24.5.07

O Sol dos Scorta #1



"Quando partimos de Montepuccio para Nápoles, acompanhados por don Giorgio, que quis levar-nos até ao cais de embarque, pareceu-me que a terra ressoava debaixo dos nossos passos, como se resmungasse contra estes filhos que tinham a ousadia de querer abandoná-la. Saímos de Gargano, descemos até à grande e triste planície de Foggia e atravessámos a Itália de um lado a outro até chegarmos a Nápoles. Arregalámos os olhos diante de um labirinto de gritos, imundície e calor. A grande cidade cheirava a carne rija e a peixe podre. As ruelas de Spaccanapoli regurgitavam de crianças de ventres inchados e bocas desdentadas.

Don Giorgio levou-nos até ao porto e embarcámos num desses paquetes construídos para transportar famintos de um ponto ao outro do globo, entre grandes golfadas de fuelóleo. Instalámo-nos na ponte, no meio dos nossos semelhantes. Europeus miseráveis de olhar esfomeado. Famílias inteiras ou crianças sozinhas. Como todos os outros, demos as mãos para não nos perdermos na multidão. Como todos os outros, na primeira noite, não fomos capazes de conciliar o sono, receando que mãos viciosas nos roubassem o cobertor que partilhávamos. Como todos os outros, chorámos quando o imenso paquete saiu da baía de Nápoles.'É a vida que começa', murmurou Domenico. (...) Como todos os outros, voltámo-nos para a América, à espera do dia em que avistaríamos a costa, à espera, em estranhos sonhos, de que ali tudo fosse diferente, as cores, os odores, as leis dos homens. Tudo. Maior. Mais fácil.
(...)

À chegada desembarcámos com entusiasmo. (...)
Quando me apresentei diante do médico, ele deteve-me por meio de um gesto. Observou-me os olhos e, sem dizer nada, fez-me uma marca na mão, a giz. (...)
Só compreendemos o que se passava quando chegou um intérprete. Eu tinha uma infecção. (...)
O chão fugiu-me debaixo dos pés. Fui rejeitada, don salvatore. Estava tudo acabado. (...)

O intérprete exprimiu-se mais uma vez: 'Volta para trás... a viagem é gratuita... não há problema... gratuita...', só tinha aquela palavra na boca."

in O Sol dos Scorta, um romance de
Laurent Gaudé. pp. 71-73


Um fragmento de um romance galardoado com o Goncourt em França, um romance que serve a História, ficcionando aqui sobre a emigração na Europa. Depois, este artigo jornalístico sobre a imigração na Europa. Duas leituras para não esquecermos que as rotas se alteraram mas a necessidade e o medo são os mesmos.

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