (questão fundamental porque esta prática não pode ser encarada como um novo método anticonceptivo) (e como será exercido esse controle?)
Como/quem decide quando se trata de uma gravidez não desejada de uma menor de idade?
Haverá um período de tempo (número de dias) definido para confirmação da decisão? Existirá uma "comissão de apoio" ou o pedido de IVG será aceite sem qualquer abordagem psicológica ou social aos diferentes casos? (...)

Eu achava que não era possível conceber a despenalização do aborto sem a discussão destas questões. Quando finalmente alguém o faz, no caso, Maria de Belém, é claro que fico satisfeita___ e ao mesmo tempo, preocupada. Como é possível chegar a menos de um mês do referendo sem deixar claro que votar pela despenalização não é, porque não pode ser, adoptar uma atitude de laissez faire-laissez passer!

24.1.07

Mkt do livro #1

No campo da edição de livros, todas as abordagens reflectem, em maior ou menor grau, nunca em estado puro, estas duas posturas: a que encara o livro como uma forma de arte e a que trata o livro como uma mercadoria. A primeira anda moribunda devido à falta de sustentabilidade económica; a segunda, não é aconselhável que se desenvolva (ainda mais), sob pena de perdermos excelentes obras que nunca serão editadas dado o universo restrito de leitores a que se dirigem. Alguns editores queixam-se das novas regras editoriais (que nem são assim tão novas) e justificam a venda de best-sellers e livros mediáticos como um recurso que permite posteriormente a publicação de obras mais "arriscadas". Alguns destes editores fazem-no com desencanto e desilusão, outros apenas com pragmatismo. Mas tento resistir ao preconceito de ver o ideal da arte-pela-arte conspurcado ao mínimo sinal de edição-um-negócio.

O que gostaria era de ver as obras de Júlio Cortázar editadas, Os dados estão lançados de Jean-Paul Sartre, re-editado, e juntem a vossa à nossa voz, com as vossas caras e esquecidas jóias da coroa.

A recusa dos carniceiros #1

"Estamos em Maio de 1830, na Câmara dos Deputados. O sr. António Pereira Rebouças, em seu discurso, lembra do que aconteceu há poucos anos, em 1825, quando o carrasco que deveria enforcar o bem conhecido major Sátiro se recusou a fazer a sua estreia como algoz. Sátiro teve que ser fuzilado. Uma semana depois o verdugo recalcitrante foi executado por um carniceiro.
(...)
Podem faltar carrascos, mas nunca faltarão espectadores. O sr. Rebouças sabe disso, mas não irá comentar tais circunstâncias. Na França comprava-se (ou compra-se) um condenado à morte em uma cidade para que ele fosse executado noutra, que por falta de criminosos ficara um tempo muito longo sem oferecer ao povo um espectáculo dessa natureza. A pena de morte, pela função educativa que lhe atribuem os seus defensores, deve ser levada a efeito em local amplo que facilite a observação do maior número de pessoas.
(...)
Ao infeliz que não pode assistir à execução resta ouvir, invejoso e inferiorizado, a descrição de como o condenado chorou como um poltrão e pediu misericórdia; ou então como, opostamente, manteve a alma negra e seu coração perverso sob controle; (...).
As mulheres, está comprovado, ficam ainda mais excitadas com o hediondo espectáculo. Um réprobo estrebuchando pendurado pelo pescoço é algo que tem que ser visto pelo menos uma vez na vida. Assunto para muitas tertúlias."


Extracto de A recusa dos carniceiros, in Romance Negro e Outras Histórias, de Rubem Fonseca
Ed. Campo das Letras, pp 129-130

Eu voto SIM #4

SIM NO REFERENDO, em forma de blogue, até o dia 11 de Fevereiro. Depois, em forma de voto, sff.


Participantes: Carlos Abreu Amorim (CAA), Daniel Oliveira, Fernanda Câncio, Helena Matos, Ivan Nunes, Joana Amaral Dias, João Pinto e Castro, Luís M. Jorge, maradona, Miguel Abrantes (CÂMARA), Miguel Vale de Almeida (MVA), Pedro Adão e Silva, Ricardo Araújo Pereira (RAP), Rui Tavares, Vasco M. Barreto (VMB), Vasco Rato, e outros virão...

Sound Poetry

Depois da série Big Ego (II, III, IV, V, VI, VII, VIII) e das óperas de Robert Ashley, o conceito de Sound Poetry - Música Fonética - Escrita Poética Acústica já não é estranho... mas ainda pode ser assim: Larry Wendt e Stephen Ruppenthal.

Para contextualizar, leiam o próprio Larry Wendt, Narrative as Genealogy: Sound Sense in an Era of Hypertext.

Big Ego VIII

Larry Wendt - How to Cook a Duck

23.1.07

O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS

XXVII

Encontraram-se no supermercado Atach. Numa secção qualquer ela reparou nele. ou que ele reparara nela. Talvez fosse quase impossível não se encontrarem novamente. Cruzaram-se muitas vezes, já sorriam. Na caixa ele ficou atrás dela. Enquanto os artigos deslizavam, continuavam a sorrir. De vez enquando, ela fazia de conta que se esquecera dele. E depois voltava a fixá-lo, olhos nos olhos, e sorriam. Espreitou o cesto dele. Uma embalagem de um pré-congelado, pão e bebidas. Vivia sozinho. Ele percebeu, fixou as compras dela. Legumes, fruta, leite com suplemento de cálcio, danoninhos, fraldas, etc.. Quis soltar uma gargalhada quando viu a expressão que ele fez involuntariamente.

Estava quase a chegar a casa quando ele passou por ela. Virou-se completamente e sorriu-lhe de novo, divertido por a surpreender. Ela não reagiu e ele acelerou o passo. Quando dobrou a esquina viu-o novamente. Estava parado em frente à sua porta, procurava as chaves. E foi com as chaves na mão que a viu aproximar-se e tirar também as chaves. Ele abriu-lhe a porta. Ela chamou o elevador. Ela carregou no botão com o número 4. Ele marcou o número 5. Olharam tímidos um para o outro. Mora aqui? Há dois meses. Não é francês? Não, turco. E você? Portuguesa. Então vamos encontrar-nos mais vezes. Sim, somos vizinhos. Casada? Sim. Eu só tenho um cão. Se ele ladrar de noite não se zangue. Não. E se for o bébé a chorar, também não se zangue. Não, ponho música.


Todas as semanas saiem novos Princípios: às segundas n'O Afinador de Sinos, às terças aqui, às quartas no Ponto.de.Saturação. Para ler todos e seleccionar um, abram O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS.

22.1.07

Duas perguntas para leitores e não-leitores atentos

Quando ouvem falar de "estratégias de marketing do livro" (não estou a falar de estratégias editoriais, que esse é um assunto mais abrangente), em que actividades ou agentes, nomeadamente em matéria de comunicação, pensam?
Recordam algum lançamento (de livro) em particular?

Não pensem muito, soltem o "top of mind", isto é, aquilo que vos ocorre de imediato.

Assim são as histórias

"Enquanto bebe reflecte que Calvino está certo quando sintetiza uma verdade, por todos conhecida, com o axioma: Quem comanda a narrativa não é a voz, é o ouvido. Sua ouvinte, sua adorável ossuda Clotilde, entendeu a história que ele contou de maneira pessoal e única. Ele disse uma coisa, ela ouviu outra. Assim é a vida. Assim são as histórias."

Extracto de Romance Negro, in Romance Negro e Outras Histórias, de Rubem Fonseca
Ed. Campo das Letras, pp. 185

Eu voto SIM #3

Os opositores da despenalização da interrupção voluntária da gravidez raramente se centram no que está em causa no próximo referendo: a mudança da actual lei sobre aborto, lei essa que prevê uma pena de prisão até 3 anos. Preferem desvirtuar o debate em questões sobre o que é a vida, sobre o que é o ser humano, sobre os impostos, sobre o juramento de Hipócrates, questões que podem decorrer quando se fala de aborto, mas que não são o cerne da questão. O que se vai referendar no dia 11 de Fevereiro é saber se os/as portuguesas concordam que uma mulher que decida interromper uma gravidez até às 10 semanas, deve ou não, ser criminalizada.

Big Ego VII


Laurie Anderson


Three Expediences

20.1.07

Foi Deus!

É estranho. Ainda há dias dizia que a blogosfera me alertava muitas vezes para a ocorrência de novos factos, mas que nunca tinha seguido nenhum acontecimento (que considerasse relevante) exclusivamente via este canal. O desaparecimento de uma cidadã portuguesa no Líbano é matéria relevante e de interesse público. Tenho procurado informação nos media tradicionais. Só eles têm meios para explorar, e às vezes aprofundar, um caso com estes contornos. Parece-me urgente a necessidade de confirmar ou (preferencialmente) desmentir a notícia lida no Freelance. Compreendo a cautela, apesar de Olavo Aragão ser um jornalista conhecido dentro da classe. Mas estou quase no Basta! Para ficcionar Guerra e Paz temos o romance! A jornalista Rute Monteiro não é uma invenção da blogosfera... a não ser que todos estes posts tenham surgido ao mesmo tempo por inspiração divina! Como cantava a Amália, Não sei, não sabe ninguém...


Encantamento V


Fotos MRF - 2006

O impacto da blogosfera

... na vida dos bloggers é o tema da Mini-Entrevista concebida por Luís Carmelo. A amostra já ultrapassa a centena. No seu Miniscente podemos ler todas as semanas as respostas ao "inquérito". Na semana que passou, saiu a minha___ que agora fica aqui "arquivada".

1 – O que lhe diz a palavra “blogosfera”?
É um admirável mundo novo, mesmo se fica nos antípodas da fábula criada por Aldous Axley. É um mundo pouco organizado, onde impera a vontade livre individual, quase sem condicionamentos de estilo, forma ou conteúdo. Tem as suas castas, mas o sistema que as cria nada tem de científico. Se me ocorre esta associação, é apenas pela rapidez com que a inovação “blogosfera” se impôs.
Em 2004, quando me sugeriram que criasse um blogue, resisti. Acho que associava a blogosfera a um ambiente frequentado por informáticos e adolescentes (alguns tardios). Nos jornais, teria lido qualquer boa referência à escrita de um ou outro blogger, mas mantinha a desconfiança. Criaram-me o blogue, ainda me lembro do email com as instruções, “blogger.com/start, por agora não mexas no template”, etc..
Talvez por causa dessa iniciação, persisto em olhar a blogosfera com um conjunto de indivíduos isolados, movidos pelas mais diversas motivações. Existem empresas, associações, embaixadas, várias entidades colectivas a gerir blogues, mas nas leituras que faço procuro sempre a “reason-why” do indivíduo. Cada um cria depois uma teia de relações virtuais, uma pequena “comunidade”. A blogosfera, hoje, é um conjunto infindável de pequenas comunidades e, quando passeio por lá, viaja comigo um sentimento de pertença ou de estranheza. Sei quando estou dentro da “minha” comunidade e quando entro em território desconhecido. Fascina-me, é claro, o visto Schengen comum que dá acesso a toda área. Nenhum outro meio permitirá maior e mais rápida liberdade de acesso e circulação.
A “blogosfera”, por permitir uma nova forma de expressão, massiva e mais livre; por oferecer entretenimento e informação à la carte tem ainda o mérito de ser uma das raras inovações de pendor tecnológico que não desumaniza. Ela serve de facto o Homem.
Penso nas motivações base que nos movem: hedónicas, oblativas e de projecção pessoal. Que outra actividade ou serviço é tão cabal na sua satisfação?

2 - Qual foi o acontecimento (nacional ou internacional) que mais intensamente seguiu apenas através de blogues?
Acho que nenhum. Os blogues têm servido sobretudo para me “avisar” da ocorrência de qualquer acontecimento e para perceber os diferentes estados de espírito ou sensibilidades que um mesmo acontecimento pode gerar.

3 - Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?
O Divas & Contrabaixos aconteceu quando comecei a colaborar com um jornal regional. O blogue tem o nome da rubrica do jornal. Mas logo percebi que o jornal e o blogue tinham ritmos próprios. O D&C descolou-se da sua origem e passou a ser um espaço (para uma experiência) pessoal. Mas continuo a associar o blogue à minha inserção na cidade, Aveiro. Acabava de chegar e foi também através dele, ou por causa dele, que passei a viver com mais intensidade a cidade. Fotografei, pesquisei, conheci pessoas ligadas ao “fazer a cidade” e o blogue permitiu-me espalhar essa energia.
Com a minha entrada na blogosfera, descobri também “o zapping blogosférico”. É um entretenimento delicioso e que vicia. Nos primeiros tempos, era capaz de ficar horas em frente do computador, a navegar e a “blogar”; depois tornou-se um hábito mais moderado, mas ainda um hábito.

4 - Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?

Talvez alguns blogues tenham um editor-chefe na penumbra mas, por princípio, a blogosfera é editorialmente livre.
Isso não significa, é claro, nenhuma grande transformação cultural ou social. Transparência e liberdade de expressão são condição, mas não bastam. A blogosfera poderá oferecer conteúdos e prismas mais diversificados do que os media tradicionais, garantir o direito ao contraditório, dar voz ao cidadão anónimo, mas a qualidade das análises e da escrita e, sobretudo, a responsabilidade dos autores, não estão asseguradas. Enfim, será um mal menor num mar imenso de possibilidades. Mas questiono-me sobre o que fazer quando me deparo com blogues que promovem preconceitos extremistas ou como travar boatos e injúrias. Como A. Huxley, num outro contexto, acho que “o abençoado intervalo entre a excessiva falta de ordem e o pesadelo da ordem em excesso não começou e não dá sinais de começar”. Vamos dizer que a blogosfera traduz e revela apenas o que somos, condicionados e imperfeitos por natureza, admiravelmente “novos” todos os dias.

Eu voto SIM #2

Eu voto SIM #1

19.1.07

Jornalismo e blogosfera II

Falei do blogue de Olavo Aragão, Freelance. Se já passaram por lá, puderam ler a notícia.

Nos primeiros dias de Outubro de 2006, foi sequestrada no Líbano uma jornalista portuguesa, de nome Rute Monteiro, residindo há alguns anos no Brasil (no estado de Mato Grosso do Sul). (...) Estranhamente, o caso raramente mereceu atenção dos media e dos governos envolvidos, nomeadamente o português. Já em Dezembro de 2006, um blogue árabe, o "Lâ Tadhad" ("Não Partas!" - http://latadhab.blogspot.com), referia: "On October 3th a portuguese journalist was taken hostage in Libanon. According to some arabic sources, namely blogs, she was taken to Afghanistan" (No dia 3 de Outubro, uma jornalista portuguesa foi raptada no Líbano. De acordo com fontes árabes, nomeadamente blogues, teria sido levada para o Afeganistão).
Ao longo de Janeiro de 2007 nada mais se soube acerca de Rute Monteiro.


Alguém me explica o silêncio que reina nos media?

Jornalismo e blogosfera

Quem viu o último Clube de Jornalistas (RTP2) pôde perceber nas opiniões do director-adjunto do DN, João Morgado Fernandes, um enorme desconforto, quase temor, em relação à web como canal emissor de informação. A necessidade de defender o estatuto do jornalista, de erguer o código deontológico, etc. sobrepôs-se a uma visão mais abrangente da blogosfera e do potencial da Web 2.0. No mesmo debate estiveram presentes Paulo Querido e Rogério Santos. Gostei particularmente de ouvir o autor do Indústrias Culturais. Mais uma vez, não exactamente sobre a Web 2.0. Dizia ele que vivemos numa sociedade de abundância, mas que não existem canais intermédios que orientem sobre as melhores escolhas. A partir de uma pesquisa no Google sobre a palavra Kant, referia, podemos obter milhares de textos. Mas como saber qual é o melhor? Quem pode enquadrar, reflectir com mais profundidade sobre a enorme quantidade de informação disponível, fazer a mediação necessária?
Rogério Gomes concluía que esse deveria ser o papel dos jornais, a grande missão da imprensa escrita.


Andava eu a pensar neste assunto e eis que encontro mais um blogue de um jornalista, Olavo Aragão. Decididamente, a relação entre o jornalismo e a net, ou mais especificamente, entre o jornalismo e a blogosfera, constitui tema para muitos debates. No seu Freelance, Olavo Aragão reune alguns bons artigos (ou posts?) sobre esta matéria. (E quem dizia que a blogosfera não pode existir sem links...?) Vão até !


Adenda: No blogue de João Morgado Fernandes, french kissin', encontrei uma resposta às críticas que lhe têm sido feitas. Viva o direito ao contraditório!

Adenda II: Não, caro João Morgado Fernandes, eu não odeio os jornalistas, pelo contrário, respeito o seu trabalho e atribuo (em geral) mais credibilidade às notícias veiculadas pelos jornais do que às que correm pela blogosfera. Gostaria mesmo de perceber maior distância e mais sentido crítico nas leituras que fazemos na blogosfera. É relativamente fácil a manipulação. Lembro-me de um suposto novo logotipo da Casa Pia gerar imensos comentários indignados... e na verdade tratava-se de uma colagem.
Se neste post leu "ódio aos jornalistas", não se admire que tenha transmitido "desconforto, quase temor, em relação à web" no Clube de Jornalistas. Pode ser questão de estilo, mas exacerba tudo, comportamentos e impressões. E, como telespectadora, permita-me manter a opinião, a minha, de que foi redutor quando se referiu à web 2.0. O conceito da wikipédia, o You Tube, casos que referiu, merecem ser discutidos para além da questão do rigor da informação. Enfim, como anda nisto "há uma data de anos" sabe melhor que eu. Mas, naquele dia, esqueceu-se.

Desafio no Ministério

FORMAS, DEGRAUS, ÁGUA, ESPELHO, SEXO, MORTE, PELE, ECO, RETALHOS, AUDÁCIA, TELA, NEGRUME, CAFÉ, GESTOS, NORTE, VOZ, VIDA, PEDRA, SENTIDOS.

Nunca uma ordem ministerial foi tão poética. Apetece mesmo cumprir!

Todas as formas que a saudade veste, os retalhos da vida que ela vai buscar, os gestos, os medos, chegam até mim, como se os arrancasse à tela.
Passei de lado, atrás das colunas, adivinhando algo que me trouxesse o eco da tua morte. Mas depois um esgar. E era um espelho. Os degraus que subi, um a um, eram já uma ponte. Ouvi água correr em todas as direcções. E talvez a tua voz.
Estou diante da tela. E então sei que por um momento, por um prolongado momento, os teus sentidos se amotinaram, quebraram a pedra que te deu consistência e norte e que, afastado o negrume, libertaste gota a gota a pele que cheirei e toquei. Respiro-te, e naquele canto onde pintaste a mancha castanha, há um odor a café e torradas pela manhã. Ali, à direita, os traços cruzam-se e suas raiva e trabalho. Mas aqui, frente ao meu peito, sabes a sexo e sussuros.
Voltei-me. Marca-me sempre a audácia que nunca tive. para rasgar-te todo.

18.1.07

Encantamento IV

Este cão e esta cabra (que sofre de artrose) são inseparáveis. Conheço-os há uma série de anos. Armada em psiquiatra de animais, convenci-me de que na origem desta relação tão particular, só pode estar o facto de viverem num lugar onde os cavalos são o centro de todas as atenções. Já tentei abordar a questão com os pais adoptivos mas eles preferiram centrar-se nos meus traumas de infância ;)

Haut du Roi - França - MRF 2005

A Voz Humana

A Voz Humana de Jean Cocteau
encenada por Carolina Rodrigues

Quinta 18
22h no auditório do Mercado Negro (entrada livre)


Encenação do mítico e devastador monólogo escrito em 1930 por Jean Cocteau e aqui interpretado por Carolina Rodrigues, no papel de uma mulher que mantém ao telefone uma conversa atribulada, simultaneamente terna e dolorosa, com o seu antigo amante.

"..........................Claro que é preciso desligar, mas custa muito........................Sim. Ter a ilusão de estarmos abraçados um ao outro e de repente interpor caves, esgotos, uma cidade inteira entre nós..........................................Lembras-te da Ivone, que não podia conceber como a voz passava através de um fio tão torcido? Pois tenho o fìo em volta do pescoço. A tua voz em volta do pescoço...................."


Adenda: A encenação de "A Voz Humana" foi adiada para o próximo dia 23 de Janeiro.

Dust

Antes da Laurie Anderson, esteve no ar um extracto desta ópera. Ontem, esqueci-me de lançar o post. Ei-lo, para quem quiser consultar e continuar a saborear a amostra.


DUST, an opera by Robert Ashley and Yukihiro Yoshihara (video direction) whose imaginary setting is a street corner anywhere in the world, where those who live on the fringes of society gather to talk, to each other and to themselves, about life-changing events, missed opportunities, memory, loss and regret.

Five "street people" recount the memories and experiences of one of their group, a man who has lost his legs in some unnamed war. As part of the experience of losing his legs, he began a conversation with God, under the influence of the morphine he was given to ease his pain. Now he wishes that the conversation, which was interrupted when the morphine wore off, could be continued so that he could get the "secret word" that would stop all wars and suffering. (90 minutes)


1. Friends (15:00)
2. Theosophy (9:57)
3. The Priest (9:57)
4. If There's Anything... (9:57) [excerpt]


5. The Little Gun (9:57)
6. Friends (2:53)
7. No Legs (8:30)

Disc 2
1. Don't Get Your Hopes Up (6:02) [excerpt]


2. Just One More Time (6:56) [excerpt]

3. It's Easy (4:36)
4. The Angel of Loneliness (5:04)

17.1.07

Miniscente Mini-Entrevista

O Miniscente tem estado a publicar uma série de entrevistas acerca da blogosfera e dos seus impactos na vida específica dos próprios entrevistados.
Hoje o convidado... sou eu.

Se eu fosse divorciada...

... diria qualquer coisa assim no final do dia, ao estilo dele:

1. Hoje comprei duas revistas de culinária no supermercado. Normalmente nem costumo olhar para essas publicações. Comprei-as não sei porquê. A verdade é que nunca me lembro de as consultar quando dou um jantar.
2. Ia eu a desfolhá-las muito concentrada - afinal há pratos simples e saudáveis, com ingredientes normais - quando o elevador parou no segundo andar e entrou alguém.
3. Levantei os olhos à espera de encontrar o baixinho do apartamento 1 com o cão, o rapaz do apartamento 2 com o cão, a senhora do apartamento 3 com os três filhos e as dores de costas, mas dei de caras com um George Clooney (este era feito de carne e osso, o outro só aparece em papel e ocasionalmente numa tela). Corei insanamente.
4. Era um Clooney um pouco desorientado mas muito conversador, que subiu comigo, para depois voltar a descer... sozinho.
5. Não sei das revistas.



Como não sou divorciada, a história acaba aqui. Eu (só em pensamento) – merda.



Adenda: O haloscan não regista o número de comentários neste post. Expliquem-me lá porquê, mas como se eu fosse assim muito burra...

São Gonçalinho III

16.1.07

Encantamento III


Aveiro
Fotos MRF - 2006

O LIVRO DOS BONS PRINCÍCIOS

XXIV

Não faças milagres por amor de mim
Rainer Maria Rilke


Tenho tentado ficar-em-pé contrariando os sentidos que se inclinam. Amas-me com ódio e sou tão pequena que só em bicos de pé o teu olhar não me esmaga. Imagino-te o céu e o vento e ergo-me sobre ti para que o meu rosto não sombreie.
Ficar-em-pé contrariando os sentidos que se inclinam. Silencioso, aproximas-te como um animal feroz e sou corça que salta antes de ficar encurralada. Marro contra a tua fronte para que me temas e não me unhes voraz.
Ficar-em-pé contrariando este trabalhoso atravessar o-teu-corpo sem-me-magoar atravessar o-ódio-e-perdoar o-teu-medo de não seres grande.
Ficar-em-pé para te ver percorrer o caminho.



Todas as semanas saiem novos Princípios: às segundas n'O Afinador de Sinos, às terças aqui, às quartas no Ponto.de.Saturação. Para ler todos e seleccionar um, abram O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS.

15.1.07

São Gonçalinho II

O prometido nem sempre é de vidro! Voltámos à romaria. As fotos deste ano!


Fotos MRF - Jan 2007

Perfect Lives

Robert Ashley, solo voice; Jill Kroesen and David Van Tieghem, chorus; "Blue" Gene Tyranny, keyboards; David Van Tieghem, non-keyboard percussion; Peter Gordon, music producer; Paul Shorr, soundtrack producer.

Perfect Lives has been called "the most influential music/theater/literary work of the 1980s." At its center is the hypnotic voice of Robert Ashley. His continuous song narrates the events of the story and describes a 1980's update of the mythology of small town America. Perfect Lives is populated with myriad characters revolving around two musicians — "R", the singer of myth and legend, and his friend, Buddy, "The World's Greatest Piano Player". They have come to a small town in the Midwest to entertain at the Perfect Lives Lounge. As Robert Ashley describes in the opera synopsis, "they fall in with two locals to commit the perfect crime, a metaphor for something philosophical: in this case, to remove a sizable about of money from The Bank for one day (and one day only) and let the whole world know that it was missing."

The eloping couple, Ed and Gwyn, the old people at the home, the sheriff and his wife (Will and Ida) who finally unravel the mystery, and Isolde who watches the celebration of the changing of the light at sundown from the doorway of her mother's house are some of the characters who journey through the seven episodes of the opera.

Derived from a colloquial idiom, Perfect Lives transforms familiar material into an elaborate metaphor for the rebirth of the human soul. It has been called a comic opera about reincarnation.

Disc 1:
1. The Park (Privacy Rules) (24:25)
2. The Supermarket (Famous People) (24:53)
3. The Bank (Victimless Crime) (25:03) [excerpt]



Disc 2:
1. The Bar (Differences) (24:48) [excerpt]
2. The Living Room (The Solutions) (25:07)



Disc 3:
1. The Church (After the Fact) (24:44)
2. The Backyard (T'Be Continued) (24:45) [excerpt]





14.1.07

Ricardo III

Os actores Luis Vicente (Ricardo III) e Maria José (Cecily Neville)

ACTA - A Companhia de Teatro do Algarve
Luís Vicente (Dramaturgia e Encenação)
William Shakespeare (Texto)

Ricardo, Duque de Gloucester, está decidido a ser rei. Para o conseguir começa por assassinar o rei Henrique VI e o filho deste, Eduardo. Depois convence o seu irmão Eduardo, entretanto rei (Eduardo IV), de que o outro irmão de ambos, Clarence, conspira contra ele. Clarence é encarcerado na Torre de Londres onde é morto por uns sicários de Ricardo. Ricardo, entretanto, fez a corte a Ana, viúva de Eduardo, por ele assassinado, e casa-se com ela. Dá a saber da morte de Clarence ao enfermo Eduardo IV que morre não se sabe se de remorso se ás próprias mãos de Ricardo. Na linha de sucessão do trono estão dois meninos, filhos de Eduardo IV, sobrinhos de Ricardo. Com a cumplicidade de Buckingham os meninos são encarcerados e depois assassinados. Ana é também assassinada por Ricardo porque a ele convém casar-se com uma jovem filha de Henrique VI (que ele assassinara). No meio de tumultos e conspirações Buckingham reclama as posses que lhe tinham sido prometidas por Ricardo a troco de o ajudar a conseguir o trono. Ricardo recusa dár-lhas. Buckingham revolta-se... Acima de tudo, o que nos interessa do texto de Shakespeare são os aspectos de contemporaneidade que encontramos no proceder e na governação desse monarca que reinou na Inglaterra do século XV, mais precisamente a sua relação com o Poder. É nisto que reside a actualidade do tema e, consequentemente, a leitura que dele fazemos. Ricardo III será, portanto, um espectáculo iniludível e incontornavelmente político.

Outros tiranos, muitos, poderiam figurar no retrato de Ricardo III, mas, nos dias que correm, salienta Luís Vicente, há um que encaixa perfeitamente na personagem: George W. Bush, o presidente dos Estados Unidos da América. “Como fez notar o Al Pacino (que fez uma encenação muito interessante de Ricardo III), a peça trata essencialmente das relações de poder no seio de uma família de mafiosos. E será que os fundamentalistas não são assim uma espécie de família mafiosa? O Bush não é um fundamentalista? É este o pano de fundo da minha abordagem a Ricardo III.” in Observatório do Algarve

Sim, este Ricardo III, levado a cena pela ACTA, é uma abordagem contemporânea, e não histórica, da peça de Shakespeare. Do figurino à projecção de imagens de guerra (Iraque, Palestina, ...). A encenação envolve o público. Ontem à noite participei na intriga que levou Ricardo III ao trono. Intriga é a palavra chave. E depois os diálogos embebidos de retórica, as coalizões, as tentativas (bem sucedidas) de persuasão, a violência (extrema), os discursos de guerra, os vícios do Príncipe, a permanência do conflito. Ou Contribuições para uma moderna Teoria Política. Shakespeare, em 1592-1593, introduz assim a política no teatro. A política, como tema central. Não mais a relação do homem com o divino. O homem entre os homens e mulheres. O poder. A ambição. Jogos de força. E por fim, a queda. No seu teatro, enfatiza-se o declínio, a morte, dos homens poderosos. Ricardo III caiu. "Meu reino por um cavalo!"

E outros tiranos, cairão?

Meu reino por um cavalo

The Life and Death of Richard the Third

SCENE IV. Another part of the field.

(...)
KING RICHARD III

A horse! a horse! my kingdom for a horse!
...

Este é o Inverno do nosso descontentamento

The Life and Death of Richard the Third

SCENE I. London. A street.

Enter GLOUCESTER, solus

GLOUCESTER

Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York;
And all the clouds that lour'd upon our house
In the deep bosom of the ocean buried.
...

13.1.07

São Gonçalinho

Logo no início de Janeiro fico à escuta dos foguetes da festa de São Gonçalinho!

No primeiro ano depois de ter chegado a Aveiro não percebia a origem daqueles estrondos que aconteciam a qualquer hora do dia e da noite. A cidade deveria
jejuar depois do Natal e Ano Novo! Mas um dia fomos à procura da festa. Seguindo o burburinho, chegámos a um bairro em particular, ali nas margens de um dos canais da Ria. À volta da capela de São Gonçalinho, encontrámos as ruas cheias de gente, de luzes e de cores. O que nos surpreendeu foi o ritual mais concorrido: de meia em meia hora, alguém atirava cavacas do varandim da capela e as gentes do bairro, com redes de pesca ou guarda-chuvas, tentavam apanhar o maior número possível desses bolos.

Agora aguardo com expectativa estes dias. Adoro as iluminações especiais, o cheirinho a algodão doce, as bancas a transbordar de doces e brinquedos populares e a disputa pelas cavacas. O ano passado cheguei a assistir a uma cena de murro: "aquela cavaca era minha!" Não foi um espectáculo muito recomendável para as filhas, mas passou rapidamente e acho que elas até gostaram de ver correr tanta adrenalina. Sempre que ouvem um foguete, só querem saber quando é que vão à festa! Acho que sem elas também não tinha tanta piada. Este fim de semana, já sabem, vou passar por lá. O programa promete: no sábado até vem o José Cid. Estão a ver coisa: sai-se do Ricardo III (ainda há muitos bilhetes à venda) e vai-se ouvir José Cid. Esta cidade encanta-me!





Fotos MRF - Jan 2006

12.1.07

A Campanha pelo SIM começa em Aveiro

Cartaz retirado daqui

Palavras em linha

Leiam e não digam nada! Ela tem razão, não vale a pena. Parece que nada vale a pena!

Elisabete Matos

Existem certos nomes que não podemos nem devemos desconhecer, mesmo que já os tenhamos perdido para outros mundos maiores que este nosso rectângulo. Um exemplo óbvio e muitas vezes apontado é o de Paula Rego. Vive em Londres. É nossa, mas também já não o é. Não é que cultive o patriotismo desesperado. Gosto muito daqueles versos de Pessoa em O Infante: Deus quis que a Terra fosse toda uma/ Que o mar unisse, já não separasse. (...) E a orla branca foi/ De ilha em continente/ Clareou correndo até ao fim do mundo/ E viu-se a terra inteira, de repente/ Surgiu redonda do azul profundo. Mas sabem, "falta" mesmo "cumprir-se Portugal".

Elisabete Matos é uma soprano lírica e, dizem os entendidos, é fabulosa! Por cá, quem a conhece, para além dos habitués do São Carlos? Leio na Visão/JL: "Já cantou em palcos tão importantes como o do Scala de Milão ou o do Metropolitan de Nova Iorque. Foi Mimi em La Boheme, Tosca na ópera homónima de Puccini e Dona Elvira em Don Giovanni. Vive há 20 anos em Madrid...". Sei que foi Plácido Domingo quem a lançou na cena internacional. Um amigo mais informado esclareceu-me que ela é capaz de interpretar a Abigaille de Nabucco como poucas. Fê-lo há pouco tempo, na Opera de Toulon.

O seu site está escrito em espanhol mas, pesquisando o calendário de concertos para a época 2006/2007, percebo que não podemos acusá-la de ter esquecido Portugal. Lisboa, Porto, Viseu, têm tido e vão ter a honra de a receber. Parece-me pois que é tempo de todos fixarem o seu nome. Elisabete Matos. Merece salas cheias, bilhetes esgotados, certamente muitos aplausos, o que implica, a priori, a nossa curiosidade.



Ballo in maschera - Verdi
Elisabete Matos & Denis O'Neil