31.1.09

Wanderlust

WANDERLUST. Desejo de viajar, de caminhar, de ir, apenas ir, a qualquer lugar. Até ao desconhecido, até algo novo.


Björk. Para ouvir até ao fim e com o volume no máximo...

30.1.09

Porto doce

É um dos mais belos poemas de Eugénio de Andrade tendo a cidade do Porto como cenário. Canta assim:

UM RIO TE ESPERA

Estás só, e é de noite
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.

Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.

Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.

Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te de tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.

Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque,
sombra pura
nos grandes dias de verão.

Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.

Eugénio de Andrade
in Antologia Breve, Edit. Limiar, 5ª. Edição, 1985

Porto velho

Fotos MRF
28-01-2009


Com uns 15 ou 16 anos, em dias de muita sorte, a minha mãe dava-me algum dinheiro para ir ao Porto fazer compras. Ia com a minha irmã e corríamos a 31 de Janeiro para os sapatos e a Sta. Catarina para as roupitas. Adorávamos os Porfírios! Dessas viagens de ida e volta guardo memórias bem divertidas. Tínhamos que correr para regressar cedo a Espinho! E corríamos, tanto que a C. perdia sapatos e eu esbarrava contra outros passantes. Cada uma tinha a sua especialidade. Já não passava pela estação de São Bento há anos. Continua belíssima, mas há um cheiro a progresso - o metro ali à porta com as suas linhas A, B, C, ..., a sofisticação do cartão «andante», ... que só é quebrado pelos estabelecimentos comerciais que já eram antigos quando eu tinha 15 ou 16 anos. Dão um carácter muito próprio à cidade mas não vivem de saudade. O que é que os mantém de pé? E vão aguentar quanto tempo mais?


29.1.09

E se Obama fosse africano?

(...) Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar
neste texto.

27.1.09

Mi Tradi quell'alma ingrata


Mozart nasceu a 27 de Janeiro de 1756. É o pretexto para voltar à minha ária preferida de Don Giovanni (Acto II, cena 2). Donna Elvira é a Divina Callas. Para ouvir até ao fim e com o volume no máximo...

Mi tradì, quell' alma ingrata,
Infelice, o Dio, mi fa.
Ma tradita e abbandonata,
Provo ancor per lui pietà.
Quando sento il mio tormento,
Di vendetta il cor favella,
Ma se guardo il suo cimento,
Palpitando il cor mi va.

26.1.09

Grelha de análise (4)


OBRA: LOUCURA, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1910
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
TEMA: TANATOS - PULSÃO PARA A MORTE

A tua alma não compreende a minha..., nem a tua, nem a de ninguém. Tenho horror à vida...(...) Que ando a fazer neste mundo? O mesmo que as outras pessoas, bem sei... Ah! Mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza... Vivo como todos, à espera da velhice, percebes? À espera da morte, compreendes? (...)
Amanhã... Terrível! Seremos velhos... A carne amolecida, já não desejará a carne (...) O foco da vida, apagado, não inflamará os sentidos... A alma, que nunca envelhece, que ama sempre, já não saberá nem poderá amar!... Diante de um corpo encarquilhado e frio, eu recordarei esse mesmo corpo quando ele era fogo... mármore... mármore que ardia... Recordarei prazeres estonteantes em horríveis despojos... Morrerei de sede, junto da fonte onde outrora tanta vez bebi a vida a haustos largos... Recordar é morrer... E eu não tenho coragem para morrer desta maneira... Não tenho! Não hei-de morrer assim! (...) A minha alma é diferente de todas as outras almas!...
p. 49

Se Marcela pensasse como eu, podíamos ser tão felizes ... tão felizes... Morrer nos seus braços... a beijar-lhe a boca... a morder-lhe os seios... Morrer com ela... com os nossos corpos entrelaçados... num êxtase supremo dos sentidos... da alma prestes a evolar-se... (...)
Mas ela não pensa como eu... ela pensa como todos... Ela gosta da vida... da vida... da vida... da vida!... (...)
- Pede-lhe... pede-lhe que consinta... que me salve desta tortura atroz... que morra comigo... Pede-lhe! Pede-lhe!..
pp. 49-50

Empurrei-o para diante dum espelho (...)
- Contempla a tua fisionomia... Vês? Vês? Tens na tua frente a imagem da loucura
p. 50

- Se eu pudesse – murmurou num tom vago – se eu lhe pudesse provar o meu amor... Mas não encontro nada... (...) É terrível... querer demonstrar a verdade e não poder... não poder...
p. 66

Eu não sofro só por isso, não... Ontem arranquei um cabelo branco. É a velhice... o «fim» que se anuncia...
p. 66

Tudo estava mal.
Quando uma ideia se apodera de um cérebro doente, só a custo perderá a sua fixidez.
p. 69

A sala estava profusamente iluminada; flores por toda a parte, os pesados reposteiros de veludo dourado, corridos. Obrigou-a a entrar. (...) Ouve-me, compreende-me, e não tenhas medo: vou despedaçar a obra-prima do teu rosto... torná-lo uma cicatriz hedionda, onde não se conheçam as feições... sem olhos... sem lábios;... Vou queimar os teus seios... sujar para sempre a brancura imaculada da tua carne... E assim, um monstro repelente, continuarei a amar-te, amar-te-ei muito mais, porque todo o tempo será para ver a tua alma... a tua querida almazinha (...) Já não recearei o tempo... o tempo não envelhece um corpo chagado... a morte não o desfeia (...) Vês... vês como vamos ser venturosos? E, numa alucinação, num delírio de loucura, correu a prateleira... pegou num frasco...
Marcela, aterrorizada, ainda sem perceber, tentava fugir, encontrar uma saída, chorava e gritava...(...)
Isto é vitríolo... vou-to lançar ao rosto... espalhá-lo pelo teu corpo... Vou-te matar o corpo para dar mais vida à alma...(...)
Miserável! És como as outras... Gostas de ser bonita... Gostas de excitar os homens... Devassa...
pp. 73-76

...ululou um uivo despedaçador... apanhou o frasco... emborcou-o...
p. 76


[Imagem: Mário Tendinha, Fetiche]

25.1.09

Sessão Evocativa Oficial dos 1050 anos da primeira referência escrita a Aveiro

A Câmara Municipal de Aveiro tem a honra de convidar V.Ex.a para assistir, no dia 26 de Janeiro de 2009, aos seguintes eventos:

16h00 – Sessão Evocativa Oficial dos 1050 anos da primeira referência escrita a Aveiro. Edifício sede da Assembleia Municipal (antiga Capitania de Aveiro). Alocução histórica pela Professora Doutora Maria Helena da Cruz Coelho.

17h15 – Inauguração da exposição “Dos artefactos à escrita”.
Na galeria do edifício sede da Assembleia Municipal (antiga Capitania de Aveiro).
Apresentada pelos Comissários: Eng.º Paulo Morgado e Dra. Sónia Filipe.

17h30 – Inauguração da exposição “BI Aveiro (959 – 2009)”. Museu da Cidade. Apresentada pelas comissárias: Professora Doutora Maria Helena da Cruz Coelho e Professora Doutora Maria José Azevedo Santos.

18h30 – Sessão de agradecimento aos antigos e actuais Autarcas de Freguesia do Concelho de Aveiro. Salão Nobre dos Paços do Concelho.


Imagem daqui


"No documento de doação testamentária efectuada pela condessa Mumadona Dias ao mosteiro de Guimarães, em 26 de Janeiro de 959, consta a referência a "Suis terras in Alauario et Salinas", sendo esta a mais antiga forma que se conhece do topónimo Aveiro.
No século XIII, Aveiro foi elevada à categoria de vila, desenvolvendo-se a povoação à volta da igreja principal, consagrada a S. Miguel e situada onde é, hoje, a Praça da República, vindo esse templo a ser demolido em 1835.
Mais tarde, D. João I, a conselho de seu filho, Infante D. Pedro, que, na altura, era donatário de Aveiro, mandou rodeá-la de muralhas que, já no século XIX, foram demolidas, sendo parte das pedras utilizada na construçào dos molhes da barra nova.
Em 1434, D. Duarte concedeu à vila privilégio de realizar uma feira franca anual que chegou aos nossos dias e é conhecida por Feira de Março.
Em 1472, a filha de Afonso V, Infanta D. Joana, entrou no Convento de Jesus, onde viria a falecer, em 12 de Maio de 1490, efeméride recordada actualmente, no feriado municipal. A estada da filha do Rei teve importantes repercussões para Aveiro, chamando a atenção para a vila e favorecendo o seu desenvolvimento.
O primeiro foral conhecido de Aveiro é manuelino e data de 4 de Agosto de 1515, constando do Livro de Leituras Novas de Forais da Estremadura.
A magnífica situação geográfica propiciou, desde muito cedo, a fixação da população, sendo a salinagem, as pescas e o comércio marítimo factores determinantes de desenvolvimento.
Em finais do século XVI, princípios do XVII, a instabilidade da vital comunicação entre a Ria e o mar levou ao fecho do canal, impedindo a utilização do porto e criando condições de insalubridade, provocadas pela estagnação das águas da laguna, causas estas que provocaram uma grande diminuição do número de habitantes - muitos dos quais emigraram, criando póvoas piscatórias ao longo da costa portuguesa - e, consequentemente, estiveram na base de uma grande crise económica e social. Foi, porém e curiosamente, nesta fase de recessão que se construiu, em plena dominação filípina, um dos mais notáveis templos aveirenses: a igreja da Misericórdia.
Em 1759, D. José I elevou Aveiro a cidade, poucos meses depois de ter condenado, ao cadafalso, o seu último duque, título criado, em 1547, por D. João III.
Em 1774, a pedido de D. José, o papa Clemente XIV instituiu uma nova diocese, com sede em Aveiro.
No século XIX, destaca-se a activa participação de aveirenses nas Lutas Liberais e a personalidade de José Estêvão Coelho de Magalhães, parlamentar que desempenhou um papel determinante no que respeita à fixação da actual barra e no desenvolvimento dos transportes, muito especialmente, a passagem da linha de caminho de ferro Lisboa-Porto, obras estas de capital importância para o desenvolvimento da cidade, permitindo-lhe ocupar, hoje em dia lugar de topo no contexto económico nacional."

BIBLIOGRAFIA: "DIAS, Diamantino, Revista AVEIRO, Câmara Municipal de Aveiro, pp. 8, 2ª Edição, Julho de 1997."

Mundo, o Pedro chegou!

Um dia apenas! O Pedro tão nas nossas vidas...,
meu sobrinho-amor imenso-tudo!

23.1.09

Why?


Andrew Bird. Para ouvir até ao fim e com o volume no máximo...


BECAUSE!

Grelha de análise (3)


OBRA: LOUCURA, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1910
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
TEMA: DEFINIÇÕES DE AMOR

Raul: Mas que vem a ser o amor? Uma necessidade orgânica, nada mais. Para obrar, podemo-nos servir de um vaso de loiça; para amar precisamos de um recipiente de carne...
pp. 10-11

Raul: Meu caro, todos nós temos um ideal. (...) Todavia, afianço-te que nele não há nenhuma mulher... não há mesmo ninguém, senão eu. Sou um bicho do mato... Ah! Não sentir ninguém perto de nós... fazer só o que a nossa vontade exige... A família! Que náusea!...
p. 12

Mas sem uma família constituída, não pode haver felicidade completa! - insurgia-me eu. Raul (...) respondia:
- De acordo. Por isso é que me repugna a vida familiar. Eu não quero ser feliz... Ser feliz, seria para mim a maior das infelicidades!... Pobre amigo... Pobre louco...
pp. 12-13

Hoje, compreendo que laborava num erro. A escultura faz corpos: eu faço corpos. A literatura faz almas: tu fazes almas. Se pudéssemos conjugar as nossas suas artes faríamos vida. Felizmente é impossível...
p. 18

Saber quem uma pessoa é, é conhecer a sua alma, penetrar nos seus pensamentos; saber como pensa, como executa. Numa noite, não se pode fazer tanto. A maioria das vezes, nem ao cabo de muitos anos. Por isso, à tua pergunta - «Quem é?» - respondi: - «Não sei». - O seu nome, sei-o: Marcela; a filha da Condessa.
p. 24

Raul era um homem, um artista para mais; uma natureza sensível portanto. O que lhe sucedera, era fatal. O amor não poupa ninguém. As melhores intenções de o desprezar, são inúteis: alfim, lá faz ele sentir s suas influências. No romance da vida de um homem – como em todos os romances – aparece sempre uma mulher, aparece sempre o amor. Afigurava-se-me apenas mais natural que a aventura do meu amigo tivesse sido qualquer coisa de romanesco, e não o prosaico, vulgar casamento.(...)
Somente, confesso, experimentei uma vaga desilusão quando vi o meu amigo descer do seu pedestal de bizarria para a banalidade. Nessa banalidade, ia ser feliz. Eu alegrava-me por consequência.

O casamento foi como todos.
p. 27

«- O matrimónio... - dizia ele muitas vezes – Ah! Como eu abomino essa palavra!... um contrato mascarado com o título de «sacramento que acorrenta inexoravelmente duas vidas; que dá todos os direitos ao homem, nenhuns à mulher!...Amem-se duas criaturas, entreguem-se uma à outra, visto que (...) a intimidade das almas exige a dos corpos; não se sujeitem porém a assinar uma escritura e o mundo considerá-los-à criminosos!!...(...)»
pp. 27-28

Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre «marido e mulher» e «amante e amante». No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos «crescei e multiplicai-vos!» Os esposos dignos (...) devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros... O amor dos amantes, é pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar bocas, os seios, os corpos todos... É a liberdade na paixão, e como é liberdade, grangeou o ódio da «gente honesta»...
Tudo isto é absurdo... tudo isto é verdadeiro. (...)
É por isso que os esposos que se amam como esposos, se não amam. É por isso mesmo que o marido tem amantes... que a sua mulher lhe segue muitas vezes o exemplo...
p. 30

Raul: Abandonando por algum tempo a escultura, dedicava-se à arte do amor, a mais bela de todas.
p. 31

A sua maneira de amar passou por várias fases: fez de Marcela uma cortesã grega, uma prostituta romana, uma cocotte parisiense...
p. 34

O amor que devia ser um sentimento todo da alma, é um sentimento só dos sentidos. (...) O amor é uma distracção... como o teatro... como as festas de igreja. Ama-se uma mulher porque ela é linda... (...) Pode-se amar uma mulher feia pelos seus vícios estonteantes, perversos...(...)
Ah! eu gosto dos teus beijos... da tua carne... gosto de enlaçar as minhas pernas nas tuas... Mas isso que vale?! O que amo, é a tua alma e essa, seja feio o corpo, será sempre bela...
p. 74

«Só se ama por interesse. Não se ama um corpo disforme». Ele possuía uma criatura ideal; pois bem, destruiria toda a sua beleza (...) Morto o corpo, amaria a alma só com a sua alma.
p. 77


[Imagem: Wlodek Warulik, Provocative, 2006]

22.1.09

Celebrar Aveiro


A cidade de Aveiro encontra-se a comemorar, em 2009, os seus 250 anos, coincidindo a data com o Ano Europeu da Inovação e Criatividade.

Tendo em conta que estas comemorações podem ser uma excelente oportunidade para Aveiro celebrar o seu passado e a sua identidade, projectar-se no contexto regional e nacional e afirmar a cultura e criatividade como factores de desenvolvimento e de competitividade urbana, um conjunto de cidadãos entendeu lançar um desafio à comunidade aveirense.

Esse desafio visa estimular os cidadãos e os agentes culturais, sociais e económicos da cidade a organizarem-se para promover um conjunto actividades que valorizem o
programa oficial das comemorações. Pretende-se com esta iniciativa promover os jovens artistas e criativos de Aveiro (do sector da cultura, arte, design, tecnologias,...), dinamizar formas de expressão que privilegiem a animação dos espaços públicos da cidade e estimular a participação dos cidadãos em intervenções criativas nas suas unidades de vizinhaça (ruas, bairros,...).

Nesse sentido, vimos por este meio convidá-los a participar numa reunião pública a realizar no próximo dia 22 Janeiro (quinta-feira), pelas 21h, no Salão Nobre da Associação Comercial de Aveiro, com o objectivo de discutir o programa de actividades a desenvolver no âmbito deste desafio, a que designámos - projecto "250 anos de Aveiro, uma ideia para o futuro".

Por razões de ordem logística, agradecemos a confirmação da vossa presença para o email amigosdavenida@gmail.com .

[Foto: MRF]

21.1.09

Grelha de análise (2)


OBRA: LOUCURA, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1910
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
Tema: «PRÁTICAS LUXURIOSAS»


A estátua que Raul actualmente cinzelava, era Marcela. (...) sem pensar na pedra – pensava agora só na sua carne; mármore ardente, palpitante... Imaginava, ensinava-lhe requintes de volúpia. Ela, de bom grado se prestava a todas as suas fantasias. (...)
era em plena luz, em estofos caros e moles, nos divãs do atelier, donde, na fúria do amplexo, rolavam para o chão – abraçados, confundidos... (...) A carne nua mostrava-se do delgado tecido; os seios erectos oscilavam com as suas pontas rosadas a enfolarem o pano... Ah! Como ele gostava de morder esses seios! Beijava-os, mordia-os tão sôfregamente, que uma vez o sangue correra...
p. 33

Adorava os seus pés de deusa; metia-os na boca, roía-os. Beijava-lhe as pernas nervosas e brancas, enlaçava-as nas suas.
Dizia-lhe: «És tão linda! A tua pele, meu amor, cobre toda a tua carne; distendida, sem uma prega... parece querer estoirar...»
p. 34

O casto doutrora, transformara-se num quase debochado, num vicioso que se deixava esvair nas ondas espasmódicas dos sentidos satisfeitos, que feria, mordia como uma besta-fera a carne que saciava a sua fúria!...
p. 36

A sua carne palpitou e – só com a carne – amou a estonteante atrizita. Numa embriaguez dos sentidos, possuiu-a nos mesmos divãs desse atelier, onde costumava estreitar o corpo de Marcela. Horrorizado com o «sacrilégio», determinara não o repetir, mas... O eterno mas: a carne é fraca...
p. 59

Dizia-lhe a Luisa:
- Eu quero que tu me ames como eu te amo... Com todo o teu corpo; com as mãos... com os braços... com a boca... E deste modo se amavam na realidade... Com a boca principalmente...
p. 59

Durante a execução de Afrodite, depois de uma hora de trabalho, seguiam-se duas de amor se amor se pode chamar à prática luxuriosa dos vícios mais requintados. (...)
Afrodite é uma obra do autor do Álcool, o que equivale a dizer: uma obra-prima. Contudo, entre todas as outras, talvez a menos notável. É uma estátua vigorosa, clássica, impecável; por isso exactamente, o génio não se manifesta nela com a mesma pujança.
p. 59

De súbito, o meu amigo abandonou de novo a arte. Percebi que fora para se entregar exclusivamente ao mármore divino do corpo de Marcela. (...) Encontrei o Raul sorumbático (...) sua mulher exuberava ventura.
p. 63



[Imagem: Lucien Freud, Naked Portrait with Reflection]

20.1.09

Grelha de análise (1)


OBRA: LOUCURA, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1910
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
Tema: RELAÇÕES HOMEM/ MULHER

Na verdade, os vinte anos de Raul haviam decorrido sem uma página de romance. Nunca um sorriso de mulher viera iluminar a sua mocidade. Sem mãe, não tinha relações.
p. 12, 20

Raul:
(...) Alguém levou o meu espírito para outras regiões. Só o corpo – o animal – ficou nas salas.
- E qual foi a criatura que operou tamanho milagre? Quem foi esse homem extraordinário...?
- Não foi um homem.
- Uma mulher?!... AH! Então compreendo tudo.
- Não compreendes coisa alguma...(...)
- Já te disse que o «animal» ficou na sala. Não viu portanto a minha companheira. A minha alma só, é que a viu... e a minha alma achou-a linda...

(...) - Com uma mulher bonita, para ocupar toda uma noite, a matéria da palestra só podia ser uma: o amor e o galanteio; tudo isso habilmente misturado com modas, teatros e um bocadinho de maledicência.
- Bem te dizia eu. Não compreendeste nada. Se a conversação tivesse versado sobre tais futilidades, os meus nervos não a teriam podido suportar. Falámos doutras coisas... De coisas muito diferentes... de coisas muito semelhantes...
p. 22

A essa palavra «namoro», Raul, com um gesto violento, largou-me o braço e exclamou asperamente:
- Cala-te... Ah! Cala-te!
p. 23

...regressei a Lisboa. Encontrei outro Raul: alegre, despreocupado, nada misterioso... (...)O motivo: é que nesse dia, ajustava-se o seu casamento com Marcela. O fim do mundo, ter-me-ia causado menos espanto...
p. 25

Raul e Marcela – dizia-se – não eram dois esposos, eram dois amantes.
p. 30

Raul e Marcela, amavam-se verdadeiramente; quer dizer: não se amavam como esposos. Raul era um artista. Abandonando por algum tempo a escultura, dedicava-se à arte do amor, a mais bela de todas.
p. 31

Pensou em se estabelecer em Paris. Não o fez por causa de Marcela, que se desgostaria longe dos seus pais, das suas relações.
p. 53

Dizia-lhe a Luisa:
- Eu quero que tu me ames como eu te amo... Com todo o teu corpo; com as mãos... com os braços... com a boca... E deste modo se amavam na realidade... Com a boca principalmente...
p. 59

Foi por essa altura que eu vi Marcela perder a sua habitual alegria: os lábios descorados, os olhos pisados, indicando lágrimas, evidenciavam qualquer desgosto. Esperei que me escolhesse para seu confidente, como já tinha feito uma vez. Calava-se.
p. 60

Entre os dois esposos houve pela primeira vez uma cena. (...) Depois, reflectindo, implorara o perdão com soluções, jurara eterno arrependimento... Tudo quanto pediu obteve...
p. 60

... continuava a precisar de modelos. Luísa, porém, foi banida.
p. 60



[Imagem: Christian Schad, Self-Portrait (detalhe),1927]

19.1.09

Reverberação


A mulher é um ser inferior... em geral de pouca inteligência; fútil, má e falsa.
Mas decerto. É isso. É isso porque a fizeram assim. Fizeram-na assim os homens, e ela mesmo colaborou na sua destruição. As mães são as piores inimigas do seu sexo.
(...) em nome dos bons princípios, esvaziaram-vos os cérebros, trocaram-vos as almas!*


Andava eu a ler estes pensamentos profundos do Mário de Sá-Carneiro... Estava mesmo a precisar de alguém que me elevasse a auto-estima com um blogue de ouro! :)

Obrigada,
Cláudia, só podias ser tu!

Quanto às seis nomeações que devo fazer..., esvaziaram-me o cérebro. Em nome dos bons princípios, p.f. consultem a coluna da direita... (desactualizada há meses porque o Blogrolling anda em mudanças e não está operacional!)



* Mário de Sá-Carneiro, «O Incesto» (1912), in Princípio e Outros Contos, Publicações Europa-América, Lisboa, 1985, p. 220

Papoilas de Janeiro

Quando alguém que escreve e repensa assim se une a alguém que desenha e matiza assim, surgem... papoilas!

O lançamento é no próximo sábado, dia 24, às 16h, na Vila da Luz...

18.1.09

Fado Moliceiro

[Foto MRF]

Morro de amor pelas águas da ria
Esta espuma de dor eu não sabia
Sou moliceiro do teu lodo fecundo
Sou a Ria de Aveiro, o sal do mundo

Vara comprida
Tamanho da vida
Braço de mar
A lavrar, a lavrar

Morro de amor nesta rede que teço
E é no sal do suor que eu aconteço
Para além da salina
O horizonte me ensina
Que há muito mar
Muito mar p'ra lavrar
P'ra lavrar


"Fado moliceiro" é um fado com poema de José Carlos Ary dos Santos e música de Carlos Paredes. Do ponto de vista musical é uma obra rara. É dos poucos temas que Carlos Paredes tem com letra e interpretação vocal. Em 1983, Carlos do Carmo publica "Um homem no país". A sétima faixa do disco corresponde a este "Fado moliceiro". O disco vem na sequência de "Um homem na cidade", sobre Lisboa, propondo este novo trabalho uma viagem por vários espaços de Portugal, falando das suas gentes, trabalhos, paisagens, maneiras de ser e falar. Por morte do poeta destes dois discos - José Carlos Ary dos Santos morreria um ano depois do lançamento do disco -, não pôde realizar-se o desejo de fazer um intitulado "Um Homem no mundo".

25 anos depois, poeta castrado, não!


José Carlos Ary dos Santos
Lisboa, 7 de Dezembro de 1937 — 18 de Janeiro de 1984

Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
--- é tão vulgar que nos cansa ---
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
--- a morte é branda e letal ---
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
--- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
--- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

16.1.09

O Sonho

Waltz with Bashir de Ari Folman, Israel, 2008


Para sonhar, precisas de dormir
nem que seja só por um momento
Mas alguns companheiros
morrem de sono e de sonho
e a regra anula-se

Para sonhar, precisas de encher
os olhos de sol e de amor
E se o sono aumenta
o sol dir-te-á:
Levanta-te, ó sono
e espalha luz e amor no teu país

Para sonhar, seria preciso que os lábios se tornassem espingardas
que tu beijasses
como se as mulheres tivessem desaparecido da terra
se tivessem tornado lábios de mutiladas

Para sonhar, tens que dormir nem que seja só por
um momento
Mas lembra-te, o despertar é que é a regra

RACHID HUSSAIN
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 37

Erros na transparência?

Lido no Público 15-01:
Iniciativa da Associação Nacional para o Software Livre
Site particular permite conhecer e escrutinar as compras por ajuste directo de toda e qualquer entidade pública


Fui ao site indicado:
Transparência na AP

Decidi pesquisar
a compra de viaturas:
Ministério da Defesa Nacional (Secretaria Geral) adquiriu duas viaturas Mercedes-Benz por 113.595,00 euros (22/12/08). O Município de S. Pedro do Sul comprou à Salvador Caetano uma viatura ligeira de transporte escolar por 20.666,20 euros. Portanto, dois Mercedes para dois altos quadros do MDN equivalem a 5 viaturas de transporte escolar que podem ser úteis a 45 crianças x n nº viagens.
Por outro lado, o Município de Vale de Cambra adquiriu uma viatura de 16 lugares para transporte de crianças por 2.922.000,00 euros!!! Só pode ser um erro do site, não é?

Pesquisando as
obras:
A 21-10-2008, o Município de Beja adquiriu à Canon Portugal uma Fotocopiadora Multifuncional do tipo IRC3080I, para a Divisão de Obras Municipais, que custou 6.572.980,00 euros. A CMP pagou à Edimarco-Construções 971.598,00 euros pela construção de um Pavilhão Gimnodesportivo na Escola EB 2,3 de Irene Lisboa. Quantos pavilhões gimnodesportivos poderiam ser construídos pelo preço de uma super-mega-fantástica fotocopiadora? Quase 7 pavilhões! Só pode ser um erro do site, não é?

15.1.09

Artigos da Ambição


Salt of this Sea de Annemarie Jacir, 2008


Passo em revista os artigos da minha ambição:
beber chá pela manhã, subir até à cidade
em busca dos meus tesouros escondidos
escrever cartas à que aliviou as minhas feridas

Para fazer isso, preciso antes de mais da cidade
da minha alma
de tempo e duma terra de confiança
O quê? Isso é demais? Sou demasiado exigente?

Para um chá, uma manhã, um caderno e selos
precisava de fortalezas
de um exército
de canhões
Precisava de combater!


AHMAD DAHBUR
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 24

14.1.09

Tudo isto é (en)fado!

O Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, faria alguns amigos no Egipto..., se não dissesse a ninguém que dá entrevistas em casinos. Que magnífico "Príncipe da Igreja"!

Excepção


Divine Intervention de Elia Suleiman, 2002

(...)

!

Porque vivemos o que vivemos
porque vemos o que vemos
porque fazemos o que fazemos
passarei a pente fino todas as folhas
jornais, poemas, artigos, cartas
boletins, discursos
e eliminarei deles
todos os pontos de exclamação
(...)


MURID AL-BARGHUTI
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 15

The Gaza War - Take a moment to think

Peace Now, um dos mais antigos movimentos pacifistas israelita, co-fundado pelo escritor Amos Oz, clama:

We must stop the war now and find a real solution - a political solution!

13.1.09

Diário De Um Cidadão do Terceiro Mundo


Paradise Now - filme do realizador Hany Abu-Assad sobre dois palestinianos que preparam um ataque suicída em Israel. Ganhou o Globo de Ouro para Melhor Filme em Língua Estrangeira e foi o primeiro filme palestiano nomeado para o Oscar da Academia, na mesma categoria, em 2006.


Eu próprio me condenei
verto o meu veneno quotidiano
colher após colher, engulo-o
provavelmente de manhã
sem falta depois do pôr-do-sol
ou quando os pássaros e os insectos se deitam
Com a firmeza dum homem que avança
tranquilamente para a morte
levo o veneno aos lábios
bebo-o gota a gota, e rio
a bandeiras despregadas
choro a bandeiras despregadas
assusto-me a bandeiras despregadas
Medicado com os meus venenos subo para
o trono do "Não"
estremeço enlouquecido
e abraço a minha morte quotidiana
(...)


ALI FUDAH
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 34

Never this broken

I do not know how bad a life has to break in order to kill.
I have never been so hungry that I willed hunger
I have never been so angry as to want to control a gun over a pen.
not really.
even as a woman, as a Palestinian, as a broken human being.
never this broken.



Suheir Hammad
in First Writing Since - Post 9/11, 2001

12.1.09

Refugiado


Mur de Simone Bitton, 2004


O sol passa as fronteiras
sem que os soldados
abram fogo sobre ele
De manhã o rouxinol canta
em Tulkarm
e à noite, janta e dorme
em paz
com os pássaros dos kibbutzim
Um burro perdido na linha de fogo
rói a erva
em paz
sem que os soldados disparem sobre ele
e para mim
teu filho refugiado, ó terra da minha pátria
entre os meus olhos e os teus horizontes
as muralhas das fronteiras


SALIM JABRANE
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 40

11.1.09

Tudo É Como Dantes


Occupation 101: Voices of the Silenced Majority
Pequeno excerto do Documentário realizado por Sufyan Omeish e Abdallah Omeish, 2006


Tudo está ainda como dantes
desde que partimos para a guerra
desde a infância
Talvez o sol destes anos tenha desbotado o branco
das cortinas
as pedras da alameda se tenham arredondado e
ganho brilho
Talvez a erva tenha crescido
ou tenha secado
As três vidraças estão como dantes
tal como a fotografia de família
o Corão encadernado
o rosário da avó desaparecido
Tudo está como dantes
nada mudou
excepto nós
nós que caímos
do sino da escola
na guerra
e ainda não voltámos

GUASSANE ZAQTANE
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 52

O Impossível

Três semanas de ofensiva na Faixa de Gaza:
- 854 palestinianos mortos, entre os quais 270 crianças e 98 mulheres;
- 3350 feridos.

Israel promete intensificar ataques.(...) Também o Hamas fez saber que não tenciona cumprir o apelo da ONU para uma paragem das hostilidades, tendo disparado hoje pelo menos oito mísseis artesanais contra o sul de Israel, causando dois feridos civis.

Fonte: Público, 10-01-2009


Pavel Wolberg/European Pressphoto Agency


(...)
Dir-se-ia que somos vinte prodígios
em Lidda, em Ramlah, na Galileia.
Aqui permaneceremos
sobre os vossos peitos como um muro,
nas vossas gargantas como um pedaço de vidro...
como o espinho dum cacto,
e nos vossos olhos como uma tempestade de fogo.
(...)

TAWFIQ ZAYYAD
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 54

10.1.09

Bilhete de Identidade

Gaza
Fotos CBS e Muhammed Muheisen/AP


Escreve
sou árabe
o número do meu bilhete de identidade é o
cinquenta mil
tenho oito filhos
e o nono chegará... depois do Verão
Ficarás irritado?

Escreve
sou árabe
trabalho com os meus companheiros de infortúnio
numa pedreira
tenho oito filhos
para eles extraio da rocha
a carcaça do pão
a roupa e os cadernos
E não venho mendigar à tua porta
não me curvo
no átrio da tua casa
Ficarás irritado?

Escreve
sou árabe
Tenho um nome vulgar
sofro num país
que ferve raiva
As minhas raízes...
fixadas antes do nascimento do tempo
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e das oliveiras
antes da erva
O meu pai...
da família do arado
e não dos senhores de Nujub
O meu avô, um camponês
sem árvore genealógica
Ensinou-me os movimentos do sol
antes da leitura
A minha casa
uma cabana de guarda
feita de canas e ramos
Estás contente com a minha condição?
Tenho um nome vulgar

Escreve
sou árabe
cabelos... pretos
olhos... castanhos
sinais particulares
na cabeça um keffiah seguro por um cordel
A palma da minha mão, rugosa como a rocha
arranha a mão que aperta
o meu endereço:
sou duma aldeia perdida, sem defesa
e todos os homens estão no campo e na
pedreira...
Ficarás irritado?

Escreve
sou árabe
Tu espoliaste-me das vinhas dos meus antepassados
e da terra que cultivava
com todos os meus filhos
e só nos deixaste
a nós e aos nossos descendentes
este cascalho
o vosso governo
vai também apoderar-se dele
como dizem?

Então
escreve
ao alto da primeira página
Eu não odeio os meus semelhantes
e não ataco ninguém
Mas... se um dia me obrigarem a passar fome
comerei a carne do meu espoliador
Fica atento... fica atento
à minha fome
e à minha cólera!


MAHMUD DARWICH
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 25-27

Poema Que Não É de Jacques Prévert

Gaza
Haim Bresheeth

Acabarão os três
cada um na barriga do outro
um leão
um lobo
e uma gazela
Morrerão os três
o rei fascinado pelo silêncio dos seus súbditos
o lobo diante do espelho, deslumbrado
com a sua pele
e o poeta apanhado na armadilha do seu poema
Acabarão todos
cada um na barriga do outro
de amor, de aborrecimento ou de cansaço
morrerão todos
saciados ou famintos
morrerão
e talvez nenhum deles saiba dizer porquê


KHAYRI MANSUR
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 42

9.1.09

Desejos Antigos

Gaza
Haim Bresheeth

Não entres
peço-te
Eles estão a dormir
cantei-lhes durante muito tempo canções de embalar
e acabaram por adormecer

Não entres
peço-te
fala-me da porta
Tenho medo do roçar dos teus vestidos
do perfume deles derramado
Eles estão a dormir
cansaram-me
fiz-lhes reluzir o sono e acabaram por adormecer

Deixa dormir os meus filhos
peço-te
Enterrei vivos os meus filhos
e agora preciso de paz


ZAKARIA MOHAMMED
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea

Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 46

Os Amantes

Gaza
Haim Bresheeth


Ninguém acredita nos amantes
Enquanto estão vivos, os cafés fecham à hora
e os táxis são raros depois da meia-noite
A própria noite não acredita neles
e retira-se cedo dos jardins públicos
para invadir os quartos de dormir
onde as paredes gemem sob o peso das coisas
E, quando morrem, os seus caixões são estreitos
como os dos outros

KHAYRI MANSUR
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 43

8.1.09

Também Nós Amamos a Vida

Gaza
AP Photo/Eyad Baba

Também nós amamos a vida quando podemos.
Dançamos entre dois mártires e no meio deles
erguemos um minarete de violetas ou uma
palmeira.

Também nós amamos a vida quando podemos.

Ao bicho-da-seda roubamos um fio para tecer o
nosso céu e estancar o êxodo.
Abrimos a porta do jardim para que o jasmim saia
para a rua como um dia bonito.

Também nós amamos a vida quando podemos.

Na morada que escolhemos, cultivamos plantas
vivazes e recolhemos os mortos.
Sopramos na flauta a cor da distância,
desenhamos um relincho no pó do caminho.
E escrevemos os nossos nomes, pedra a pedra. Tu,
ó raio, ilumina a nossa noite, ilumina-a um pouco.

Também nós amamos a vida quando podemos.


MAHMUD DARWICH
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 30

A Era dos Vivos

Gaza
AP Photo/Majed Hamdan


Os vivos
não desistem
de viver
Os mortos também

MOHAMED AL-AS'AD
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 13

7.1.09

Os Filhos... e os Meus Filhos

Gaza
Suhaib Salem/Reuters


Os filhos nascem
recebem-nos no berço
os nomes escolhidos
na árvore genealógica
dos respeitáveis antepassados
Recebem-nos os programas de poupança
a visão distante do futuro
e o aroma da canela fervida
no lume do desejo
Recebem-nos os aniversários
as festas
e os fatos novos

Os meus filhos nascem
recebem-nos as lágrimas do amor
o arrepio do medo
À porta da maternidade
esperam-nos os olhos dos cães raivosos
esperam-nos as matracas da polícia
esperam-nos
os programas da liquidação física
e da visão distante da morte

Os meus filhos nascem
e com eles nascem
as bombas de fósforo
com os seus clarões espantosos
como os fogos de artifício
do carnaval
Os meus filhos nascem
com seus pequenos caixões

SAMIH AL-QASSIM
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 17-18

Extensão da Poeira

Gaza
AP Photo/Hatem Omar


Sim meu assassino
meu comensal, sim
nós continuamos a envelhecer, a envelhecer aqui,
como o cipreste da montanha
Sim, Mohammed
a distância continua a crescer
Os frutos e as decepções passadas
continuam a passar
Sim, os hotéis juntaram-nos depois da destruição
das casas
E esta poeira espessa cobre as nossas janelas
as nossas almofadas
a espessa poeira cobre os rostos
as conversas matinais e os serões
as saudações e as pulseiras
cobre o canto

MOHAMMED AL-QISSI
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 19


6.1.09

O Desfraldar

Gaza
AP Photo/Nasser Ishtayeh



Uma noite, o oceano entrou em minha casa
Era
um velho respirando
como uma antiga locomotiva
Convidei-o a sentar-se
junto da janela
para que se recompusesse
e eu lesse em sua honra alguns poemas
Mas ele continuou de pé, ofegante
Ofereceu-me peixes
conchas
e partiu

De manhã examinei a minha casa: não havia telhado
nem porta nem janela
nem parede
Tudo estava partido e molhado
Até eu, oh meu Deus
estava partido como um vaso
Já não tinha lábios para falar
braços para cingir o tronco duma mulher
Do meu corpo só restava
uma flor saliente,
o meu coração no meio dos escombros


IUSUF ABDELAZIZ
in Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
Selecção e tradução de Albano Martins
Edições ASA, 2004, pp. 12

À escuta #80

A - Os planetas podem arder?
- Podem...
A - ... mas a Terra não!
- A Terra não. Mas, há muitos milhões de anos, quando ainda existiam dinossauros, havia muitos vulcões... Foi assim que surgiram muitas montanhas... E houve um asteróide...
A - Isso foi quando Jesus existia?
- Não, foi muito antes, milhões de anos antes...
S - Cada vez acredito menos que foi Deus que criou tudo... porque, se é assim, em vez de ser Jesus, que é Deus, a criar os dinossauros, se calhar foram os dinossauros a criar Jesus...