21.2.09

Adão, Eva e o mais

Adão e Eva (1504)
Albrecht Durer

«Uma senhora de Engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva...»

Machado de Assis, «Adão e Eva», Antologia de Contos,
Selec. John Gledson, Vol. 2, Companhia das Letras, 1988, p.274

«Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro às duas horas da tarde.»

Eça de Queirós, «Adão e Eva no Paraiso», Contos,
Edição Livros do Brasil, Lisboa, 2002, p.121

«- Esta Eva!
Foi por isso que anos mais tarde Deus se fez homem e habitou entre nós. Mas o Mundo era mais sabido - tinha comido a árvore do Bem e do Mal - e Deus que a guardara sem lhe tocar e a quem não restara nem uma folhinha seca tinha ficado bondoso para sempre - era de esperar que fosse enganado.
»

Jorge de Sena, «Paraíso Perdido», Génesis,
Edições 70, Lisboa, 1983., p.24

«Tinha Deus aposentado Adão e Eva no Jardim das Delícias, onde viviam como os mais desabusados regalões...»

Aquilino Ribeiro, «Triunfal», Jardim das Tormentas,
Bertrand Editora, Lisboa, 1984, p.97

A Evolução de Darwin

Este caderno que Darwin chamou "B" é o primeiro de uma série dedicada inteiramente à ideia de «transmutação» ou evolução. Iniciado em Julho de 1837, o caderno B é a pedra inaugural do pensamento darwiniano e nele se levantam todas as questões fundamentais da teoria evolutiva: como se formam as espécies, como se relacionam as espécies entre si, como é que ocorrem as adaptações. Neste caderno em que Darwin escreveu «I think...» e esboçou uma árvore evolutiva muito simples com as espécies representadas pelas letras A, B, C e D, escreveu também: «Entre A e C uma relação distante. [Entre] C e B uma gradação subtil. [Entre] B e D uma maior distinção. Assim se formariam os géneros». «Género» é o nome dado ao penúltimo nível na organização da classificação das espécies (cada espécie pertence a um género, estes são agrupados em famílias, que estão agrupadas em ordens e por aí fora) e designa um conjunto de espécies próximas. A árvore de Darwin assume que as espécies de um género surgem por descendência, partilhando um ancestral comum. A maioria dos observadores anteriores a Darwin atribuía o conjunto de espécies semelhantes de um género a um plano de criação divino.

O tema é fascinante. Vale a pena visitar a exposição patente na Gulbenkian até ao dia 24 de Maio comemorativa dos 200 anos do nascimento de Charles Darwin.

Em 1861, Darwin publica A Origem das Espécies. A obra só seria traduzida para português no século XX mas muitos escritores portugueses/lusófonos tiveram acesso a estas novas ideias e quiseram representar literariamente, e de forma crítica, a teoria darwinista da evolução do Homem. Deixo uma pequena lista de contos que reflectem o clima mental de «cientismo antropológico de cariz darwiniano»*:

- «A Dor» (1881), in Contos, de Fialho de Almeida
- «Adão e Eva» (1896), in Contos, de Machado de Assis
- «Adão e Eva no Paraíso» (1897), in Contos, de Eça de Queirós
- «Triunfal» (1913), in Jardim das Tormentas, de Aquilino Ribeiro
- «Paraíso Perdido» (1937), in Génesis, de Jorge de Sena

Na poesia, saliento:
- Poesia I, de José Régio
- Adão, Eva e o Mais, de António Osório


* Sobre a recepção da obra de Darwin em Portugal, nomeadamente em autores do século XIX, veja-se o livro de Ana Leonor Pereira, Darwin em Portugal (1865-1914), Almedina, 2001; e também: «Recantos do Paraíso» de António Manuel Ferreira, em O Conto em Língua Portuguesa, Nº 6, Forma Breve - Revista de Literatura, UA, 2008

Fotos MRF, Fev '09

19.2.09

Esta Lisboa que eu amo

Fotos MRF
Lisboa, Fev '09

À escuta #81


Passei o Sábado às voltas entre alfarrabistas e livrarias. Lisboa, largo e rua da Misericórdia, rua do Carmo. Final da tarde, um saco cheio de livros. Espreito mais uma montra e lá está, mais um livro que me interessa. A livraria já fechou, fico furiosa. E então a minha filha Ana, do alto dos seus oito anos, olha para mim, para o saco pesado, para a livraria, e diz:
- É um fundo de poupança!
- É o quê?
- Uma livraria fechada é um fundo de poupança. Eu sei que não te agrada, mas é um fundo de poupança.


Foto MRF
Fev'09

18.2.09

A Dream within a Dream

OREN LAVIE

Álbum: The opposite side of the sea

A Dream within a Dream. O mesmo título de um poema escrito por Edgar Allan Poe. e já havia pelo menos uma outra canção inspirada no mesmo poema: Alan Parsons Project.

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow-
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand-
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?


Edgar Allan Poe

Subida aos céus com notas

Três Tristes Tigres

Álbum: Partes Sensíveis, 1993; Visita de Estudo, 2001.

14.2.09

Subida aos Céus

quero ser amada só por mim
e não por andar enfeitada
ser adorada mesmo assim
careca, nua, descarnada
engano de alma ledo e cego
ó linda inês posta em sossego imortal
diz adeus

com perfumes a presa é fácil
com jóias, casacos de peles
gosto do amor quando é difícil
e cheiro o meu hálito reles
quero ser amada à flor da pele
não quero peles de vison
amada p’lo sabor a mel
e não pela cor do baton
engano de alma ledo e cego
ó linda inês posta em sossego imortal
diz adeus

com cabeleira a presa é fácil
há quem se esconda atrás dos pelos
gosto do amor quando é difícil
de ser amada sem cabelos
quero que me beijem a caveira
e o meu ossinho parietal
que se afoguem na banheira
p’lo meu belo occipital
engano de alma ledo e cego
ó linda Inês posta em sossego imortal
diz adeus

com carne viva a presa é fácil
é ordinário e obsoleto
gosto do amor quando é difícil
quando me aquecem o esqueleto
quero ser amada p’la morte
p’los meus ossos de luar
quero que os cães da minha corte
passem as noites a ladrar
engano de alma ledo e cego
ó linda Inês posta em sossego imortal
diz adeus
sobe aos céus
sobe aos céus

Três Tristes Tigres

Je veux vivre dans ce rêve

Viver dentro do sonho, eternamente na Primavera... Respirar a rosa antes de a desfolhar... Tudo é permitido no dia dos amorosos. que acontece sempre que nos emocionamos!

Roméo et Juliette (Romeu e Julieta), ópera em 5 actos de Charles Gounod, com libreto de Jules Barbier e Michel Carré, baseado na peça homónima de William Shakespeare. Estreou no Théâtre Lyrique de Paris, a 27 de abril de 1867.
Aqui, «Je veux vivre dans ce rêve» (Acto I ) pela Divina. Fabuleux!

Je veux vivre
Dans ce rêve qui m'enivre
Ce jour encore,
Douce flamme
Je te garde dans mon âme
Comme un trésor!
Je veux vivre, ...
Cette ivresse de jeunesse
Ne dure, hêlas! qu'un jour!
Puis vient l'heure où l'on pleure,
le cœur cède à l'amour
Et le bonheur fuit sans retour.
Je veux vivre, ...
Puis vient l'heure
Où l'on pleure.
Loin de l'hiver morose
Laisse moi, laisse moi sommeiller
Et respirer la rose,
Avant de l'effeuiller.
Ah! - Ah! - Ah!
Douce flamme!
Reste dans mon âme
Comme un doux trésor
Longtemps encore.
Ah! - Comme un trésor
Longtemps encore

10.2.09

Soneto de Carnaval

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

Vinícius de Moraes

Grelha de análise (8)


Obra: [Contos de] Princípio, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO,
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «NATUREZA-INSTINTO VERSUS CONDICIONAMENTO SOCIAL (sociabilidades, papéis/status quo, crenças e valores dominantes)»


«LOUCURA»
Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre «marido e mulher» e «amante e amante». No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos «crescei e multiplicai-vos!» Os esposos dignos (...) devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros... O amor dos amantes, é pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar bocas, os seios, os corpos todos... É a liberdade na paixão, e como é liberdade, grangeou o ódio da «gente honesta»...
Tudo isto é absurdo... tudo isto é verdadeiro.
(...)
É por isso que os esposos que se amam como esposos, se não amam. É por isso mesmo que o marido tem amantes... que a sua mulher lhe segue muitas vezes o exemplo...
p. 30

A cândida-donzela a quem a mamã recomendou que obedecesse às exigências do marido, por mais estranhas que elas lhe parecessem, embora já as conheça muito bem na maior parte das vezes (...)
«E o marido? Esse aparece também algo atrapalhadote, sem saber por onde principiar, não vá a pobrezinha assarapantar-se com a insólita coisa – ela, que está morta por isso mesmo...
«Ah, meu caro, como são imbecis todas estas hipocrisias; frutos dos eternos preconceitos, da educação completamente errada duma espécie que se envergonha da sua mãe: a Natureza....
Bem diferente tinha sido a noite de noivos de Marcela e Raul. Espíritos desprendidos, francos e livres, não se envergonhando de ser animais; possuíram-se encarando o acto como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens... Possuíram-se como amantes, não se possuíram como esposos...
pp. 31-32

[Raul] Nunca lhe deixou usar espartilho.
p. 34

... casado face à igreja, como toda agente... Essa vulgaridade sobretudo é que me espantava.
p. 36

Loucura?! - Mas afinal o que vem a ser a loucura...
Um enigma... Por isso mesmo é o que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos...
Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: É a gente de juízo... (...) Como estão em minoria... são doidos...
p. 37

Como se forma o indivíduo? Com o prazer... Fabricar vida é uma necessidade... deliciosa, viciosa portanto.
A natureza compreendeu que ninguém faria vida se não fosse por interesse... para gozar... faz-se a vida só por isso...
(...)
Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...
........
Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados.
(...)
Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse, acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade! Demonstraria que teria mais força do que o criador: destruiria a sua obra infame.
Mas ninguém quer domar os sentidos;
pp. 70-71


«O SEXTO SENTIDO»
[Dr. Gouveia:] Ao homem falta apenas o orgão de recepção e percepção das ondas aéreas. Esse órgão é o «sexto sentido». Dele já deve existir um crepúsculo em todos os cérebros, mais desenvolvidos nalguns, o que explica os fenómenos provados de transmissão do pensamento. O homem que já vê, ouve, gosta, cheira e apalpa – muito brevemente sentirá».
p. 184


«O INCESTO»
A maior parte das pessoas faz um grande número de coisas que não gosta de fazer e que podia muito bem deixar de fazer. Mas fá-las porque toda a gente as faz.
p. 215


[Imagem: Pedro Oliveira, Óleo e acrílico sobre tela, 2008]

7.2.09

Her Morning Elegance

Para ver e ouvir até ao fim. Pode ser baixinho...

Oren Lavie. Do álbum: The Opposite Side of the Sea.

Sun been down for days
A pretty flower in a vase
A slipper by the fireplace
A cello lying in its case

Soon she's down the stairs
Her morning elegance she wears
The sound of water makes her dream
Awoken by a cloud of steam
She pours a daydream in a cup
A spoon of sugar sweetens up

And She fights for her life
As she puts on her coat
And she fights for her life on the train
She looks at the rain
As it pours
And she fights for her life
As she goes in a store
With a thought she has caught
By a thread
She pays for the bread
And She goes...
Nobody knows

Sun been down for days
A winter melody she plays
The thunder makes her contemplate
She hears a noise behind the gate
Perhaps a letter with a dove
Perhaps a stranger she could love

And She fights for her life
As she puts on her coat
And she fights for her life on the train
She looks at the rain
As it pours
And she fights for her life
As she goes in a store
With a thought she has caught
By a thread
She pays for the bread
And She goes...
Nobody knows

And She fights for her life
As she puts on her coat
And she fights for her life on the train
She looks at the rain
As it pours
And she fights for her life
Where people are pleasently strange
And counting the change
And She goes...
Nobody knows

6.2.09

Grelha de análise (7)


Obra: [Contos de] Princípio, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO,
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «RELAÇÃO ENTRE HOMENS»


«LOUCURA»
Eu e Raul conhecemo-nos desde os bancos do Liceu. (...)
Eu perdoava-lhe sempre... (...)
... a nossa mútua antipatia transformou-se em simpatia mútua. Eu aceitei os seus olhos e os seus cabelos; ele tolerou a minha cor terrosa, e grande intimidade se foi estreitando entre nós.
...uma convivência sempre quotidiana foi acompanhando, avigorando a nossa amizade.
pp. 8-9

Raul continuava a ser o meu confidente. Expunha-lhe todos os meus projectos, todas as minhas esperanças: era ele a primeira pessoa que ouvia ler as minhas obras.
p. 15

Raul estimava-me muito. Se há amigos verdadeiros, ele era um amigo verdadeiro.
p. 16

Notícias pessoais – isto é, notícias da alma – faltavam.
p. 25

Dantes, só um homem me atraía; agora era também uma mulher... uma mulher encantadora, uma criatura ideal. Raul e Marcela – dizia-se – não eram dois esposos, eram dois amantes.
p. 30

Marcela apareceu sem saber da minha presença. Ao ver-me, estacou ruborizada. É que estava positivamente nua. (...) Raul, ao notar a sua perturbação, soltou uma cristalina gargalhada e – voltando-se para mim – clamou:
- Já que não posso mostrar a ninguém a minha melhor obra, ao menos que a conheças tu... Eu nunca tive segredos para ti!...
Com um puxão, despojou Marcela do seu leve vestuário... Numa aparição ideal, eu vi o seu corpo inteiramente nu... Que corpo... Nos braços, nas pernas, nos seios, havia nódoas negras: eram escoriações de amor, compreendi... A visão durou um segundo... Ela fugiu chorando...
........................................
Um louco... Um louco, não havia dúvida.
p. 35

... a minha intimidade com a sua mulher era pequena. Limitava-se à conversação banal das pessoas que se conhecem. Havia mesmo um certo embaraço entre nós desde a cena extraordinária que narrei.
p. 43

«O escultor faz corpos – dizias – o escritor faz almas...» Da nossa colaboração vai sair a vida!
p. 52

O meu amigo levou-me para a estrada da Praia das Maças. O silêncio era absoluto. (...)
- Ciumento? Sim... Tenho tido ciúmes... de ti, sobretudo. És o meu melhor amigo... e isso acontece sempre com os melhores amigos...
Tapei-lhe a boca inclinado:
- Repara no que dizes, hein?!
- Perdoa-me... perdoa-me... - implorou. Sou tão infeliz...(...)
p. 65


«O SEXTO SENTIDO»
Patrício da Cruz, primoroso contista – acercou-se do Dr. Gouveia e, durante toda a noite, os dois conversaram isolados.
(...) desde aí que eu notei uma grande mudança no pobre Patrício. (...) agora, fugia de todos os amigos – de mim próprio, aquele cujo convívio mais lhe agradava.
p. 185

Mais vale desabafar, confiar em ti – o meu único amigo sincero, agora o sei.
p. 185

... soube que todos eram amigos falsos, miseráveis hipócritas – excepto tu, excepto só tu!...
p. 187

«A PROFECIA»
Amigo íntimo do desventurado e herdeiro dos seus papéis, eu era até agora a única pessoa a conhecer a verdade (...)
p. 199

É tempo de derruir lendas que poderiam ofuscar a glória do seu nome.
p. 199


«O INCESTO»
(Noronha) amigo de infância de Luís, um companheiro leal de todos os dias, que estivera sempre junto dele nas horas alegres e tristes.
p. 224


[Imagem: Cruzeiro Seixas, Anda espreitar o que há dentro de um desejo, Tinta da china sobre papel, 20x15 cm, 1969]

4.2.09

Grelha de análise (6)

Obra: «O INCESTO», MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1912
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «PRÁTICAS LUXURIOSAS»


- Mas não o tinha amado a Júlia? (...)
No leito vasto de pau-santo, profundo como um túmulo, muitas vezes tivera medo da grande serpente amorosa que o mordia, que o feria nas carícias brutais da sua boca escaldante, nas convulsões despedaçadoras de todo o seu corpo nu!... E era ela...ela...ela mesma, a bêbeda de luxúria que alta noite lhe uivava de amor; era ela, a amante, a amiga e a mãe – ah! e a mãe! - que assim procedia, que fugia, cadela aluada atrás de outro cão... atrás de uma matilha inteira!...
Safada! Safada!
p. 212

Quando voltara a Paris, ia nos 16 anos; a sua carne despertava para o amor. O que o maravilhara, então, tinham sido as mulheres esplêndidas que via nos teatros, cobertas de jóias, amplamente decotadas; (...) Com que prazer infinito não misturaria o seu corpo todo nu aos corpos despidos dessas criaturas de sonho... E, mesmo, que horas inefáveis não passaria com uma dessas raparigas tão galantes que, à noite, circulavam em chusma pelos boulevards... O sabor estranho que haviam de ter os beijos daqueles lábios pintados, as carícias daqueles seios agudos tremendo mal escondidos, perturbadores... Puro ainda, sabia fantasiar, no entanto, todas as volúpias, todos os êxtases...
pp. 249-250

E a noite de núpcias, a terrível noite?... AH! Com que prazer feroz ele estreitara, ele possuíra, esse corpo admirável, quente e amoroso... como beijara essa boca sadia, vermelha e húmida... como mordera aqueles seios louros, de pontas trigueiras e ácidas!
p. 262

No grande leito de pau-santo, profundo como um túmulo, havia agora as mesmas lutas, havia os mesmos espasmos, os mesmos abraços doidos dos tempos da amante fulva. Natureza sensual, viciosa quase, Magda de bom grado se prestava a todas as fantasias do marido, lhe correspondia aos beijos brutais, se contorcia em violentos êxtases. Mas em certas noites, era tal a ânsia com que Luís se precipitava sobre a sua carne nua, que ela chegava a ter-lhe medo, receando, verdadeiramente receando, que as suas mãos ávidas se lhe colassem à garganta num círculo férreo, estrangulador. Porém, (...) o seu prazer aumentava, era mais completo e inebriante por se lhe misturar o terror.
pp. 262-263

Uma vez tentou negar-se ao marido. Este, percebendo-lhe as intenções, agarrara-a pelos pulsos, torcera-lhos brutalmente e esmagara-lhe os lábios com um beijo tão frenético, tão delicioso, que no mesmo instante ela tombara vencida, enrodilhada debaixo dele. (...) ah! Não foram beijos – foram mordeduras de onde o sangue escorrera... Tudo acabara por um arranco supremo de gozo, sibilante e profundo, que mais tinha parecido o estertor de uma agonia horrível...
p. 263

Na manhã seguinte, ao acordar morta de fadiga e ao ver uma nódoa negra no seio esquerdo, Magda (...) teve medo, mas um medo real
p. 263

Depois, entre os espasmos, nunca lhe ouvira uma palavra de amor!
p. 264

... eles amavam-se como dois possessos
p. 264

E por que é que nunca desejara nenhuma mulher com tamanho ardor? (...) Porque só nessa encontrar as mesmas feições da morta! Demais, a prova concludente de que fora assim, é que ele ignorava ainda hoje toda a alma da estrangeira. Logo, o que o fizera desejar aquele corpo não fora a alma que o animava, fora apenas a carne que o constituía. (...) ele só desejara Magda pelo que nela havia de Leonor. Leonor. Coisa horrível, ai, mas bem real..., bem real!
pp. 264-265

... começavam-lhe a surgir lembranças mais perversas, mais sacrílegas e, entre todas, uma mais frequente: a estranha sensação que uma noite experimentara ao descobrir no crepe da China verde da blusa de Leonor, o bico de um seio vagabundo apontando audacioso.
p. 265

Infâmia! Tinha-se consumado há muito o incesto... durava desde a morte da filha! (...) Só desde a morte? (...) E a noite de luar? (...) reconhecia aterrado: não fora júbilo, não; fora o ciúme... o ciúme!... (...)
E todas estas divagações exacerbavam a sua fúria amorosa; cada noite mordia com maior ânsia o corpo nu da estrangeira.
p. 266

«Se lhe tirassem o seu crime sofreria mais do que sofria com ele.
p. 268

Agora tinha visões abomináveis. (...) vira de repente diante dos seus olhos a mãe e a filha – a grande amante fulva e a virgem lirial – todas descompostas, a rolarem-se pelo tapete; misturando os membros, possuindo-se em deboches infernais. Depois fora uma longa teoria de dançarinas obscenas, louras umas, outras ruivas...(...) transformando-se cada um no rosto da morta. (...) E sobre os seus lábios ele sentira – oh horror! deliciosamente sentira – o latejar desse sexo palpitante, ardentíssimo! ... Até que por último, vencido, descerrara a boca e beijara-o, sugara-o, mordera-o num delírio bestial!
p. 268


[Imagem: Duma, Decifra o meu silêncio, Óleo sobre tela, 100x100 cm, 2006]

2.2.09

Grelha de análise (5)

Obra: «FELICIDADE PERDIDA», MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1909
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: DEFINIÇÕES DE AMOR


Estava na plateia. (...) quando de repente os meus olhos se fixaram numa frisa. Ocupavam-no uma senhora idosa, duas crianças e uma rapariga de 18 anos. Escusado será dizer que foi esta última quem atraiu o meu olhar. O seu rosto, que eu via de perfil, era encantador. Vestia de preto. Provavelmente de luto aliviado.
(...) a desconhecida que, cheia de interesse, seguia a representação.
pp. 195-196

De súbito, o seu olhar encontrou-se com o meu... Não tenho nada de tímido, mas foi-me impossível sustentar o brilho dos seus olhos. Abaixei os meus.
Este jogo de olhares durou todo o acto... durou todo o intervalo seguinte... durou até ao fim do espectáculo.
p. 196

Outro que não fosse eu tê-la-ia esperado à porta do teatro, teria indagado a sua morada e depois... depois seriam as cartas de frases inflamadas, a troca de retratos: o amor alfacinha – e julgo que de toda a parte – em suma. Eu não: dirigi-me para minha casa, rapidamente...
O que me levou a proceder assim? Um prazer destruidor; por certo...
p. 196

Não consegui adormecer. Levanto-me... para confessar a verdade: Amo essa desconhecida de quem ainda há pouco desdenhava!... Sim! Amo-a amo-a! Amanhã irei procurá-la. Encontrá-la-ei! O amor é o melhor dos guias...
p. 196

...soube que no começo do ano amava... uma desconhecida, e que estava louco de dor por não a poder encontrar... É curioso! Se não fosse tê-lo assentado nessas páginas nem sequer me recordaria do«trágico sucesso!»... Ah!Ah!Ah!
pp. 197-198

Dizem que toda a gente, durante a sua vida, encontra uma vez, mas uma vez só, a felicidade (...) «Seria essa desconhecida? A minha felicidade?»... Talvez, porque nunca mais a encontrarei. Ninguém pode encontrar uma pessoa que não conhece.
p. 198

Obra: «DIÁRIOS», MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1909
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: DEFINIÇÕES DE AMOR


É verdade: ainda há a priminha... Mas nessa nem vale a pena falar. Modesta, é por isso mesmo desprezada por todos. Tosse continuamente. Não deve incomodar por muito tempo. Pesaroso, fizeram-me até essa confidência...
pp. 189-190

Vi hoje uma rapariga muito parecida com a prima do meu amigo.
p. 190

Durante quase duas horas estive falando sozinho com a «prima»... Elisa, é o seu nome... Que felizes horas! (...)
Fui encontrar no meio de toda aquela futilidade um ente que odeia tudo quanto é fútil... falámos de mil coisas... de música... e de amor... Que crueldade! Falar de amor com uma criatura que já não tem tempo para amar... (...) talvez a viesse a amar, mas não se ama uma morta...
p. 190

E é formosa... formosa de uma formusura etérea, que já não é deste mundo. As faces pálidas, os lábios descorados; mas uns olhos tão negros, tão brilhantes... uns cabelos tão lindos...
p. 190

Falar de amor é falar de «esperança», é falar do «futuro»; (...) Se não fosse o seu estado, talvez a viesse a amar.
p. 190

Poder-se-á amar uma morta?
p. 190

Quase que não tosse, as faces estão coradas e não tem febre, os lábios rosados... tão rosados, tão viçosos... com que prazer os beijaria... Beijei-os!... Que sabor encontrei nesse beijo ardente... um sabor acre, estranho... o sabor da paixão!
p. 191

Amo! Amo pela primeira vez! Como sou feliz! Ah! Como sou feliz! Amor sem esperança é o meu... Mas que importa? Um prazer doloroso é o melhor prazer.
p. 191

A história do meu amor é bem simples: começou pela compaixão e terminou na paixão... na mais ardente paixão!... E, no entanto, não posso dizer que o meu amor seja eterno... A morte não poupa ninguém...
p. 191

Poderá haver algum martírio mais horrível do que o meu?... Amar o impossível... amar a morte!...
p. 191

Faz hoje um mês... quero vê-la... quero vê-la!... Quero beijar-lhe a boca...quero estreitar o seu corpo contra o meu... quero confundir a sua alma com a minha... Quero-a! Quero-a! Vou partir...
...
Os jornais do dia seguinte anunciavam, com efeito, o seu suicídio.
p. 191



[Imagens: Duma, série Glam, Óleo sobre tela, 100 x 100 cm, 2008]

Revelação


Eu já sabia, mas agora é oficial: Há vida em Marta!