25.1.08

Roll off


Eu não consigo fazer listas de filmes, livros ou álbuns. Não consigo! A Eduarda pediu-me há algum tempo que o fizesse, agora foi a Fatyly, e eu vou pensando num rol possível de filmes - desta vez, filmes - e bloqueio. A memória mais imediata traz-me alguns clássicos que amei e amo por razões muito privadas, como Esplendor na Relva de Elia Kazan ou Rebecca de Hitchcock; filmes mais intimistas como Ma Saison Préferée de Techiné ou Sous le Sable da nova estrela do cinema francês, François Ozon. E a lista poderia continuar, sem critério cronológico ou estético, sem fronteiras, com Senso de Visconti, La Cérimonie de Chabrol ou Debaixo das Oliveiras de Abbas Kiarostami. Mas O Casamento de Maria Braun e (como me espantou quando o vi no final dos anos 80!) Querelle de Fassbinder não podem ficar de fora. Nem o Sétimo Selo de Bergman!





Sonhei a morte como este filme, pressinto-a ainda com a ironia do jogo em que um homem se salva ou prolonga a vida por mais um momento lançando uma peça, enquanto outros, sem aviso ou estratégia, partem. Sonhei o amor como alguns destes filmes. Revisitei escritores no cinema. Li Rebecca de Daphne du Maurier com 13 anos, antes de saber que Hitchcock realizara um filme com o mesmo nome - o único filme que lhe valeu um Oscar para Melhor Filme pela Academia. Reconheci Ruth Rendell em La Cérimonie, a escritora que, com Patricia Highsmith, revolucionou o conceito de romance policial.

Amamos os filmes por inúmeras razões, até pelo lugar em que os vimos. Vi Esplendor na Relva no Cine-Teatro S.Pedro em Espinho. Era o nosso Monumental e também foi destruído. Hoje, no seu lugar, existe um centro comercial particularmente feio e mal sucedido. Amamos os filmes pelos actores. Natalie Wood, o jovem Warren Beatty (ninguém era mais belo do que ele!), Deneuve, Sandrine Bonnaire, Isabelle Huppert, Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Cassel, Hanna Schygulla, Charlotte Rampling e tantos outros. Amamos os filmes pela luz, por causa daquela cena - ah, o campo de oliveiras, e como a câmara se aproxima... -, por aquele diálogo, ou por um olhar - o de Natalie Wood/Wilma Dean, quando se despede de Warren/Bud Stamper. Amamos os filmes porque os vivemos e nos sufocaram. Amamos os filmes pela alegria e pela nostalgia. No cinema, na arte, sempre a mesma busca, uma pulsão, para a emoção e para o belo.




What though the radiance
which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass,
of glory in the flower,
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.

Splendor in the grass
William Wordsworth


As listas são uma seca! :)

19.1.08

Expiação


Li quase toda a obra traduzida de Ian McEwan mas os livros que melhor recordo são A Criança no Tempo e Expiação. Joe Wright apropriou-se deste último romance e transpô-lo para a tela. Fui a correr ver o filme. Fiquei com saudades do empolgamento que senti durante a leitura. A adaptação ao cinema é feroz na intenção de fidelidade ao romance original. E peca por excesso. Certas frases - as de Dunquerque, em particular, são demasiado longas. No cinema, Expiação transforma-se quase num épico. No papel, há um amargo mais familiar. Mas eu voltaria a ver o filme, a pegar no livro. Ambos nos enlevam. se quisermos. esperar re-inventar o fim.

____e com Vanessa Redgrave, o fim valeria sempre a pena.

18.1.08

À escuta #60

A descoberta da escrita tem sido uma coisa fantástica. Agora, temos a casa toda assinalada com letreiros (sala, quartos, escritório, cozinha, escadas, etc.) e cheia de recadinhos. Os últimos que recebi são assim (erros incluídos):

I
«Quando me deichares sair algum dia à noite era bom!!!!
És mesmo chata.
Disseste que iamos às compras no dia 18 de dia mas eu quero ir à noite. Vamos ao mequedonaldse!

A resposta a esta pergunta dirá a verdade. Gostas de mim?
Sim___
Não___
(espero que digas que sim e se gostas deichasme sair à noite)»

Da: S.


II

«Desculpa por te ter maguado e assim mesmo de te ter maguado. Eu não queria terte maguado. É isso e mesmo assim eu gosto muito de ti e do papá.»

Da: A.

11.1.08


Isto é mesmo um lugar de meter medo, não é?


E a gente olha para as árvores à procura de pistas e pensa...já aqui estive?
Nunca tinha pensado na cegueira até vir para aqui.



[João Penalva - vídeos e instalações que associam a imagem à exploração narrativa de factos ou ficções onde a dimensão linguística da tradução assume uma clara relevância conceptual. O artista sobrepõe objectos, suportes e narrativas fragmentárias, produzindo uma complexa teia de significados, que interrogam a memória e o modo como a cultura é traduzida, mediada e apresentada.]

9.1.08

Memórias de uma menina bem-comportada


Nasci no dia 9 de Janeiro de 1908, às quatro horas da manhã, num quarto de móveis lacados a branco que dava para o Bulevar Raspail. Nas fotografias de família, tiradas no Verão seguinte, vêem-se senhoras ainda novas, de vestidos compridos e chapéus emplumados com penas de avestruz, e senhores de palhinhas e panamás, sorrindo para um bebé: são meus pais, meu avô, minhas tias, meus tios e sou eu. Meu pai tinha trinta anos, minha mãe vinte e um, eu era a primeira filha. (...)
Em casa, o menor incidente era alvo de vastos comentários; ouviam de bom grado as minhas histórias, repetiam as minhas graças. Avós, tios, tias, primos, uma família abundante, garantiam a minha importância. Além disso, todo um povo sobrenatural se inclinava para mim com solicitude. Logo que soube andar, a mamã levou-me à igreja; mostrou-me, feitos de cera, de gesso, pintados nas paredes, retratos do Menino Jesus, de Deus, da Virgem, dos anjos, um dos quais, como Louise, se achava especialmente ao meu serviço. O meu céu estrelava-se com miríades de olhos benevolentes. (...)
Protegida, mimada, divertida pela incessante novidade das coisas, era uma menina alegre. No entanto, havia alguma coisa que não batia certo, pois tinha ataques de fúria, atirava-me para o chão, roxa e com convulsões. (...) Berrava tanto e durante tanto tempo que várias vezes no Luxemburgo me tomavam por uma criança mártir. «Pobre pequena», disse-me uma vez uma senhora oferecendo-me um rebuçado. Agradeci-lhe com um pontapé. Este episódio fez rumor; uma tia obesa e com bigode, que escrevia, contou-o na Poupée Modèle. Eu compartilhava da admiração que inspirava a meus pais o papel impresso: através da história que me leu Louise senti-me uma personagem; pouco a pouco, no entanto, comecei a sentir-me envergonhada. «A pobre da Louise chorava às vezes amargamente, lastimando as suas ovelhas», escrevia a minha tia. Louise nunca chorava; não possuía ovelhas e gostava de mim: e como era possível comparar uma menina a umas ovelhas? Suspeitei a partir desse dia que a literatura tem uma relação muito incerta com a verdade.

in Memórias de Uma Menina Bem-Comportada, de Simone de Beauvoir, Círculo de Leitores, Março 1975, pp 7-14


Eu teria uns 12 ou 13 anos quando me apercebi de um livro de capa branco e lettring carregado a negro rosnando 2º SEXO. O livro estava nas estantes mais altas da biblioteca, ao lado de outros que eu suspeitava ou tinha a certeza que eram "proibidos". A vontade de os ler tinha-se instalado há algum tempo atrás. Já conseguira desviar A Felicidade Conjugal de Tolstói, Um Homem e uma Mulher de Burt Hirschfeld e outros tantos, sem olhar a correntes, épocas ou estilos, apenas à sugestão dos títulos. Mas transportar O 2º Sexo (Factos e Mitos; A Experiência Vivida) pela casa, era demais para mim. Foi então que reparei nas Memórias de Uma Menina Bem-Comportada; sendo da mesma autora, o título seria certamente enganoso, e eu esperava enganar com ele toda a família, ou pelo menos disfarçar o meu recente interesse por certos temas. Na altura não tinha nenhuma referência sobre Beauvoir. Foi com essa ignorância e as hormonas aos saltos que comecei a ler este livro fantástico. Devorei-o. O enredo e as reflexões interessavam-me além de que, durante a leitura, não perdi a esperança de que ela fosse mais explícita em matéria de sexo quando chegasse às memórias da adolescência. Anos mais tarde, quando o reli, dei-me conta de que este é um dos melhores livros de memória da infância. Não me surpreendeu o facto de eu-criança me ter projectado na obra. Beauvoir-escritora, torna crível o pensamento da criança-Beauvoir. Só viria ter a mesma sensação com a leitura de O Primeiro Homem de A. Camus.

Das Memórias fixei Zaza, cuja morte me fez chorar imenso. Simone escreve - no último parágrafo do livro - que durante muito tempo pensou que pagara a sua liberdade com a morte da amiga. Nós continuamos a pagar a nossa liberdade, malgré Beauvoir. "A disputa durará enquanto os homens e as mulheres não se reconhecerem como semelhantes".

[Imagem de Simone Beauvoir via]

Beau-voir







Simone


En 1981, Simone de Beauvoir avait appelé à voter pour François Mitterrand, ce qu'elle n'avait pas fait en 1974. Elle lui sait gré de créer un secrétariat à la Condition féminine, et devient l'amie d'Yvette Roudy, qui lui confie la présidence d'une commission dans son ministère. «Face à Beauvoir, se souvient Roudy, Mitterrand était comme un petit garçon qui se faisait tancer.» C'est Simone de Beauvoir qui inspire les lois contre les publicités sexistes et sur l'égalité des salaires hommes-femmes.
Nouvel Obs

8.1.08

Reformar o SNS


Ninguém tem dúvidas de que o sistema nacional de saúde deve ser reestuturado. Compreendo a lógica de concentração dos melhores recursos técnicos e humanos em grandes hospitais, acompanhada da disseminação de centenas de unidades de saúde familiares (apesar de não saber como operam). Saúdo o actual ministro pela criação de unidades de cuidados continuados e de finalmente dar corpo a uma rede de cuidados paliativos (que simplesmente não existia neste país).

Sei que ultimamente os media acentuam mais os casos de urgências que fecham do que o reforço do sistema de cuidados primários. Sei que a reforma está em curso e que o calendário tem atropelado equilíbrios já de si muito instáveis.

Ouço falar em indicadores: número de cirurgias, frequência de primeiras consultas, redução de gastos e investimentos. A reforma são indíces e metas. Já não passa pelo conceito de gestão hospitalar (esgotou-se o tema no tempo do Ministro Luís Filipe Pereira) e nunca passará, presumo, pela discussão do que deve ser a cultura hospitalar e pela interiorização do conceito de prestação de um serviço de qualidade à população.

A verdade é que, na prática, não existem urgências funcionais e qualitativamente modelares. Os centros de saúde continuam a ser locais caóticos, com filas de espera insanas, seja para marcação de consultas seja no atendimento. As infraestruturas são velhas, gastas e frias. Alguns hospitais estão bem equipados e oferecem valências médicas de elevada qualidade mas há sempre qualquer coisa que falha. Em Santa Maria, por exemplo, realizam-se transplantes de órgãos com sucesso, mas as equipas são tão especializadas que, se um paciente fizer o transplante de um rim, podem demorar horas até perceber que as dores que tem são originadas por um problema de natureza gástrica, e não se faz acompanhamento psicológico, nem ao doente sujeito a transplante, nem ao dador do órgão (normalmente um familiar) (este é mais um caso real).

O paciente não é visto como um ser, na sua totalidade, nem do ponto de vista clínico, nem do ponto de vista psicossocial. O serviço nacional de saúde atende-nos pontualmente e despacha-nos com prazer. Que venha o seguinte! O seguinte! Dado o racio de doentes por médico, mesmo os médicos de família só podem tratar-nos assim, como mais um caso pontual, e que venha o seguinte! O seguinte!


E tudo isto tem muito pouco a ver com as qualidades técnicas e humanas do pessoal médico e de saúde. Há um sistema que os conduz a esse tipo de procedimento. Salvo fantásticas excepções.

De resto, a nossa percepção do serviço nacional de saúde também está condicionada. Sempre que somos bem atendidos, pensamos que foi uma excepção. Existem fantásticas excepções.

Mudar a cultura da saúde em Portugal significa inverter essa percepção. Tem um longo caminho pela frente, Senhor Ministro.


[Cartaz da Colecção de Francisco Madeira Luis, disponível no site da UA]

Urgências Médicas


... e não assistência a pacientes com doenças agudas (percebi a nomenclatura!).

I. Dia 21 de Dezembro de 2007, Hospital Infante D. Pedro, Aveiro

Chego ao Hospital com tensão 8/5, depois de uma semana de vómitos sistemáticos antes/durante/após refeições. Deixei passar tempo demais, convencida de que os sintomas desapareceriam por si ao fim de algum tempo. Entro às 14h nas urgências, passo pela triagem e fico com a fita amarela. É um dia mau. O Hospital está equipado com um novo sistema informático e há uma pane. Tiram-me uma fotografia à chegada e é com dificuldade que a registam na minha ficha e que conseguem "linkar-me" à cor amarela. Pior, não conseguem aceder aos resultados das análises dos pacientes - e, por isso, o número de pessoas à espera de um diagnóstico e de ter ou não ter alta, é muito elevado.

Espero 4 horas até ser atendida. A dada altura dizem-me que só tenho 3 pacientes à minha frente mas que estão constantemente a chegar casos laranja ou vermelhos. Aceito o princípio da triagem, resigno-me, e faço exercícios de respiração quando me sinto próxima do desmaio. Vou observando as misérias do mundo. À minha volta estão pessoas de todas as idades mas a maioria são idosos. Um deles teve um acidente de automóvel e queixa-se de uma dor no peito. Quando finalmente saí do Hospital ele continuava à espera. A morte da senhora com 85 anos - que foi tão mediatizada nos últimos dias - não me surpreende de todo. Uma enfermeira explica-me que a especialidade "Cirurgia" tinha três médicos; dois saíram para operar, ficou um a atender dezenas de pessoas. Tenho sorte por estar destinada à "Medicina".

Finalmente chamam o meu nome. Parece-lhes claro o procedimento. Suspeitam de gastrite ou úlcera, devo fazer uma endoscopia. Meia hora de espera pelo gastroenterologista (mais uma vez tenho sorte: vou ter um médico especializado a atender-me). O médico é uma simpatia mas precisa de alguém que o acompanhe para me fazer o exame. No corredor, comigo ao lado, vai suplicando ajuda. Se fulano de tal está livre, não está. E fulano? Vão ver. Ele não pede um enfermeiro, apenas um maqueiro, um auxiliar. A dado momento olha para mim e pergunta-me: aguenta fazer a endoscopia sem se mexer nem tirar os tubos? Aguento! Lá vamos e no último momento cruzamo-nos com alguém que até pode vir assistir o médico.
O exame é claro, afinal trata-se de um problema na vesícula. Passa-me a prescrição médica e vou à minha vida. Saí do Hospital às 19 horas.


II. Dia 2 de Janeiro de 2008, Hospital Eduardo dos Santos Silva, Gaia

Depois de um acidente (choque em cadeia) na A1, a minha cunhada é transferida de ambulância para o Hospital de Gaia. Está em estado de choque mas, milagrosamente, não ficou gravemente ferida. Dada a violência do embate deve, no entanto, ser radiografada e suturada em algumas partes do corpo. Viajava de táxi em direcção ao aeroporto quando ocorreu o acidente.
A viatura em que seguia ficou neste estado. Entrou por volta das 7h30 no Hospital, saiu às 19 horas. Fizeram-lhe os raios X da praxe, foi vista rapidamente por um otorrino e por um oftalmologista. Por que ficou retida no Hospital durante um dia inteiro (sem que ninguém a alimentasse - até ela desmaiar e a porem a soro)? Porque lhe atribuíram a cor amarela e ela teve que aguardar, aguardar, aguardar. Porque não saiu ainda mais tarde? Porque a dada altura foi accionado o factor "conhecimentos pessoais" - e vivemos num sistema (supostamente reformado) em que o mais importante ainda é conhecer alguém que trabalhe no hospital. O motorista do táxi em que a minha cunhada seguia fez traumatismo craniano e foi atendido posteriormente! Também lhe fora atribuída fita amarela.

Não faço comentários relativos às instalações da urgência do Hospital em causa: era suposto
já não ser assim, mas ainda é - trata-se de contentores!



[Cartaz da Colecção de Francisco Madeira Luis, disponível no site da UA]

Cultura hospitalar


I. Com apenas 10 dias, uma das minhas filhas adoeceu. Em poucas horas desenvolveu uma infecção subcutânea que provocou uma febre altíssima. Ela começou a rejeitar o biberão e estava cada vez mais apática. Encontrava-me em Espinho na altura e, nesse período (2000), ninguém sabia muito bem onde se dirigir nos casos de emergência médica infantil. Dirigi-me ao Hospital de Espinho - mas este deixara de ter urgências pediátricas; tentei uma Policlínica que, depois de chamar por telefone um médico de Clínica Geral, me passou uma "recomendação" e me reencaminhou para o Hospital de São Sebastião em Santa Maria da Feira. Com tantas voltas, esperas e viagens, era quase meia-noite quando cheguei a este Hospital. À entrada, na triagem, uma enfermeira espanhola informou-me que ali não havia urgência pediátrica nocturna e que, sendo de Espinho, eu deveria dirigir-me ao Hospital de Gaia. A febre da bebé aumentara e cada vez eram mais as horas passadas desde a última vez que ela tinha aceite beber o leite. Descontrolei-me. Levantei a voz, pedi para chamarem o director clínico. Aceitaram ver a bebé, "apenas porque ela tinha dez dias e o caso aparentava gravidade".

Na sala de espera aguardei quase uma hora até aparecer a pediatra que examinou a bebé. Depois, essa médica e uma colega, começaram a discutir o caso à minha frente como se eu fosse invisível. Pedi explicações, disseram-me meia dúzia de palavras pouco claras e comunicaram-me que a bebé ficaria internada. Eu estava em estado de choque, era mãe há muito pouco tempo, a vida da minha filha parecia estar ameaçada, deixara outra bebé (gémea) em casa. Não sabia reagir com tranquilidade mas, quando me disseram que o melhor seria deixar a bebé e voltar no dia seguinte, bati o pé. Conhecia os meus direitos, ficaria a acompanhar a bebé. Logo a seguir percebi por que razão a minha presença era indesejada. O Hospital, que abrira há pouco mais de um ano, tinha uma unidade de cuidados neo-natais muito peculiar: os bebés até aos 3 meses ficavam juntos numa enfermaria aparentemente muito sofisticada, toda envidraçada, com berços modernos, mas onde havia uma única banheira (a maior parte dos bebés tinham infecções de natureza variada ou eram prematuros/ a banheira era desinfectada uma vez por dia!) e uma única cadeira longa para as mães. A cadeira estava ocupada pela mãe de dois gémeos prematuros e, por isso, os acompanhantes dos outros 8 bebés dormiam sentados em cadeiras de madeira. Alguns juntavam várias cadeiras, improvisando assim uma cama. Eu ainda não recuperara da cesariana, não conseguia dormir em qualquer posição, por isso passei 6 dias e noites sentada. Como não havia armários, o aspecto geral daquela sala era o de um parque de campismo.

A minha filha tinha que tomar antibióticos via intravenosa. Atrasavam-se sempre em relação à hora da tomada. Reclamei. Disseram-me que havia falta de pessoal. Os médicos e enfermeiros daquele Hospital, público mas de gestão privada, auferiam de salários superiores aos seus colegas mas trabalhavam até à exaustão. Uma enfermeira disse-me que "se eles pudessem empregar meia pessoa para reduzir custos, não hesitariam". Nunca mais vi a médica que internou a minha filha. Nunca compreendi quem era o enfermeiro chefe daquela enfermaria. Felizmente a febre baixou e, ao fim de 6 dias, ela teve alta. Fiquei tão feliz que nem percebi que saía dali sem perceber a causa da doença.

II. A minha filha tem 3 meses e o quadro clínico é o mesmo. Infecção subcutânea, febre alta, rejeição de alimentos. Desta vez estou em Paris, cheguei há duas semanas. Ninguém tem dúvidas, devo deslocar-me ao
Hôpital Necker. O médico que a observa aconselha o internamento. Acompanha-me, com a bebé, até à enfermaria. Dá-me um cartão com o seu contacto telefónico. Ele é o responsável por aquela paciente, a última palavra será sempre a dele. Posso ligar-lhe se tiver alguma dúvida. Apresenta-me o enfermeiro-chefe que, enquanto uma equipa observa novamente a bebé, me faz uma visita guiada pelas instalações. O Hospital é muito antigo mas cada criança e respectivo acompanhante têm um quarto individual: berço e banheira de uso exclusivo da bebé, cadeira longa extensível para a mãe. As divisórias entre quartos são em pré-fabricado mas, psicologicamente, ter alguma privacidade faz uma enorme diferença. Em cada enfermaria há um gabinete que é partilhado por um psicólogo e um assistente social. Ali atendem entre as 9h e as 10h da manhã, depois dirigem-se a outra enfermaria. Logo no primeiro dia sou visitada pelos dois. O psicólogo observa a minha relação com a bebé. O assistente social pergunta-me se preciso de ajuda, já que, como estrangeira, posso ter dificuldade em compreender o processo burocrático da assistência médica (na verdade, ainda não tinha cartões da Segurança Social francesa e era preciso tratar rapidamente desse assunto). A febre da bebé é controlada mas não nos deixam sair do Hospital sem um diagnóstico claro. A bebé correu todas as especialidades: dermatologia, pedo-gastroenterologia, otorrino, nutricionista, etc.. Percebi finalmente que ela não fazia alergia à lactose, que podia beber perfeitamente um leite não dietético, que ela tinha eczema e que as "fissuras" na pele geravam a infecção porque as suas resistências imunológicas eram baixas. Devidamente medicada, nunca mais teve problemas. Com o crescimento ficou mais forte e hoje passa os Invernos sem gripes ou grandes constipações. O eczema não desapareceu mas está controlado.


A enorme diferença entre um sistema e outro é de natureza organizacional e cultural. A assunção clara da responsabilidade médica, a transparêcia da hierarquia dentro da organização e a interiorização do conceito de doente como cliente de um serviço público a que tem direito, são fundamentais. Qualquer reforma que não contemple estas premissas não será eficiente.



[Cartaz da Colecção de Francisco Madeira Luis, disponível no site da UA]

4.1.08

Em Salamanca


No primeiro dia do ano, para além da Catedral, da Casa das Conchas e da Plaza Mayor, encontrei Ballester. Bebemos um chocolate quente, saboreamos uns churros e aproveitei para lhe perguntar se conhecia a estátua de Pessoa no Chiado. Preferiu falar-me de hábitos e ambientes, da relação de Pessoa com a Brasileira, um pouco como a sua com o café Novelly. E logo filosofou___ sobre espelhos, a vida nos romances, os romances na vida. Mi corazón no abarca inmensidades abstractas, sino vivas, y, uno a uno, a su modo, es cada hombre una novela.

Bejar

Já ouvira falar das qualidades do Duque de Bejar mas não conhecia a Sierra com o seu nome. Os últimos dias do ano foram passados aqui. Aconselho a estação de La Covatilla a (eternos) principiantes como eu.

2.1.08

Ela andou a roubar a tarde à cidade

(...) Na cidade todos se lamentavam porque entardecia tão cedo__a noite sem um céu estrelado dificultava muito a vida aos seus habitantes.
O Menino que retirou as rodinhas de apoio da sua bicicleta e se aventurou no primeiro percurso heróico partiu uma perna porque ao virar da esquina se fez noite.
O Homem enfastiado com o trânsito desistiu de trautear e sonhou em lhe dar umas palmadas no rabo e penetrá-la com força. (...)


Uma (rara) boa notícia neste novo ano: a
Louise voltou!