25.1.05

Dormir acordado II


George Papadopoulos, Blue Eye



Lembro-me de quando comecei a pensar que não saber ler era um grande impedimento. Sentada ou em bicos de pés, era sempre minúscula face aqueles adultos que falavam tão depressa. Olhava para cima tentando seguir as conversas, concentrava-me, mas havia sempre qualquer frase que eles atropelavam depois de uma aceleração, e eu perdia o sentido, deixava-me ultrapassar. Como me impressionava a velocidade com que expeliam palavras! Lembro-me de fixar a mímica dos lábios. E de a reproduzir em frente ao espelho. Sonhava com eloquência. Convenci-me então de que ela ia nascer em mim quando aprendesse a ler, isto é, quando injectasse milhares de letras, pronomes, advérbios, formas verbais, substantivos. Chamava-lhes apenas letras e palavras, mas sei que tinha percebido a importância dos adjectivos. Essas pareciam ser as palavras mais importantes. E ler era como que engolir um dicionário ou muitos compêndios.
Teria quatro ou cinco anos.

Quem exercia maior fascínio sobre mim eram os locutores de televisão, nomeadamente os pivots dos telejornais. Desconhecendo a existência dos telepontos, ficava abismada com a capacidade daqueles seres eleitos, que fixavam discursos tão longos e nunca se enganavam!
Ainda não sabia ler. Quando me explicaram que eles liam um texto que era colocado à sua frente, não desarmei a minha veneração. E passei a treinar com o jornal do meu pai. Sentava-me à sua frente a uma distância digna de admiração e ia gritando as letras que já conhecia.

Às vezes ele acabava por me puxar para si, sentava-me ao colo e perguntava: "então, quantos a tem esta página?"
O meu pai. Chamo assim outras memórias.

4 comentários:

José Teixeira disse...

Lindo, eu tambem sempre me maravilhei com as letras, era magia para mim.
Vai lá a casa que eu tenho um presente para ti, um bocadinho envenenado mas é um presente.

Menina Marota disse...

O teu texto de que muito gostei, trouxe-me à memória a infância feliz que tive. Morava, naquela altura, no Algueirão, pequena localidade no sopé de Sintra, onde as estações do Ano se sintiam como em mais lado nenhum. Fui sempre de compleição miúda, por isso, não era difícil ao meu Pai, colocar-me em cima do nosso enorme cão (naquela altura, parecia-me mais um pónei que um cão...) e rumavamos encosta acima. Debaixo do braço, levava sempre um livro e, chegados ao local de sua preferência, um jardim enorme, de que não me recordo o nome, sentava-me nos joelhos e lia-me uma história... foi assim que comecei a amar as palavras...
Jinhos :-)))
http://eternamentemenina.blogs.sapo.pt/

r.e. disse...

lembro-me que a partir dos 2 anos, passei muito tempo a desenhar. deitado no chão, horas a fio. a riscar. tentar copiar, passar por cima, pintar. uma das coisas que mais cedo comecei a gostar de desenhar foram letras. copiava-as, pintava-as, e talvez me perguntasse que coisas eram aquelas que, ao contrário dos pássaros ou dos aviões, que via para além dos bonecos onde pintava, não existiam em mais lado nenhum sem ser nos livros de onde as copiava. bom, não devo ter pensado estas coisas. mas a memória do prazer daquelas tardes sem tempo, de cores e traços, essa está aqui de onde a transcrevo. beijinho. gostei de te imaginar a ler o jornal como uma apresentadora de televisão. Jorge

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Obrigada por partilharem essas memórias. Uma abraço grande.