1.5.07

A mão de O.S. na Paisagem

O.S.
Saída da Missa

  • "(...) como se fosse possível celebrar verdadeiramente a festa, e não existisse, por detrás de tudo, cortando a alegria, cortando a vida, a mão de O.S., levantando-se acima de todas as coisas, fazendo parar o país, parar o tempo, retroceder séculos atrás, a sua mão parava o vento da mudança e espalhava a areia negra do medo, apertava em torno das casas a mordaça do silêncio, a sua mão castradora retirava ao povo a força da revolta, as pessoas dormiam de olhos abertos, atravessando o tempo sem tocar-lhe, cumprindo automaticamente o dia-a-dia, repetitivas, sombras, gastando a vida em exercícios de resignação e obediência. Os seus pés tinham sido cortados e elas não tocavam mais o mundo. Era-lhes portanto permitido fazer o que quisessem, porque a sua liberdade era aparente, e, o que quer que fizessem, não mudaria nunca coisa alguma. Podiam por exemplo ouvir o canto baixo das cigarras, ficar ouvindo, ouvindo até ensurdecerem ou até a sua consciência ser invadida por outra coisa. (...) Podiam ficar sentadas, ou deitadas, a vida inteira. Ou levantar-se e cozer pão, matar o porco, regar canteiros de goivos malvas beladona ou margaridas. (...) mas era tudo imitação da vida, porque todo o movimento era aparente, e nada acontecia."
pp 88-90
  • "(...) as cidades, os campos, as estradas, as pontes, pertenciam a O.S., nenhum lugar escapava à alçada da lei de O.S.. Projectar um bairro, uma escola, um porto, um parque, um jardim, uma casa, pressupunha definir a sociedade, o homem, a liberdade, o mundo. E porque a definição de Horácio não podia ser nunca a de O.S., os seus projectos eram sempre liminarmente recusados, ou mutilados e tornados irreconhecíveis, os artigos que ele redigia febrilmente não saíam nunca nos jornais, os livros que ela o via escrever à noite, pelos meses fora, paravam nos editores durante anos e acabavam por sair em tradução num país estrangeiro. Onde talvez fizessem pouca falta, disse Horácio...."
pp 102
  • "(...) mas O.S. defendia-se antes de tudo de si mesmo, disse Horácio. Uma comunidade seria sempre uma ameaça contra ele e por isso era preciso impedir a sua formação a todo o custo. Assim ele riscava o espaço da comunidade e as pessoas não se encontravam nunca, era um universo enclausurado e louco (uma comunidade subterraneamente germinando e de repente levantado-se, uma seara, um exército, em linha de batalha). (...) respeitar o espaço do indivíduo mas rasgar finalmente o seu universo sufocado, entender que felicidade não é a posse de coisas mas a posse de si próprio - a posse do seu espaço dentro do espaço dos outros - as pessoas sendo finalmente arquitectos de si próprios...."
pp 107



in PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO de Teolinda Gersão
Public. Dom Quixote, 1982

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