9.1.05

Metafísica dos Tubos


Amélie Nothomb

No princípio não havia nada. E este nada não era vazio nem vago: ele não apelava a nada a não ser a ele próprio. E Deus viu que isso era bom. Por nada deste mundo ele teria criado o que quer que fosse. Mais do que convir-lhe, o nada preenchia-o.
Deus tinha os olhos perpetuamente abertos e fixos. Se eles estivessem fechados, não teria mudado grande coisa. Não havia nada para ver e Deus não olhava para nada. Ele era cheio e denso como um ovo duro, e também tinha a redondeza e a imobilidade deste.
Deus era a absoluta satisfação. Ele não queria nada, não percebia nada, não recusava nada e não se interessava por nada. A vida era de tal forma esta plenitude, que não era vida. Deus não vivia, existia.
A sua existência não teve para ele um começo perceptível. Alguns grandes livros têm primeiras frases tão pouco turbulentas que as esquecemos logo e que nos dão a impressão de que estamos instalados nessa leitura desde a alvorada dos tempos. Da mesma maneira, era impossível saber o momento a partir do qual Deus tinha começado a existir. Era como se ele sempre tivesse existido. Deus não tinha linguagem e portanto ele não tinha pensamento. Ele era saciedade e eternidade. E tudo isto provava, ao mais alto nível, que Deus era Deus. E esta evidência não tinha nenhuma importância, porque Deus estava-se nas tintas de ser Deus.


Os olhos dos seres vivos possuem a mais espantosa das propriedades: o olhar. Não há nada mais singular. Não dizemos dos ouvidos das criaturas que eles têm um ouvidar, nem das suas narinas que elas têm um narinar.
O que é um olhar? É inexprimível. Nenhuma palavra se aproxima da sua essência estranha. E no entanto, o olhar existe. São mesmo poucas as realidades que existem tanto assim.
Qual é a diferença entre os olhos que têm um olhar e os olhos que não o têm? Esta diferença tem um nome: é a vida. A vida começa ali, onde começa o olhar.
Deus não tinha olhar.


As únicas ocupações de Deus eram a deglutição, a digestão e, consequência directa, a excreção. Estas actividades vegetativas passavam pelo corpo de Deus sem que ele se apercebesse delas. A alimentação, sempre a mesma, não era suficientemente excitante para que ele reparasse nela. O estatuto da bebida não era diferente. Deus abria os orifícios necessários para que os alimentos sólidos e líquidos o atravessassem.
É por isso que, neste estado do seu desenvolvimento, nós chamaremos a Deus, o tubo.
Há uma metafísica dos tubos.

Depois de lerem este fragmento (primeiro capítulo de um livro), quem imaginam que seja Deus? O Contrabaixo será atribuído à primeira resposta correcta. Há menções honrosas para as melhores aproximações.

13 comentários:

Bhixma disse...

Um bebé

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Obrigada bhixma! É uma aproximação. Parabéns pelo teu Expresso do Oriente!

mfc disse...

Deus é filho da injustiça.
É o alento quimérico de qualquer desesperado.

O Turista disse...

Já achei que sabia responder a essa pergunta... mas por agora prefiro não opinar...
:(
Boa Semana!!

O turista - http://www.turistar.blogspot.com/

Anónimo disse...

Uma minhoca?

L.

A. disse...

tlv uma Esponja ( do sub.reino dos Poríferos)...

mas esse olhar... faz.me lembrar como não vi hoje o sinal de sentido unico em aveiro ao virar à esquerda...
e esse nao querer nada faz.me lembrar a maneira como o instructor me chumbou...

='( buahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh.... raio d cidade cheia d sentidos unicos!!! eu ja tinha feito as manobras e td! so me faltava ir ao IP5!!!

luis ene disse...

Diria um feto, mas do que saber quem era Deus fiquei foi com vontade de continuar a ler! :)

luis ene disse...

Diria um feto, mas do que saber quem era Deus fiquei foi com vontade de continuar a ler! :)

Barão d'Holbster disse...

Minha cara diva
Acho que já tens idade para não acreditar em deus...

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Minha querida Shadow, não te servirá de grande consolo mas somos tantos a reprovar no primeiro exame de condução! Oh pr'a mim, aconteceu-me o mesmo! No meu caso foi o nervosismo! As pernas tremiam tanto (mesmo sentada) que eu tentava agarrá-las!? Muitos beijinhos para uma menina que hoje precisa só de mimos!

Boabdil disse...

lamento informá-los (ar pesaroso), mas deus está morto, e foi o homem abominável quem o metou. Fui eu. Sou EU quem está no tubo.

nota: esta minha resposta não está no concurso.

r.e. disse...

Deus é Deus. que outra coisa pode ser que não seja já antes por definição? que coisa podia ser sendo parte do que não é divisível? mesmo o conceito metafórico de deus ser como... torna-se duplamente redundante, ou melhor infinitamente redundante. se É todas as coisas, por essência e forma, é como todas as coisas como elas são. se não fosse assim não era Deus. e se não fosse Deus não podia ser como nada. A auto-definição de Deus está tão elaborada (ou não fosse perfeita) que anula a necessidade de dizer algo mais do que se diz quando se diz: Deus.

Anónimo disse...

Só tenho certeza de uma coisa! Eu não sou nada! ou melhor quase nada!
Mas existo!Imagine Deus?