29.9.08

Claro como água


«Por definição, o poder democrático terá de ser sempre provisório e conjuntural, dependerá da estabilidade do voto, da flutuação das ideologias ou dos interesses de classe, e, como tal, pode ser entendido como um barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de mudanças políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais mudanças de governo, mas a que não se seguiram as mudanças económicas, culturais e sociais radicais que o resultado do sufrágio havia prometido. Dizer hoje governo “socialista”, ou “social-democrata”, ou “conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe poder, é pretender nomear algo que em realidade não está onde parece, mas em um outro inalcançável lugar – o do poder económico e financeiro cujos contornos podemos perceber em filigrana, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e inevitavelmente contra-ataca se tivermos a veleidade de querer reduzir ou regular o seu domínio, subordinando-o ao interesse geral. Por outras e mais claras palavras, digo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao Mercado, mas que é o Mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos. E se falo assim do Mercado é porque é ele, hoje, e mais que nunca em cada dia que passa, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder, o poder económico e financeiro mundial, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.»

Já conhecerão O Caderno de Saramago... Mas saberão d' A Viagem do Elefante?

[Foto MRF, Genève 2008]

Fontes perenais de eloquência




DEVORANTE - És üa fonte perenal de eloquência, nunca te acabarão de esgotar.
BRIOBIS - Pois crê-me que não anda aqui um terço de mim.

in Francisco de Sá de Miranda, Os Estrangeiros (1559)

Efeito Doppler


Sou fã deste conceito de «ciência divertida» mas tenho a impressão de que, para a maioria dos adultos, a curiosidade por certos efeitos ou fenómenos científicos só se manifesta depois de uma ida ao médico. Por exemplo, foi preciso ver esta prescrição para me interessar pelo efeito doppler! O dedo a percorrer a água será o sangue nas minhas veias. Enfim, já me tinham avisado. Com os anos, passamos à fase da «ciência vivida».

27.9.08

Preços dos Combustíveis: assim não!

Manifesto
Duarte Vitória, 2007


«Preços dos Combustíveis: assim não!
Sábado 27: Não se esqueça, não abasteça»


A associação de defesa do consumidor, DECO, organiza este sábado uma jornada nacional de protesto contra o preço dos combustíveis, e apela aos consumidores para não abastecerem os veículos durante todo o dia.

25.9.08

A (outra) Maison Blanche

LA CHAUX DE FONDS, CANTÃO DE NEUCHÂTEL, SUIÇA
Foto MRF - Agosto 2008



Para ti, Lauro, porque o prometido, ao contrário do que dizia O'Neill, nem sempre é de vidro.

24.9.08

À minha professora


No dia 7 de Outubro fará exactamente trinta e seis anos que a conheci. Foi o meu primeiro dia de aulas.

A memória leva-me a percorrer o que me parecia ser um longo corredor escuro, no (então) Colégio Nossa Senhora da Conceição em Espinho. Até à minha sala de aula, de mão dada. Num momento qualquer, olhei para a minha mãe, que caminhava à minha direita, e ela pareceu-me demasiado grande e alheia. Como em regressão, ainda sinto o meu tamanho reduzido, a sua mão apertada, ditadora, o eco dos passos determinados, ruidosos, no corredor, e o pavor de saber que me iria deixar naquele lugar estranho. No ano anterior, em 1971, tinha regressado de Angola, da Lunda Norte, do desterro luxuoso e selvagem do Dundo, e a adaptação ao Puto estava a ser difícil. O país era parco em luz, em cor e em espaço. Não gostava de Portugal. Não gostava de casas sempre fechadas. Não gostava daquele corredor escuro.

Só recordo um dos meus colegas desse primeiro ano. Chamava-se Rui e olhava-me fixamente. A paixão do Rui por mim fez história. A mim, aquela paixão sossegou. Com os mesmos seis anos, um menino conseguiu proteger uma menina com o olhar. Um menino, e uma professora.

A Professora Fernanda Arlette não era pródiga em abraços como, de resto, nenhum professor deveria sê-lo naqueles tempos. Tinha uma postura muito erecta, um ar permanentemente aprumado. Usava um penteado à anos 50, que manteve toda a vida, o cabelo levantado e depois preso num puxo discreto. Era refinada, educada, gentil, um modelo de comportamento. Esta rigidez era apenas quebrada, ou acompanhada, pela sua voz, doce, musical, e por sorrisos afectuosos, sorrisos que eram palmadinhas de ternura. Quando se dirigia a alguém, todo o corpo e gestualidade acompanhavam a intenção. Por isso, quando entrei na sala, soube que ela me tinha visto, que ela era a responsável por mim naquele lugar, que estava feliz por me receber e, também, que ela exigiria a minha participação e obediência. A luta foi brava.

A professora observava-me, silenciosa, a maior parte do tempo. Eu escutava-a, ou não, silenciosa. Queria aprender a ler e absorvia letras e conjuntos de letras com avidez. Cedo, em casa, comecei a pegar no jornal, exibindo saber. Era a minha forma de comunicar que subira um escalão na hierarquia dos seres que dominam o mundo. Os pivots de jornais televisivos eram imperadores. Aquele domínio das palavras e o direito adquirido de as proferir na televisão não me deixavam dúvidas. A minha professora era um mestre, também ela poderia ser imperador.

No final do primeiro ano, a avaliação não perdoou: era boa aluna a português e um desastre em tudo o resto. A aritmética era um quebra-cabeças que me confundia, as aulas de música não pareciam ser coisa para levar a sério, a ginástica era uma violência - e o ginásio era um frigorífico.

«Rosarinho, temos que nos esforçar!», dizia a professora, exasperada. Mas a Rosarinho não percebia, não gostava, não queria, e ficava muda.
Há poucos anos, reencontrei-a. Trinta anos mais tarde, já reformada, a professora Fernanda Arlette mantinha o mesmo penteado e a mesma idade, parecia não ter envelhecido, parecia não ter mudado nada. Lembrava-se do meu silêncio e da batalha que tinha travado para me «soltar» e me despertar para outras matérias que não o português. Como uma gata, andei a segui-la. No segundo ano, ela optou por uma escola pública e fui atrás dela. Na «escola da Tourada» ela conseguiu moldar-me, dar-me a volta, com a disciplina e o método que lhe eram tão caros, e com aquela voz e aquele olhar sempre presente.

Naquele tempo de reguadas, foram poucas as vezes em que a vi erguer o instrumento do suplício mas, uma vez, calhou-me a mim. Passei a aula na brincadeira com uma colega e errei os exercícios de matemática! O castigo foi ficar de pé, de costas para a turma. A reguada foi dada porque, pela janela, assisti a uma senhora tropeçar e cair no recinto da feira, e desatei às gargalhadas. Mas nunca tive, não tenho emenda. Ainda hoje esse tipo de situação me faz rir.

Quanto ao resto, ela conseguiu fazer qualquer coisa, muito, por mim. Quando nos separámos, eu frequentava aulas de ballet e queria ser bailarina, não sabia se preferia História a Geografia, fazia contas complicadas com horas, minutos e segundos, era fã do Festival da Canção, queria que os meus pais me comprassem uma viola e, melhor ainda, tinha muitas amigas. Foi com a Professora Fernanda Arlette que atravessei o 25 de Abril e o período de mudanças que se seguiu. Até 1976 continuámos a cantar o hino nacional no final de cada aula e, uma vez por outra, ela fazia questão de que não esquecêssemos o Pai-Nosso. Tudo misturado com gaivotas que voavam, voavam, asas de vento, coração de mar...

Na escola pública, a minha turma passou a só ter meninas - Estela, Paula Cristina, Maria Cristina, Cristina Barbosa, Ivone, Cecília, Paula Lemos, Paula Leal, Idalina, Cláudia Sofia, Samaritana,... Lembro-me de todas, e da minha professora. Chamava-se Fernanda Arlette. Morreu este mês. Tinha quase oitenta anos, mas parecia não envelhecer.



[Imagem: Escultura de Mónica Oliveira - Memórias - Ferro pintado, resina - 39x29x8,5 cm - 2007]

Zodíaco do Quadros II

Se é Balança ou Escorpião, ou..., conheça as características do seu signo.

23.9.08

Quem quereis que tome um porto tão estreito?

«Nunca se viu tão roim mundo: o dizer bem das pessoas é cousa fria e ainda desprezível, o dizer mal é perigoso. Quem quereis que tome um porto tão estreito?»

Monólogo de Doravante, in
Francisco de Sá de Miranda, Os Estrangeiros (1559)
[Esta e outras obras podem ser impressas, na íntegra, via este
site]

20.9.08

Que laicidade para a Europa do século XXI?

Em alguns países europeus, esta é a questão da ordem do dia e urge uma resposta sábia. Em França, dois discursos de Nicolas Sarkozy - em Roma a 2 de Dezembro e em Riad a 14 de Janeiro, acenderam o debate. Para o Presidente da República francês, «uma política de civilização» exige que «a dimensão religiosa do homem seja respeitada» e que se deixe de «ignorar oficialmente as religiões». Os Estados devem passar a «reconhecer "o facto religioso" nas suas dimensões histórica e cultural» e devem «acabar com a hipocrisia que vigora entre religiões e Estado, oficialmente separados mas unidos por numerosos laços e compromissos».

Estes discursos, que poderíamos considerar apenas très realpolitik, sobretudo o proferido na Arábia Saudita, excedem os limites da substância da lei de separação dos poderes (tal como vigora em França desde 1905) a partir do momento em que Sarkozy, Presidente de um Estado laico, declara que «Dieu est au coeur de chaque homme» e afirma que «a religião não pode ser reduzida ao simples espaço privado».

Não se põe em causa a bondade da intenção de pôr fim à «guerra das duas Franças» (clerical e laica) nem o valor do apelo à tolerância religiosa. O que é questionável é se podemos confundir (e preferir) a aceitação da diversidade religiosa e a defesa da laicidade.

A resposta, aparentemente simples, acabou por não me parecer nada evidente. No último ano estive na Bósnia, na Tunísia, em Inglaterra, na Alemanha, em França e na Suiça. Confesso que estranhei a omnipresença da comunidade muçulmana. O uso de burkas - para mim, uma manifestação pública de fanatismo religioso, e que eu julgava reservado a países conotados com o extremismo islâmico -, é uma prática que fui forçada a encarar com naturalidade. De resto, vi mais mulheres com burka na Suiça do que na Bósnia ou na Tunísia. Neste país, numa zona turística, nadei e fiz hidroginástica lado a lado com portadoras de túnica e hijab (o véu islâmico). Estranhei que não despissem a vestimenta dentro da piscina, mas entranhei.

No centro da Europa dei comigo a pensar na forma como reagiria se, na minha cidade, começassem a crescer mesquitas e minaretes. Na Suiça,
a população insurge-se contra esta nova tendência (construções maioritariamente financiadas pela Arábia Saudita). E nem pensar em ouvir o apelo à oração ou muezzin! Mas, e se a proibição se alargasse ao repicar dos nossos sinos? Defender a laicidade pode conduzir a esses silêncios, o que não me parece legítimo, sobretudo depois de ver como é possível a convivência aberta entre diferentes credos em Sarajevo (e não, não esqueci a trágica História recente).

Na Europa Ocidental, a influência do cristianismo decresce, a par da emergência de novas confissões. A Inglaterra já se assume como uma sociedade multiconfessional (cristã, muçulmana e hindu). Noutros países, a integração da minoria muçulmana continua a suscitar tensões e a dividir opiniões. Assumo-me como defensora dos princípios da laicidade, mas não concordei com a lei que proibiu o uso do véu islâmico nas escolas francesas. Saber conviver com a diversidade religiosa e o multiculturalismo (conceitos diferentes mas que aqui se aproximam) supõe, para mim, o respeito pela decisão individual de ostentar símbolos religiosos. Ideais feministas e leis de paridade entre géneros devem reconhecer a impossibilidade de avaliar com rigor - e determinar - se esses comportamentos são impostos por terceiros (normalmente pais ou maridos). Enfim, esse tem sido o argumento utilizado pelos defensores da polémica lei. Discordo. Discordo também que
um juiz possa não atribuir a nacionalidade francesa a uma cidadã por esta usar burka como aconteceu recentemente, também em França.

Na Tunísia, as turistas ocidentais que faziam topless suscitavam-me o mesmo tipo de questões que as muçulmanas de burka na Suiça. Por momentos, ainda ficava dividida entre o deleite de me sentir rodeada de todos os mundos e o (pre)conceito que me levava a comportar-me e a desejar que todos se comportassem seguindo o lema de "em Roma faz como os romanos".

A verdade é que não há "romanos" puros. Nesta era de migrações globais, o que é ser europeu? É-se europeu independentemente do país de ascendência, da raça e do credo. Está a ser difícil aceitar a nova identidade europeia, mas convém não esquecer o que somos.

Voltemos então ao cerne da questão: tem sentido a defesa do que Nicolas Sarkozy apelidou de «laicidade positiva»?

As minhas leituras levaram-me à descoberta de um artigo escrito por Mustapha Benchenane (Révue "Une Certaine Idée", nº 16 de Dez. 2003) no momento em que se vivia um clima agitado em França devido precisamente à questão do uso do véu islâmico nos estabelecimentos de ensino público. Benchenane conclui que a laicidade, tal como é definida e está consagrada no sistema legal francês (lei de 9 de Dezembro de 1905), não se opõe ao uso de qualquer símbolo religioso em locais públicos, incluindo a escola. O Islão, por outro lado, ao contrário do que defendem os fundamentalistas, não obriga as mulheres a tapar-se. O hidjab ou a burka não são prescritos pelo Corão. Porquê então o psicodrama criado pelos parlamentares franceses e pelos representantes da comunidade islâmica?
A verdade é que Estados e cidadãos se sentem ameaçados e "invadidos" pela diferença das minorias (crescentes) e que, por outro lado, o hidjab e a burka, assim como a construção de novos templos, são utilizados na Europa como uma forma de afirmação político-religiosa. Por agora, nenhuma destas manifestações levou directamente à alteração da ordem pública mas a tensão aumenta e adivinham-se conflitos. Um Estado laico deve ser neutro em matéria de religião. O discurso de Sarkosy reflecte pois um imenso desvario. Dar poder à ala clerical (seja ela qual for) terá um efeito perverso. Mas, e nós, meros cidadãos desta Europa? Aceitamos a expressão de diferentes confissões no nosso quotidiano, aceitamos as mudanças obrigatórias no nosso habitat, ou dizemos não a tudo em nome da laicidade? Há meio termo?
O debate está aberto.


Adenda: Colónia - Congresso de extremistas de direita provoca protestos - Pretexto: construção de mesquita

Laicidade na Europa do século XXI

A separação entre Igreja e Estado diz respeito à política e não se estende a outros domínios?
A defesa da laicidade pode pôr em causa o direito à diversidade cultural e religiosa?

Mostar, Bósnia

Yasmine Hammamet, Tunísia (Hotel)

Vevey, Suiça

Montreux, Suiça

Neuchâtel, Suiça

Paris, França


Versailles, França

15.9.08

Al Di Meola

De vez enquando, muito de vez enquando, a cidade recebe um mito vivo. Aconteceu ontem, no TA. Al Di Meola veio apresentar o seu último ábum, LA MELODIA - Live In Milano, com uma banda fabulosa. É um quarteto: Meola e o italiano Peo Alfonsi em guitarra acústica; outro italiano, Fausto Beccalossi, acordeão e voz; e Gumbi Ortiz na percussão. Soube bem. Soube mesmo bem.

Foto MRF
Ago 2008

13.9.08



Viens petite fill' dans mon comic strip
Viens faire des bull's, viens faire des WIP !
Des CLIP ! CRAP ! des BANG ! des VLOP ! et
des ZIP !
SHEBAM ! POW ! BLOP ! WIZZ !

N'aies pas peur bébé agrippe-toi CHRACK !
Je suis là CRASH ! pour te protéger TCHLACK !

Ferme les yeux CRACK ! embrasse-moi SMACK !
SHEBAM ! POW ! BLOP ! WIZZ !
SHEBAM ! POW ! BLOP ! WIZZZZZ

Serge Gainsbourg - Comic Strip

Comic strip

O meu amigo F. é septuagenário e diz que encontra todos os dias pessoas fantásticas neste país de merda. Por exemplo, a semana passada conheceu um rapaz de vinte anos que gere um armazém, em Lisboa, onde é possível encontrar antiguidades e velharias preciosas. A paixão desse jovem, que tão cedo descobriu a sua vocação, deixou-o feliz. No dia seguinte, numa viagem para Aveiro, encontrou um antigo trabalhador da CP que colecciona edições de dicionários de português e que está agora a criar um museu com todas as obras que comprou/recolheu durante anos. A programação televisiva e as notícias de cabeçalho dos jornais parecem feitas à medida de um povo ignorante mas a verdade, dizia, é que facilmente encontramos pessoas curiosas e interessantes. Chegámos à conclusão que a soma das partes é maior do que o todo.

Esta conversa aconteceu ontem à noite. Hoje pela manhã, estava a ler no
PUBLICO ON LINE as notícias sobre o LCH, «um projecto que juntou milhares de cientistas do mundo durante 20 anos, que procura simular os primeiros milésimos de segundo do Universo, há cerca de 13,7 mil milhões de anos atrás, e que é considerado a experiência científica do século». «A máquina de regressar ao Big Bang» gerou centenas de comentários: "Deus é e sempre será o que nos garantiu estarmos aqui!" - "Repudio a necessidade dos homens se tornarem famosos, e usar seus conhecimentos como brinquedos" - "Não importa o que venha a ser descoberto, pois não estamos atraz de provas, existimos!" - "Como homem de ciência, recuso-me liminarmente a discutir seja o que for com acólitos, sacristãos, militantes de Deus ou qualquer outra forma de estupidez sacramentalizada. Também não discuto com sabichões de tasca, proxenetas, políticos saltimbancos ou oportunistas ideológicos." - etc..
Uma rápida análise de conteúdo a essa amostra do pensamento humano fez-me temer pelo todo, pela soma das partes, pelas partes, ...

12.9.08

Mamma Mia !


Já experimentaram o novo antidepressivo? Chama-se «Mamma Mia», tem formato de filme e espero que apareça brevemente em DVD. Os riscos de habituação são sérios: vi o filme duas vezes numa semana e quero mais. Dada a composição do produto, quem sofrer de insónia, não deve tomá-lo à noite. É magistral esta comédia musical! Faz mesmo bem à saúde!

Thank You For The Music!

11.9.08

Ligações improváveis



11 Setembro 1973



Último discurso do ex-presidente do Chile, Salvador Allende, em 10 de setembro de 1973, no qual ele garante que terminará o seu mandato, um dia antes do golpe de estado que levaria o General Augusto Pinochet ao governo.

O golpe de Estado que pôs fim ao governo de Salvador Allende (1970-1973) e instaurou a ditadura de Pinochet no Chile não pode ser apagado da nossa memória colectiva. De resto, muito se escreve ainda sobre o governo da Unidade Popular (UP) que Allende encabeçava, o que significou e como poderia ter evoluído; sobre o papel da CIA e os pecados históricos da política externa americana; e sobre as circunstâncias precisas da morte de Allende no Palácio La Moneda.
Há cerca de três anos, Juan Vivés, companheiro de Che Guevara, um dos mais jovens guerrilheiros da revolução cubana que ajudou a depôr o ditador Fulgêncio Baptista, que foi depois capitão rebelde e, mais tarde, durante cerca de 20 anos, agente secreto do regime de Fidel Castro,
lançou um livro que tem como título o cognome por que era conhecido, «El Magnifico». Juan Vivés afirma que Allende não se suicidou mas que foi assassinado pelo seu Chefe de Segurança Pessoal, um cubano chamado Patricio de la Guardia. Fidel foi apoiante de Allende e face ao golpe de Pinochet, teria preferido que o Presidente Chileno morresse como um mártir. Declara que o próprio Patricio de La Guardia lhe terá confessado esse assassinato. Este último, caído em desgraça em Cuba (no momento do lançamento do livro estava preso em Havana), negava essa declaração. Em França, o caso foi bastante mediatizado e assisti a várias entrevistas a Juan Vivés e a familiares de Patricio de la Guardia. Estes últimos temiam sobretudo as consequências do livro de Vivés no destino do familiar. Não sei como acabou a contenda nem qual foi a sorte de Parricio de la Guardia. Mas o 11 de Setembro de 1973 continuará a suscitar acesas discussões e não sei se alguma vez será cabalmente explicado ao mundo.



A ler:
La entrevista inédita de Salvador Allende [La nacion.cl]

9.9.08

Meu querido mês de Agosto

O ano passado, em Agosto, andei por aldeias quase invisíveis, escondidas por mares de granito, marões, muitos, parentes do único Marão da pátria de Torga ou, mais a Sul, nascidas à beira da Estrela (que só por isso a Beira é a Beira, à beira da serra), algumas célebres pelas suas ruínas, lugares que deixaram de ser o que eram e que existem agora com outra alma, a custo, ainda dependentes da riqueza que se atribuir às pedras mais ou menos soltas ou agregadas, esculpidas ou torturadas, que escaparam a séculos ou a décadas de abandono. Terras que são de quem lá ficou ou de quem foi para longe, para muito longe, mas volta sempre, custe o que custar, para carregar o Santo ou abraçar compadres. Terras de suas gentes, velhas, pobres, saudosas de frutos e filhos, mas inertes. Ou terras que seguraram a última candeia e se transformaram em coisa híbrida, fruto da fusão da cultura rural original com os valores do novo turismo, histórico ou alternativo.

É o nosso império, e a soma de todas estas maravilhas não pode vir a ser uma ruína sem pés nem cabeça. Mas, antes que a memória, o desejo, os sinais, as trocas, até o nome, se alterem novamente, convém ir até lá.

«Aquele Querido Mês de Agosto» foi filmado no decorrer dos verões de 2006 e 2007, em concelhos da região centro: Arganil, Góis, Pampilhosa da Serra, Oliveira do Hospital e Tábua. O filme de Miguel Gomes é uma dessas viagens obrigatórias. Documentário e ficção são interlaçados de forma brilhante e original. É uma dádiva estranho-familiar, uma obra portuguesa até às entranhas. É uma comédia de costumes, um auto dos Verões numa pátria rústica, em que miséria e sonhos, saudade e folia são embalados com canções pimba de bailaricos. Agosto de emigrantes e de romances, de tradições que resistem ao mal e, deixemo-nos de romantismos, ao bem, que nem sempre há tino ou horizontes para mais.

No elenco, actores não profissionais e naturais dos locais onde se desenrola a acção: Sónia Bandeira, Fábio Oliveira, Andreia Santos, Armando Nunes, Manuel Soares, além de Luís Marante, cantor e compositor romântico do Agrupamento Musical Diapasão. Neste fragmento, uma das revelações, Sónia Bandeira. E eu acho que ela vai deixar de ser vigia na montanha e que, em vez de evitar incêndios, vai passar a provocá-los no palco ou noutras telas.

7.9.08

Outono em Agosto

(...)
Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

in A secreta viagem
David Mourão-Ferreira


Gruyeres

St-Prex

Lausanne

St-Sulpice

Neuchâtel

Berna

Versailles


(...)
Aqui os cisnes são da cor da cinza
e o vento devasta o país dos pauis
quando perto do chão a última cigarra
anuncia a definitiva solidão
Que é momentos puros de outra vida
da luminosa luz como ferro em fusão
do silêncio como a nossa melhor obra?
Eu te saúdo outono punitivo
sinal desse silêncio que me não permite
desistir de cantar enquanto vivo
Que o vento a névoa a folha e sobretudo o chão
caibam dentro do espaço da minha canção

Espaço para uma canção
Ruy Belo


Fotos MRF

Deuses e demónios

2.9.08

Forêt Vierge num cantão - cantinho da Suiça

Retrato de Blaise Cendrars, por Amedeo Modigliani



Numa pequena rua em Neuchâtel, um alfarrabista tem a porta de sua casa aberta. É um convite irresistível. O dia é chuvoso e os livros parecem repousar há uma eternidade naquela sala escura. Ou talvez tenha sido o homem, magro, ligeiramente curvado, sentado ao fundo, lendo sobre a secretária, entre montanhas e planaltos de manuscritos e encadernações amarelecidas, que me despertou a curiosidade. Quais seriam os autores eleitos, que obras coleccionaria aquele suiço amante de literatura? Encontro Corneille, Racine, Victor Hugo, Sartre, Beauvoir, enfim, franceses, mestres! Mas não reconheço muitas obras, leio nomes que me são estranhos... até chegar ao suiço Blaise Cendrars! Li há pouco "Poesia em Viagem" (Assírio & Alvim, 2005) e um longo poema, Les Pâques à New York, ainda viaja comigo e está vivo neste mundo de migrações à escala global:

«(...)
Senhor, a multidão de pobres por quem fizestes o Sacrifício
Está aqui, nos hospícios, cercada e amontoada, como gado.

Enormes barcos negros chegam dos horizontes
E desembarcam-nos, a esmo, nos pontões.

Há italianos, gregos, espanhóis,
Russos, búlgaros, persas, mongóis.

São animais de circo que saltam meridianos.
Atiram-lhes com um pedaço de carne como a cães.
(...)»

Pura coincidência, evoco Cendrars e descubro que nasceu a 1 de Setembro de 1887 (m. 20 Janeiro 1961). Nasceu numa pequena localidade, Chaux-de-Fonds, por onde passei o mês passado. Essa é também a terra natal de Le Corbusier e quis conhecer a primeira casa desenhada pelo arquitecto (em 1912).

Volto a Neuchâtel, estou centrada em Cendrars, e o espaço que lhe é reservado parece um enorme esconderijo. De cócoras, salto prateleiras, da esquerda para a direita, de cima para baixo. E então avisto "Forêt Vierge (A Selva)" de Ferreira de Castro, «roman traduit du Portugais par Blaise Cendrars», editado pela Grasset em 1938. O meu tesouro de viagem é assinado pelo autor e inclui uma introdução que vou transcrever (e traduzir) em parte.



" Foi o meu amigo Paul Prado, eminente paulista, autor de «Ritrato do Brazil», essa síntese, única no seu género, de história e de psicologia, quem primeiro me assinalou «A Selva», um documento extraordinariamente verdadeiro sobre a Amazónia, devido, não ao cinema, mas à pena do grande romancista português Ferreira de Castro.
Penso que foi em 1930, e desde a minha primeira estadia no Brasil, ou seja, já há uma dezena de anos atrás, que ponderei com Paul Prado e outros amigos brasileiros, a possibilidade de traduzir para francês um livro brasileiro sobre a Amazónia, sem conseguir fazer uma escolha entre todas as obras que me davam a ler.
(...)
Em Ferreira de Castro eu encontrei finalmente um escritor que sabia evocar como ninguém as belezas e os horrores da Amazónia, descrever a natureza do trópico, anotar as bizarrias, os caprichos, as extravagâncias que nascem sob este clima de água e de fogo, além de falar ainda dos homens que habitam esta terra, que vivem, que lutam, que sofrem nas clareiras da floresta virgem, os selvagens, os primitivos, os autóctones, os nativos, os «caboclos», os agricultores livres, os operários agrícolas, os colonos, os fazendeiros, mas também os «transplantados» e os emigrantes - e, entre estes últimos, um civilizado como o próprio Ferreira de Castro, que foi para a floresta, não para escrever um livro ou por curiosidade, mas como o mais humilde dos emigrantes portugueses, para aí ganhar o seu pão e que, anos mais tarde, se viu obrigado a escrever o seu famoso romance sobre a Amazónia para se libertar de uma obsessão.
(...)
Na minha opinião, o que provocou o imenso sucesso de «A Selva», traduzida hoje em catorze línguas - a minha tradução em francês chega em último lugar - é a sua profunda humanidade, a sua veracidade, os detalhes vividos que ele relata, as suas descrições cruas e nuas sobre a vida dos pobres «seringueiros», uma ausência completa de comentários que deixam que o facto actue directamente sobre o leitor e uma fidelidade tão escrupulosa às palavras, que o mais pequeno diálogo entre estas gentes de cor simples, primitivos perdidos no mais fundo dos bosques, emociona, toca o coração, é escutado.
(...)
- o português é a língua mais voluptuosa, a mais cintilante da Europa e, como é tradição no seu país, Ferreira de Castro é um brilhante, um ardente estilista. O perigo teria sido querer imitá-lo em francês (...) que, se eu tenho muitas vezes ar de ter traído o autor, nunca traí a alma dos personagens, tanto mais sendo ela tão humilde, e é sobretudo isso que conta neste romance, exótico, mas humano, demasiado humano.

BLAISE CENDRARS
Les Aiguillettes
Forêt des Ardennes
Eté 1938 "


Ferreira de Castro (1898-1974) escreveu «A Selva» em 1930. Segundo nota de rodapé de Blaise Cendrars, [em 1938] seria o escritor mais lido em Portugal, escrevia regularmente para os grandes jornais diários brasileiros que o encarregavam de reportagens na Europa e preparava-se para fazer uma volta ao mundo.