28.3.05

O problema com a religião


Salman Rushdie

Uma newsletter de Luis Mateus, presidente da associação República e Laicidade, chamava a atenção para este artigo (exclusivo DN/The New York Times Syndicate) de Salman Rushdie. Em 1989, o Ayatollah Khomeini lançou uma fatwa sobre o autor de Versículos Satânicos. Mas, como veremos, o seu problema com a religião ultrapassa essa sua experiência pessoal.

Nunca pensei em mim como um escritor que escreve sobre religião até uma religião ter começado a perseguir-me. A religião era uma parte do meu assunto, claro – para um romancista do sub-continente indiano, como poderia não ser assim?

(...) Agora, passados 16 anos, a religião persegue-nos a todos e, apesar de a maior parte de nós pensar, como eu pensei em tempos, que temos outras preocupações mais importantes, vamos todos ter de enfrentar o desafio. Se falharmos, este assunto em particular pode acabar por tomar conta de nós.
Para aqueles de nós que cresceram na Índia no rescaldo dos motins separatistas de 1946-1947, que se seguiram à criação dos Estados independentes da Índia e do Paquistão, a sombra desse massacre manteve-se como um aviso terrível sobre aquilo que os homens fazem em nome de Deus. E essa violência na Índia tem sido demasiado recorrente - em Meerut, em Assam e mais recentemente em Gujarat. Também a história europeia está cheia de provas dos perigos da religião politizada: as guerras francesas da religião, os amargos problemas irlandeses, o "nacionalismo católico" do ditador espanhol Franco e os exércitos rivais na guerra civil inglesa que iam para a batalha a cantarem ambos os mesmos hinos.
As pessoas sempre se viraram para a religião para obter respostas às duas grandes questões da vida: Donde viemos? E como devemos viver? Mas quanto à questão das origens, todas as religiões estão, simplesmente, erradas. O universo não foi criado em seis dias por uma força suprema que descansou no sétimo dia. Nem foi amassado, até se formar, por um deus do céu com uma batedeira gigante. E quanto à questão social, a verdade nua e crua é que sempre que a religião se senta aos comandos da sociedade o resultado é a tirania. O resultado é a Inquisição ou então os talibãs. Contudo, as religiões continuam a insistir que fornecem um acesso especial às verdades éticas e consequentemente merecem um tratamento e uma protecção especiais. (...)
A emergência do islão radical não precisa de ser descrita aqui, mas o ressurgimento da fé é um assunto mais amplo do que isso.

Nos Estados Unidos actuais é possível para quase toda a gente – mulheres, homossexuais, afro-americanos, judeus – candidatar-se e ser eleito para um cargo elevado. Mas um ateu confesso não teria mais hipóteses que um pregador no deserto. Daí a crescente qualidade santimonial do discurso político americano. Segundo Bob Woodward, o actual Presidente vê-se a si próprio como um "mensageiro" a fazer "a vontade de Deus", e "valores morais" tornou-se a frase código para o fanatismo conservador, anti-homossexual, anti-aborto. Os democratas derrotados também parecem estar a escorregar para este tipo de terreno, talvez em desespero de alguma vez poderem vir a ganhar umas eleições de outro modo.
Segundo Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, "o choque entre aqueles que acreditam e aqueles que não acreditam irá ser um aspecto dominante das relações entre os EUA e a Europa nos próximos anos". Na Europa, as bombas nas estações de comboios de Madrid e o assassínio do realizador holandês Theo Van Gogh são vistos como avisos de que os princípios seculares que estão na base de qualquer democracia humanista precisam de ser defendidos e reforçados.
Mesmo antes de acontecerem estas atrocidades, a decisão francesa de banir os símbolos religiosos tais como os lenços islâmicos teve o apoio de todo o espectro político. As reivindicações islâmicas para aulas separadas e pausas para oração foram também rejeitadas. São poucos os europeus que hoje em dia se consideram, a si próprios, religiosos – apenas 21%, segundo um recente estudo de valores europeus, contra 59% de americanos, segundo o Pew Forum. Na Europa, o Iluminismo representou uma fuga ao poder da religião de impor limites ao pensamento, enquanto na América representou uma fuga para a liberdade religiosa do Novo Mundo – um movimento em direcção à fé, mais do que um afastamento dela.
Muitos europeus vêem agora a combinação americana de religião com nacionalismo como assustadora. A excepção ao secularismo europeu pode ser encontrada na Grã-Bretanha ou pelo menos no Governo do devotadamente cristão, crescentemente autoritário Tony Blair, o qual está agora a tentar pressionar o Parlamento a fazer passar uma lei contra "o incitamento ao ódio religioso", numa tentativa cínica de angariação de votos para apaziguar os defensores dos muçulmanos britânicos, a cujos olhos praticamente qualquer crítica ao Islão é ofensiva. Jornalistas, advogados e
uma longa lista de figuras públicas avisaram que essa lei irá limitar dramaticamente a liberdade de expressão e falhará o objectivo – irá aumentar os distúrbios religiosos em vez de os diminuir. O Governo de Blair parece olhar para toda a questão das liberdades civis com desdém: o que importam as liberdades, por muito duramente conquistadas e acalentadas que tenham sido, quando colocadas face às necessidades de um Governo que enfrenta a reeleição? E no entanto a política de apaziguamento de Blair deve ser derrotada. Talvez a Câmara dos Lordes faça aquilo que os comuns não fizeram e mande esta má lei para o lixo.
E, embora isto seja mais improvável, talvez os democratas americanos percebam que na actual América 50/50 eles tenham, possivelmente, mais a ganhar ao se posicionarem contra a Coligação Cristã e seus companheiros de viagem, e ao se recusarem a deixar que a visão do mundo de Mel Gibson modele a orientação social e política americana. Se estas coisas não acontecerem, se a América e a Grã-Bretanha permitirem que a fé religiosa controle e domine o discurso público, então a aliança ocidental ver-se-á colocada sob uma pressão cada vez maior, e esses outros regionalistas, aqueles contra os quais é suposto estarmos a lutar, irão ter grandes motivos de júbilo.
Victor Hugo escreveu que "em todas as terras há um archote, o mestre-escola, e um extintor, o pároco". Precisamos de mais professores e de menos padres nas nossas vidas, porque, como James Joyce disse uma vez "Não há nenhuma heresia ou filosofia que seja tão detestável para a Igreja como o ser humano."
Mas talvez o grande advogado americano Clarence Darrow tenha defendido o argumento secular melhor que todos os outros. "Eu não acredito em Deus", disse ele, "porque também não acredito em fadas."

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