17.1.05

Arca de Noé


Miguel Torga

Hoje é dia para lembrarmos Miguel Torga. Ou é sempre dia. Basta querermos. Mas hoje fui buscar os livros dele, todos Edições Coimbra, com capas amarelecidas e gastas, folhas cortadas, alguns cheios de anotações numa caligrafia que foi mudando de idade.
Lembrei-me do primeiro livro que li, Bichos. E do impacto de Madalena nos meus 13 ou 14 anos. Miura, que continua a comover-me. Ainda são os meus contos.
E aquela linguagem. Frases simples, descrições de filigrana, plano sonoro rico, paisagens verdes ou secas e estaladiças, moçoilas, velhas, machos, vidas.
Pau para toda a colher em matéria de chanatos, o Rodrigo apareceu em Dailão num dia de feira a tocar a gaita dos sete ofícios - uma flauta de capador, que parecia um harmónio a cantar-lhe nos beiços.
- Temos chuva!
Sempre de ironia na ponta da língua, a Mathilde, que lavava a louça, antes mesmo de ver a cara do músico, atirou a dizedela. Depois é que chegou à varanda. E o Rodrigo, apenas a lobrigou, repenicou-lhe cá de baixo uma assobiadela afinada como um madrigal.
- O homem é doido!
Mas era por uma ave de arribação assim, exótica e atrevida, que o seu coração esperava.
(in Contos da Montanha)
Na Arca de Noé da literatura portuguesa, Miguel Torga será sempre um dos eleitos.

4 comentários:

Conde-Lírios disse...

iupi cai hey! Caí aqui por acaso envolto em farinha e trapalhadas. Bombe Log:)

Francis disse...

Curioso. Há dois ou três dias atrás lembrei-me, nem sei porquê, dos "Novos contos da Montanha" que li há muitos anos e senti um vontade de voltar a le-los. Talvez vá mesmo faze-lo.
Excelente escolha.

mfc disse...

Um Senhor na escrita.... um Senhor na vida!

Didas disse...

Sou super, hiper, furiosamente fã do homem!
Tenho tudo, tudo, mas tudo o que ele escreveu!