29.9.07

Tentações, marcas, tradições, novo design e saudades do meu avô



Quero igual para a Joalharia Nacional, em especial para a joalharia de autor. Ana de Lima, Bruno da Rocha, Célia Vitor, Cláudia Afonso, Cristina Costa, Eric Majoral, Fátima Lopes, Filipe Caracol, Gabriel Ribeiro, Joana Caldeira, Meister, Paula Cabral, Rocha Carvão, Susana Martins, Susana Nunes, e tantos outros. Quero a nossa potencial grammy girl Mariza a promover a Gatto, marca criada em 1989 pela Diamanjóia. Quero. Conceito de produto alargado, marca, novo design, investimento em comunicação, notoriedade.

Não fora eu neta de um ourives de Gondomar que, com mãos de ouro, dava forma à filigrana. A memória. Sentado num banco de madeira, curvado sobre a mesa, o avô colocava a barra de ouro nas roldanas de uma máquina e, lentamente, a barra ia ficando mais estreita até se transformar em centenas de metros de fio. Havia sempre um aprendiz que segurava a ponta e esticava. O fio atravessava o pátio, trespassava o portão, chegava ao meio da rua. Era a primeira imagem que se via, olha o aprendiz, chegámos! "É assim que tudo começa na ourivesaria", dizia ele, abanando a cabeça se me via com um anel ou pulseira de fantasia.

Armani agora é "fantasia", é produto para massas, como a bela Beyoncé. Mas a joalheria portuguesa de autor, e os meus caros artigos da filigrana - uma arte em extinção, ainda cheiram a metal e a fogo, a luvas sujas, unhas escurecidas. São mais brutos que os diamantes que também por aqui se incrustam nas peças. Diamantes ou safiras. safiras brancas como a que vi há dias num anel Gatto (fixem a marca) na Crisálida.

O anel ficou lá, na montra, com muita pena minha. Crisálida é uma termo derivado da coloração metálico-dourada encontrada nas pupas de muitas borboletas (grego: χρυσός (chrysós) significa ouro).
As borboletas adultas emergem das crisálidas e expandem as suas asas para bombear sangue pelas veias. Esta rápida e brusca mudança é chamada metamorfose. Face à Crisálida, aqui em Aveiro, apetece-me ser borboleta. Não é para todas as bolsas mas esta ourivesaria aposta em criadores portugueses.

Acabei mesmo por perder a cabeça com outra peça - da Cristina Costa. Ao lado havia Armani, mas quem é que quer usar Armani? [Mesmo se a Beyoncé está fabulosa neste filme publicitário e a produção seja um luxo.]
[eu não sou sócia nem tampouco tenho descontos especiais na ourivesaria que aqui referi: é uma galeria de criadores portugueses, concerteza, e isso basta]

28.9.07

A Sinfonia Pastoral

A vizinha pegou então numa vela que dirigiu para um canto e assim pude distinguir, acocorado na lareira, um ser incerto, que parecia adormecido, com o rosto quase todo tapado pela espessa massa de cabelo.
- Esta menina cega. (...) Terá de ser levada para o hospício, senão, não sei o que será dela.
Fiquei chocado ao ouvir decidir assim do destino da menina (...).
Acudiu-me logo ao espírito tomar eu próprio conta daquela pobre menina abandonada (...)

A minha mulher é um jardim de virtudes e mesmo nos momentos difíceis que tivemos por vezes de passar não me foi dado a duvidar um instante da qualidade do seu coração; porém, a sua caridade natural não gosta de ser apanhada de surpresa. É uma pessoa amante da ordem, que faz questão de não ficar aquém nem ir além do dever. A sua própria caridade está regulada como se o amor fosse um tesouro esgotável.

pp 13-16

in André Gide, A Sinfonia Pastoral
Ed. Ambar, Porto, Janeiro 2006
[Original editado em 1919 pelas Éditions Gallimard]

Deus também fala na net

Temur Yakobashvili (Jacobson)
The lady day

Desculpem os crentes, mas não resisto: Deus também “fala” na net é o (suposto) testemunho de uma peregrina que ascendeu a "acolhedora" graças à net. Pode ler-se no site do Santuário:
«Engraçado, numa fase em que se discute que o uso excessivo da internet poderá ser considerado pecado, Deus chama-me e fala-me através dela. Achei a proposta aliciante e algo que ia directo ao que eu pretendia fazer, acolher os peregrinos por e em nome de Nossa Senhora, mostrando-lhes o quanto o Amor de Seu Filho é grande.
Depois de preenchida a ficha, enviei-a com o coração a transbordar de esperança de que a resposta fosse breve, e mais uma vez Deus não me desiludiu, foram poucos os dias até à noticia de que iria haver um curso para novos acolhedores em Março, faltavam apenas umas semanas para que eu fizesse parte dos Acolhedores do Santuário.
»


É um bom study case para as
Jornadas Nacionais de Comunicação Social em curso no Santuário de Fátima, subordinadas ao tema "Será verdade o que «Vemos, ouvimos e lemos»?" (sim, nos jornais, que as aparições é coisa certa!)

Enfim, está tudo em marcha para a Dedicação da Igreja da Santíssima Trindade no dia 12 de Outubro, pelo Senhor Cardeal Secretário de Estado do Vaticano, D. Tarcisio Bertone. Para os mais distraídos, laicos ou nem por isso, a obra da Igreja da Santíssima Trindade, cuja inauguração está marcada, integra-se nas comemorações dos 90 anos sobre a última das aparições que a Nossa Senhora fez aos pastorinhos. Um pormenor: segundo o reitor do Santuário, vai custar o dobro do que chegou a ser previsto, ou seja, "70 ou 80 milhões de euros". Santos da casa não fazem milagres! Ainda há umas contas por fechar e o reitor afirma: "Espero um dia publicá-las". Mais uns milhões, menos uns milhões, o que é isso! Tudo contribuições dos peregrinos que amam a Nossa Senhora e que aprenderam a perdoar!

Mas dizia eu que "Deus também fala na net": por isso, e agora dirijo-me aos crentes, não hesitem em usar este endereço electrónico para os vossos pedidos de orações. Se é pecado ou não, não sei, mas o site do Santuário de Fátima revela um enorme pragmatismo, disponibilizando-o: pedidos@santuario-fatima.pt


[Consultei notícia do DN, via A Ilusão da Visão]

27.9.07

Um homem revoltado #3

Assisti apenas ao vídeo via Publico. Não vi a emissão em directo. Mas já era tempo de alguém reagir como Santana Lopes. Mesmo se saturados da guerra de estaturas e novela de bastidores que tem sido esta eleição para a liderança do maior partido da oposição, concordamos todos que não devia ser possível interromper essa emissão (e tantas outras) para directos vazios de conteúdo. O Mourinho veio a Portugal para descansar! Seria excelente se esta atitude fizesse escola. Pena que a revolta tenha começado com alguém carente de credibilidade. Pena que tenha demorado tanto tempo a saltar da cadeira onde, diga-se, o instalaram, depois da corrida de Durão Barroso para o trono da Europa. Mas esse é outro assunto. Ontem, o homem esteve melhor que nunca.

Internet #1

A Internet não é uma simples tecnologia de comunicação. É evidente que está no epicentro de muitas áreas da actividade social, económica e política.

À medida que o fenómeno amadurece, o perfil demográfico dos utilizadores - nos EUA e Europa, aproxima-se mais da população como um todo. O acesso à banda larga favoreceu esse crescimento. Mas em África, apenas 0.6 por cento da população (uma grande parte na África do Sul) tinha acesso à Internet no remoto (eu sei) ano 2000. A info-exclusão nas zonas pobres do planeta é um problema real.

Mesmo à escala nacional, percebemos facilmente que a Internet é um instrumento de exclusão social: segundo dados de 2004*, 9 em cada 10 especialistas de profissões intelectuais e científicas utilizavam Internet, contra 1 em cada dez trabalhadores não qualificados.

Os próprios Estados advertem de que não haverá uma verdadeira inserção na realidade contemporânea sem uma participação eficiente no mercado do conhecimento. Por isso fico perplexa quando Manuel Castells, autor dos três volumes de A Era da Informação (1996-2004) e de Galáxia Internet (2001), afirma que: «A web não isola e tampouco é instrumento do poder ou do mundo dos negócios. Ao contrário. É um espaço descentralizador e cidadão. A Internet é um fenómeno económico, social e político, mas não é tecnologia que traga uma solução global para os problemas da humanidade nem um sistema que crie desigualdades sociais.»

Sobre os efeitos da web no grau de sociabilidade, continuam a realizar-se estudos, mas não há consenso. Que qualquer determinismo tecnológico seria redutor, concordo. O impacto da Internet tornou-se possível devido a uma série de mudanças sociais que começaram em 1850, com a revolução industrial, e, numa escala temporal mais curta, no pós-guerra. Estou a falar de coisas tão diferentes, mas convergentes no efeito que permitiu a expansão da Internet, como o acesso a bens de consumo de massa, a competitividade em matéria científica (e bélica) entre os dois blocos na Guerra Fria, a cultura libertária dos anos 60 e 70, a crise da família tradicional e o declínio do papel de cooperação que a família tinha, bem como os novos modelos de urbanismo, em prol de um certo culto do individualismo. A Internet estará a criar uma revolução e estaremos no início de uma nova era, mas as condições para essa revolução se operar estavam criadas.

Não é uma solução global para os problemas da humanidade. Mas acentua desigualdades. Pior que isso, apesar da sua influência no sistema socio-político, pela possibilidade que dá ao cidadão comum de expressar descontentamento (político), pela emergência de movimentos sociais criados por comunidades vituais (movimentos "emocionais" porque pretendem formar consciências e não tomar o poder do Estado, ao contrário dos partidos políticos), apesar da proclamada democracidade (ou aproximação ao modelo democrático) (Alain Touraine dizia há anos que não existiam sociedades democráticas ou totalitárias, mas sociedades que aspiravam a um ou a outro modelo), apesar destas múltiplas vozes que visam calar "a voz do dono", nunca o mundo esteve tão desiquilibrado e injusto. (esqueçam o "nunca", ou talvez não).

A verdade é que a par dos avanços (cada vez mais céleres) em termos de progresso tecnológico, científico e até cívico - que nos faz viver envolvidos em redes de comunicação transnacionais, em redes de mobilidade viária e áerea infindáveis, em circuitos de migrações, em países com sistemas de ensino obrigatório e sistemas nacionais de saúde gratuitos, em normas de regulamentação comunitárias e princípios de direitos humanos - a par deste movimento, nunca a incerteza e o medo foram tão grandes e diversos. Falta de trabalho, solidão, depressões, aumento da criminalidade, terrorismo, insegurança, degradação ambiental, miséria e fome, racismo, intolerância religiosa. Castells tem razão, a culpa e a solução não estão na Internet. O nome do papão é outro: capitalismo global. Em 2015, vaticina a ONU, 51 por cento dos pobres do mundo estarão concentrados em África.


Mas como podemos não utilizar essa ferramenta potente, no sentido de diminuir o déficit de justiça no mundo? Como deixar passar em claro que a rede que une pessoas, povos e continentes, e que é contemporânea do turismo em massa, não favorece maior aceitação dos fluxos migratórios, coincidindo a sua expansão, pelo contrário, com o crescimento de nacionalismos extremistas e sentimentos de xenofobia? A Internet pode ou não mudar a nossa visão global do mundo?

A web é, e será cada vez mais, instrumento do poder e do mundo dos negócios. Não me refiro apenas ao desenvolvimento de tecnologias de controle - as de identificação (passwords), as de vigilância (que interceptam mensagens) e as de investigação (elaboração de bases de dados). Dados os apelos à segurança na rede e à vulnerabilidade de cidadãos (e de Estados), estas novas tecnologias que atacam a privacidade dos cidadãos e afectam a liberdade de expressão, são aceites por todos nós com naturalidade. A web é um instrumento do poder porque as propostas educativas reflectem mais tecnologia e menos humanidade. A web é parte da solução global porque é um instrumento potente criado pelo Homem e formatado para o servir. Não existem «não lugares», mesmo se o virtual é real.


* Inquérito à Utilização das Tecnologias da Informação e da Comunicação pela População Portuguesa, Resultados 2004, UMIC, Observatório da Inovação e Conhecimento

26.9.07

Poemas de silêncio


Jorge Molder
Série Nox, 1999
Fotografia a preto e branco
102 x 102 cm



Foto detalhe de Jorge Molder mimo, por MRF
CCB, Junho 2007



«La parole n'est pas nécessaire pour exprimer ce qu'on a sur le cœur».
Marcel Marceau





Desenho de Marcel Marceau

«C'est en 1947 qu'il avait créé Bip, ce Pierrot du XXe siècle, en proie aux difficultés du monde moderne, dont Jean Cocteau disait : «Il entre chez nous sur ses pieds de voleur avec le terrible sans-gêne du clair de lune.» [Liberation]

Revista História

Fui alertada por Lauro António para o fim da publicação da revista História.

Pelo que conta esse (também) colaborador antigo da revista, esta "deixou de contar com alguns apoios oficiais (porte pago, apoio do IPLB, etc) e deu por terminada a publicação no nº 100 desta nova série. Fernando Rosas despediu-se de director em cargo, mas Luís Farinha procura meios para retomar a publicação. Apoios de qualquer género precisam-se: mecenato de um banco, de uma empresa, de uma fundação, anúncios, recolha de assinantes, apoios estatais, etc. Com cerca de mais 10.000 euros / ano, a revista volta às bancas. É algo de irrisório."

Divulguem, participem ou convençam mecenas, protestem. Assinem a petição se estiverem de acordo com o movimento:

Petição on line

25.9.07

de rerum natura

Talvez não saibam, é coisa íntima: eu gosto de chuva. de torrentes de chuva. "Descarg-Ar, chor-Ar, solt-Ar, valeir-Ar, liber-Ar alivi-Ar, Medr-Ar...", Aquiet-AR. Yo no sé, mira, es terrible cómo llueve. Sei que este som cheiro sensação se aproxima. Já comprei botas e camisolas de lã. para me proteger do que me consola.
Talvez não saibam, é coisa íntima: gosto de brisas quentes e de noites de estio com grilos e rãs soltando a voz. Na Jamaica gravei o som dessas noites perfeitas e entrei no Outono com o telemóvel a coaxar sempre que me ligam.

Transparências

Helena Botto em Medeia


O Projecto Transparências, dirigido por Helena Botto, tem um blogue. Vale a pena passar por lá, vale a pensa sair e atravessá-los ao vivo.

24.9.07

Um homem revoltado #2

A extensão do domínio da luta.

Um homem revoltado #1


Que vem a ser um homem revoltado? Um homem que diz - não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, a partir do seu primeiro movimento. Um escravo que durante toda a sua vida recebeu ordens considera subitamente inaceitável uma nova ordem. Qual é o conteúdo desse «não»?

Significa, por exemplo, «as coisas já duraram em demasia»; «até aqui, sim: daqui em diante não»; «estão a ir demasiado longe», «há um limite que não poderão ultrapassar». Em suma, este não afirma a existência de uma fronteira. [...] De certa maneira, opõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido para lá do que lhe parece admissível.

p.21

in Albert Camus, O Homem Revoltado
Edit. Livros do Brasil, Lisboa, Janeiro de 2003
[Edição original: L'Homme Revolté, Éditions Gallimard, 1951]



ADENDA: ACHO QUE ELE COMPREENDEU ESTE TEXTO.

23.9.07







Romy Schneider. apeteceu-me. em dia de aniversário.



Le Vieux Fusil, Robert Enrico, 1975
Romy e Philippe Noiret. que se nos arrebatam...



Les Choses de la Vie, Claude Sautet, 1970
Romy e Piccoli. que nos cantam Hélène, uma primeira vez...



La Piscine, Jacques Deray, 1969
Romy e Delon. que se amam...


[Romy Schneider. Viena, 23 de setembro de 1938 — Paris, 29 de maio de 1982]

22.9.07

A morte feliz #3

Até ali, tinha vivido. Agora poderiam falar da sua vida. Daquele grande impulso de destruição que o tinha impedido, da poesia fugitiva e criadora da vida. Nada ficava além da verdade sem rugas que é o contrário da poesia. De todos os homens que transportara no íntimo, como cada homem no início da vida, de tantos seres diferentes que misturam as suas raízes sem contudo se confundirem, sabia agora qual deles tinha sido. E essa escolha que cria o destino de um homem, tinha-a feito conscientemente e com coragem. Aí residia toda a sua felicidade de viver e de morrer. Compreendia que ter medo daquela morte que ele encarara com uma angústia de animal era também ter medo da vida. O medo de morrer justificava um apego sem limites a tudo o que é vivo no homem. E todos aqueles que não tinham praticado os gestos decisivos que enobrecem uma vida, todos aqueles que temiam e exaltavam a impotência, todos tinham medo da morte, pela sanção que ela imprime a uma vida de que sempre tenham ficado distantes.[...] E a morte era um gesto que priva para sempre de água o viajante que procurou em vão acalmar a sede.

pp. 144

in Albert Camus,
A Morte FelizEdit. Livros do Brasil, Lisboa, Outubro 2002
[Edição original: La Mort Heureuse, Éditions Gallimard, 1949]

A Morte Feliz foi concebida entre 1936 e 1938. Existem dois "dactilogramas" deste romance, do tempo de Camus, que fazem parte do espólio conservado por Madame Camus. Em 1961, Madame Camus mandou fazer uma nova cópia dactilografada, segundo a primeira versão, com as variantes da segunda escritas à mão. Existem ainda dossiers preparatórios e notas sobre A Morte Feliz nos Carnets. Encontra-se aí manuscrito, mas em fragmentos dispersos, quase todo o romance. A primeira referência precisa que aparece nos Carnets, Eduardo Graça, data de 1936 e é um plano para a «II Parte». Depois deste livro, peguei n' O Homem Revoltado e na peça adaptada do romance de Dostoievski, Os Possessos, do mesmo Camus. E muitas vezes me apeteceu trocar ideias e emoções, aprender, certamente, consigo. (Quem conhecer o Absorto, compreenderá de imediato porquê).

Se existem livros que podem mudar as nossas vidas


... são os destes senhores. Assimilamos paradigmas, reflectimos sobre a realidade em que vivemos, fazemos síntese(s), projectamo-nos nas suas elaborações, às vezes tememos as suas conclusões, as tendências que percebem no devir das (diferentes) civilizações. Ando a ler o quarto da lista. O último foi um dos primeiros a mudar a minha vida.
Eis o ranking da Social Science Citation Index (SSCI) relativo ao grupo de académicos mais reconhecidos no mundo das Ciências Sociais, 2000-2006:

Anthony Giddens 6190 cit.
Robert Putnam 4813 cit
Jurgen Habermas 4087 cit.
Manuel Castells 3089 cit.
David Harvey 3071 cit.
Ulrich Beck 2880 cit.
Samuel Huntington 2352 cit.
Saskia Sassen 1708 cit.
Daniel Bell 1410 cit.
Amitai Etzioni 1398 cit.
David Held 1282 cit.
Peter Hall 1157 cit.
Richard Sennett 978 cit.
Immanuel Wallerstein 939 cit.
Jean Baudrillard 862 cit.
Juan Linz 844 cit.
Claus Offe 805 cit.
Michael Burawoy 785 cit.
Alain Touraine 417 cit.
Mary Kaldor 317 cit.
Edgar Morin 142 cit.


21.9.07

A morte feliz #2

Abdallah Benanteur, Le peintre des poètes
L'Offrande



Apercebeu-se da sua capacidade de esquecer, uma faculdade que apenas pertence às crianças, aos génios e aos inocentes.
Inocente, comovido com a própria alegria, compreendia por fim que era um homem feito para ser feliz.

pp. 92

in Albert Camus, A Morte Feliz
Edit. Livros do Brasil, Lisboa, Outubro 2002
[Edição original: La Mort Heureuse, Éditions Gallimard, 1949]

À escuta #52

A - Sabes, enjoas-me.
- Como é que é? Que maneira de falar é essa?
A - É a minha!
- Por acaso acho que não é. Ontem ouviste isso na telenovela. É por isso que eu não posso deixar que vejam essas coisas!
A - Não foi nada na novela! Disse isto toda a minha vida! E por acaso conheces a minha vida em pormenor?

[sim, elas só têm 7 anos! estou tramada!]

20.9.07

Nota sobre os últimos posts



Como sabem, Amos Oz, para além de um excelente escritor, foi co-fundador do movimento pacifista israelita Peace Now, que se tem demarcado sistematicamente do regime de "apartheid" que Jimmy Carter descreveu já como pior que o sul-africano. Esse é também o Amos Oz que admiro.
Os extractos da obra de Amos Oz têm sido acompanhados por pinturas de artistas israelitas. Tenho deixado links para conhecerem melhor o universo desses pintores, marcados indelevelmente pela sua origem, pela migração, pela História atribulada de Israel antes e depois da fundação do Estado, pela guerra e, naturalmente, pelo desejo de amor e de paz.



Entre Emmanuel Ronkin - nascido em Israel, num kibutz, e morto na Guerra dos Seis Dias com 26 anos (este último esboço, Resting Girl, fê-lo em 1967, o ano da sua morte), e Sasha Okun - nascido em Leninegrado em 1949 e emigrado apenas em 1979 para Israel (autor do primeiro desenho, Nude), que emoções se repetem, mesmo que subtilmente? Existirão pintores judeus mais judeus que outros? Será esse o caso de Rifkah (Rita) Goldberg, nascido em Londres em 1950 e emigrado em 1975 para Israel? Ou de Ladizhinsky, ou Lea Zarembo, mesmo se viveram a maior parte da sua vida na Rússia? É a religião a pátria dos judeus e Israel ou, mais especificamente, Jerusalém, apenas(?), um poderoso símbolo, ou os contornos e limites físicos da pátria histórica Israel sobrepõem-se a todas as vivências e aspirações individuais?
Pode
o mesmo pintor ser, separadamente, pintor de paisagens, animais e abstractos e, por outro lado, pintor judeu de Israel, ou essa é uma construção redutora, conceptualmente improfíqua?
Sei tão pouco. Limito-me a deixar-vos pistas para as obras, sem dúvidas quanto ao facto de merecerem ser contempladas.

PS: A citação de "A Morte Feliz" é acompanhada de uma pintura de Amnar Amarni, jovem pintor nascido na Argélia sessenta anos depois de Albert Camus.

A morte feliz #1

AMMAR AMARNI

Tenho a certeza - começara ele - de que se não pode ser feliz sem dinheiro. Não tenho dúvidas sobre isso. Não gosto da facilidade, nem dos romantismos. Gosto de saber como são as coisas. Pois bem, tenho notado que em certas pessoas de escol existe uma espécie de snobismo espiritual quando afirmam que o dinheiro não faz a felicidade. Parvoíce. Mentira. E, em certa medida, covardia. Ora veja, Mersault, para um homem bem-nascido, ser feliz nunca foi complicado. Basta seguir o destino de toda a gente, não por desistência ou renúncia, como é o caso de tantos falsos grandes homens, mas com uma apetência de felicidade. A única coisa que se precisa para se ser feliz é de tempo. Muito tempo. A felicidade é, ao fim e ao cabo, uma questão de longa paciência. E quase sempre passamos a vida a ganhar dinheiro, quando o que era preciso era ganhar tempo através do dinheiro. Esse é o único problema que sempre me interessou. É um problema preciso e claro.

pp. 58-59

in Albert Camus, A Morte Feliz
Edit. Livros do Brasil, Lisboa, Outubro 2002
[Edição original: La Mort Heureuse, Éditions Gallimard, 1949]

História de amor e trevas #6

Emmanuel Ronkin
Bolero, 1966

Toda a sua vida ansiou por mundos de amor e de sentimentos generosos. Aspirava a oferecer às mulheres a sua grandeza de alma e receber em troca o seu apreço e amor eterno (nunca conseguiu distinguir entre o amor e o apreço: tinha uma sede enorme dos dois [...].

pp. 139

in Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas
Ed. ASA, Março de 2007

18.9.07

História de amor e trevas #5

RIFKAH GOLDBERG
1983

[...] «Tal como nós, judeus regressamos agora à nossa pátria histórica, também eles [árabes] devem ter o direito de regressar dignamente a casa, à Saúdia Arábia, de onde eles todos vieram.»

[...] Estás a propor que Israel bombardeie Leninegrado, avô? E que rebente uma guerra mundial? O quê, não ouviste falar das bombas atómicas? Das bombas de hidrogénio?
- Tudo isso está nas mãos dos judeus. Quer com os americanos, quer com os bolcheviques, quem inventou todas essas bombas novas foram cientistas judeus, e eles saberão o que se deve e o que se não deve fazer.
- E a paz? Há alguma via para a paz?
- Há, sim, temos de vencer os nossos inimigos. Temos de lhes dar forte e feio, de modo a que eles venham ter connosco para implorar a paz. Porque é que havíamos de recusar? Pois se nós somos um povo amante da paz. E até temos um mandamento assim, perseguir a paz, pois então vamos persegui-la, até Bagdad, se for preciso, ou até ao Cairo, havemos de perseguir a paz.

pp. 125-126

in Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas
Ed. ASA, Março de 2007



O avô de Amos Oz falava assim em 1967, alguns dias depois da Guerra dos Seis Dias. Referia-me a esta atitude, Elypse. Subsiste, não achas M.?

Notas sobre uma escola

A escola do 1º Ciclo que as minhas filhas frequentam é uma das maiores, em número de alunos, do país. O ano passado, 320 alunos frequentavam este estabelecimento de ensino. Depois de mais de trinta anos sem obras de melhoria das instalações sanitárias, o novo ano escolar começou com a inauguração de dois blocos de casas de banho novinhos, graças à pressão da Associação de Pais e à existência de uma verba antiga, já aprovada pela CMA, destinada exactamente a essas obras (não imaginem que foi simples passar do plano à prática).

A escola continua sem um pavilhão desportivo adequado e sem biblioteca. Teria sido possível, e foi planeado, adaptar algumas salas (duas), de forma a poder instalar-se uma biblioteca. Teria sido possível integrar esta escola e seus professores no projecto
Theka/Gulbenkian. Mas nada disso foi feito. No segundo ano após a criação do Plano Nacional de Leitura, o Plano para desenvolver hábitos de leitura nesta escola limitou-se à fixação de uma lista com algumas dezenas de livros adequados à faixa etária dos nossos filhos, livros que devemos comprar ou requisitar na biblioteca municipal para eles lerem em casa. Quanto às duas salas não ficaram vazias: a sede do agrupamento criou mais duas turmas. Este ano serão 370 os alunos sem biblioteca nem condições adequadas para a prática de desporto.

Abstenho-me de comentários sobre o
Projecto Petiz. No primeiro dia de aulas, os pais (e muitos professores) ainda desconheciam a orgânica do mesmo e o conteúdo das actividades. De resto, hoje, só estou a par dos horários. Desconheço o programa, o significado de siglas como OAE, em que consistem as AE (actividades artísticas) ou a EF (expressão física) a até o currículo dos professores. Vai ser difícil cumprir o ponto 3 desse projecto:

3. Informação aos Pais
É fundamental que os pais intervenham nos centros onde funciona o PETIz.
Pretende-se criar uma cultura científica e cívica de intervenção nas iniciativas propostas. Para isso:
1. Devem estar informados de todas as actividades.
2. Apoiar as actividades, colaborando com os professores nos aspectos organizativos.
3. Valorizar os aspectos da Aprendizagem, incentivando os filhos a uma cultura científica alargada.
Os Pais terão um contacto privilegiado com os Coordenadores Pedagógicos de cada área de intervenção.

17.9.07

História de amor e trevas #4


Da época de Vilna, resta um velho álbum de fotografias: eis aqui o meu pai e o tio David, alunos de liceu [...].
É quase certo que grande parte daqueles rapazes e raparigas da fotografia foram obrigados a correr nus, reduzidos a esqueletos pela fome e paralisados de frio, perseguidos por cães e empurrados por chicotes para as grandes fossas cavadas na floresta de Ponar. Qual deles se terá salvo, para além do meu pai? [...]
Ou aquela rapariga bonita no centro da fotografia, com uma expressão cínica e inteligente, não, querido, a mim não me enganas tu, eu posso ser jovem, mas já sei tudo, sei coisas que vocês nem sonham. Será que se salvou? Que conseguiu juntar-se aos combatentes da floresta de Rudnik? Que conseguiu esconder-se num gueto graças ao seu «tipo ariano»? Que encontrou refúgio num convento? Ou conseguiu escapar aos Alemães e aos seus lacaios lituanos, atravessando clandestinamente a fronteira da Rússia? E que emigrou mais tarde para a terra de Israel onde viveu até aos setenta e seis anos de idade como pioneira num kibutz do vale de Jezréel, a trabalhar com as colmeias ou no galinheiro? [...]
O meu pai nesta foto é mais jovem que o meu filho. Se fosse possível, entrava na fotografia e avisava-o e a todos os seus amigos alegres. Tentava contar-lhes o que os esperava. E é mais do que certo que não acreditariam em mim e que fariam pouco das minhas palavras.

pp. 128-129

in Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas
Ed. ASA, Março de 2007

16.9.07

Aldeias e cidades (quase) invisíveis #2


Idanha-a-Velha foi a capital da civitas Igaeditanorum, que parece ter sido fundada por Augusto. Actualmente, é habitada por umas dezenas(?) de pessoas, que cozem o pão no forno comunitário (recentemente recuperado) ou fabricam adufes, para gáudio dos turistas que passam. Para além dos arqueólogos e desta população envelhecida, abandonada em toscas casas de pedra, vizinhos de uma Torre dos Templários em que encrustam fios de arame para secar a roupa, não se vê vivalma, apenas uma alma adormecida chamada História. Mas cruzamo-nos com Ela em todos os caminhos.

«A Sé, dos princípios do Cristianismo, com uma forte intervenção no período manuelino tem incorporado no lado Sul um Baptistério paleo-cristão (séculos VI/VII); muito próximo pode ver-se as ruínas do chamado Palácio dos Bispos. Junto às muralhas e próximo da Porta Sul, encontram-se fragmentos de ruínas romanas de uma habitação (séculos I-III) que se estendeu para limites exteriores à muralha...».



O Largo da Sé dá acesso ao Lagar de Varas, «edifício importante na arqueologia industrial, que testemunha o aproveitamento de recursos da comunidade e a sua capacidade de transformação dos produtos agrícolas da região. Este espaço, recuperado recentemente, apresenta no seu interior, uma primeira sala, com duas enormes varas de prensagem e uma caldeira; na sala contígua pode ver-se o depósito de azeitona e o espaço de moagem».


A Praça do Pelourinho marca o cruzamento de dois eixos estruturantes da aldeia, e nela se encontram elementos caracterizadores relevantes da sua importância cívica e religiosa: o Pelourinho, testemunho do (novo) foral instituido por D.Manuel I, em 1510, o Edifício dos Antigos Paços e a actual Igreja Matriz. Antiga Misericórdia, a Igreja Matriz apresenta estilo renascentista (século XVIII) com influências populares.
O património de Idanha-a-Velha é fruto da presença de inúmeros povos que aí se estabeleceram ao longo de vários séculos, romanos, visigodos, árabes. A cidade foi tomada por D. Afonso III, Rei de Leão, durante a reconquista, mas fazia já parte do Condado Portucalense aquando da fundação de Portugal. Mais tarde D. Afonso Henriques entregou-a aos Templários. D. Dinis incluiu-a na Ordem de Cristo.
Foram várias as tentativas de repovoamento mas o percurso histórico de desertificação parecia traçado. Hoje, Idanha-a-Velha, Monumento Nacional, surge renovada, mas só, (quase) invisível.


Agradeço à Liga dos Amigos da Freguesia de Idanha-a-Velha (LAFIV) que nos saciaram a fome, a sede e o saber, em frente à muralha, num dia de muito calor. Preparavam-se para o grande almoço anual que reune gente vinda de todo o país. Numas instalações improvisadas cedidas pela CM (novas, mas vazias: quem quer explorar um café ou restaurante em frente a uma das estações arqueológicas mais importantes do país?) homens e mulheres vestiram-se de cozinheiros, empregados de mesa e tesoureiros por um dia. Sairam-nos na rifa e gostamos do prémio. ;)



Para activar os photoshows, clicar na primeira tecla da esquerda. Fotos de MRF.


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CM Idanha-a-Nova/freguesia Idanha-a-Velha
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As cidades invisíveis
Aldeias e cidades (quase) invisíveis #1 (Santa Comba da Vilariça)

15.9.07

Dez livros que não mudaram a minha vida

Só hoje me apercebi da discussão que anda por aí (a blogosfera é mesmo esse lugar vago) a propósito da lista dos "Dez livros que não mudaram a minha vida", lançada por Manuel A. Domingos. Caiu o Carmo e a Trindade quando Eduardo Pitta, Francisco José Viegas e outros amantes de alma e profissão de literatura, aceitaram o repto. É um facto que esta é uma pergunta-sem-resposta por essência, porque os livros que não mudaram a nossa vida são aqueles que esquecemos (mesmo se a memória está um pouco fora do nosso controle, seja selectiva, e possamos fazer negação). Os livros que não mudaram a nossa vida não são os que não apreciámos, não nos comoveram, não nos ensinaram nada sobre a composição ou estrutura da narrativa ou sobre a História de um lugar ou povo. A imagem que criámos sobre o autor e a sua obra, retirada desse não-sentir, basta para produzir um efeito. O efeito mínimo é o de não voltar a comprar um livro seu, ou ainda, mais subtil, o de não transmitir entusiasmo, contagiando com o nosso desleite outros potenciais leitores. É assim que um livro que supostamente "não mudou a nossa vida", muda a dos outros, pela ausência.

Os livros mudam sempre as nossas vidas mas, a menos que os tenhamos escrito, dificilmente constarão no nosso epitáfio. Nem esperamos ser "aquele que leu Joyce ou Proust e nunca mais foi o mesmo". Os livros são parceiros discretos. Estão connosco no final do dia, esvaziando-nos a mente das agruras do quotidiano, ou a meio da tarde em dias de Verão, enchendo o niente de dolce fare. Mesmo que por vezes se tornem possessivos. Mesmo que nos agridam. Eles há que nos esbofeteiam. Outros validam ou rebatem valores, reestruturando o pensamento, por um dia ou para sempre. Mas não sejamos ingénuos ou tolos. Nem fanáticos. O alcorão não é a vida, mesmo que deva ser recitado. Os outros livros também não.

O meu pai coleccionava livros. Ainda hoje é a pessoa menos vulnerável que conheço a modas, marcas e consumismo. Mas comprava livros. O meu pai estruturou o meu olhar sobre os livros. Desde miúda que os vejo como um bem patrimonial, na mesma ordem das casas ou da terra. Os livros que li, desde pequena, mudaram a minha vida, e eu nem os escolhi, escolheu-os ele no momento em que os comprou. Eu olhava a estante e pescava.
Esqueci muitos dos livros que li. Esqueci até o nome do autor. Como inclui-los numa lista? E poderia essa ser a lista dos livros que não mudaram a minha vida?
Lembro-me de ler "A Felicidade Conjugal" de Tolstói com treze ou catorze anos e de odiar... a vida conjugal do século XIX e, por isso, Tolstói. A aversão condicionou as minhas escolhas futuras: excluí sempre o autor. Trouxe depois, de casa do meu pai, vários volumes com as obras completas, na esperança de me redimir da atitude. Continuam ali à espera. Duvido que "Guerra e Paz" vá mudar a minha vida. Mas, se ler a obra, mudo a minha pequena história pessoal. Os livros fazem isso. Independentemente do que retemos da escrita, integramo-los no romance da nossa vida. Fundimos leituras com pais, irmãos, amigos, casas e lugares. Mas são muitos os livros que excluimos da nossa história. Que se dane se é um Joyce, Proust ou Tolstói. Não há sacrilégio! A nossa percepção das letras, do belo, do bom, da arte, é livre, muito livre!

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CAMÕES


CCB encontra no seu acervo quadro de Júlio Pomar desaparecido desde 2003
14.09.2007 PUBLICO

14.9.07

História de amor e trevas #3

LEA ZAREMBO

Naquela época, aparentemente, no topo da escala de prestígio estavam os pioneiros. Mas os pioneiros viviam longe de Jerusalém, nas planícies costeiras, na Galileia, nos desertos das margens do Mar Morto. Nós venerávamos de longe a sua imagem forte e sonhadora, com o tractor e os sulcos da terra como pano de fundo, nos cartazes do Fundo Nacional Judaico.
Um pouco abaixo vinha a comunidade organizada: leitores do jornal Davar* sentados nas varandas, de camisola interior, no Verão, membros da Histadrut*, da Haganá*, da Caixa de Segurança Social, vestidos de caqui, que contribuíam para a «caixa comunitária», adeptos da salada-omelete-queijo fresco, partidários da contenção, da responsabilidade, de um modo de vida sólido, da «caixa comunitária», da produção local, do proletariado, da disciplina partidária e das azeitonas não picantes em frascos de Tnuva, Azul em cima e azul em baixo, construímos um porto aqui! um porto aqui!

Do outro lado da barreira, frente a esta comunidade organizada, estavam os dissidentes-terroristas, os ultra-ortodoxos de Mea Shearim*, bem como os comunistas «inimigos de Sião», e uma plêiade de intelectuais, de carreiristas, de artistas egocêntricos do tipo cosmopolita decadente e com eles uma quantidade de excêntricos, de individualistas e niilistas duvidosos, de yekes* incapazes de se desfazerem dos seus tiques germânicos, de toda a espécie de snobs anglicizados, de sefarditas afrancesados ricos que, vistos de cá, pareciam lacaios cerimoniosos, de Iemenitas, de Georgianos, de Marroquinos, de Curdos e de originários de Salónica, todos eles indiscutivelmente nossos irmãos, e uma mão-de-obra incontestavelmente muito promissora, mas o que fazer, ainda tínhamos de ter muita paciência com eles e não poupar esforços.

Havia ainda os refugiados e os imigrantes clandestinos, os sobreviventes e os antigos deportados, que eram olhados em geral com um misto de piedade e desprezo: uns pobres coitados, uns miseráveis, mas quem lhes tinha mandado esperar por Hitler, em vez de virem para cá quando ainda era tempo? E porque se tinham deixado levar como gado para o abate em vez de se organizarem e de resistirem? E que acabassem de vez com aquelas lamúrias em iídiche, e não começassem a contar-nos o que lhes fizeram lá, porque não é coisa para se orgulhar, nem eles nem nós. E para além disso, nós aqui estávamos virados para o futuro e não para o passado e, a propósito de passado, nós tínhamos um passado hebraico glorioso, bíblico e hasmoneu, e não valia a pena desfeá-lo com um passado judeu deprimente, feito de amarguras e desgraças (que nós pronunciávamos sempre em iídiche «tsures», com uma careta de nojo e escárnio, para que as crianças percebessem que aquelas desgraças eram uma espécie de lepra deles e não nossa).

pp. 19-20

in Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas
Ed. ASA, Março de 2007


*
Davar: Literalmente «palavra». Jornal hebraico, órgão da Histadrut, publicado entre 1925 e 1944.
Histadrut: Organização Geral dos Trabalhadores Israelitas, fundada em 1920.
Haganá: Literalmente «Defesa». Organização militar clandestina da colónia judaica na Palestina, durante o mandato britânico, de 1920 a 1948, que viria a ser a base do futuro exército israelita a partir da fundação do Estado de Israel, em 1948.
Mea Shearim: Literalmente «Cem portões», bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém.
Yekes: Nome dado aos judeus alemães.

À escuta #51

S - Está ali escrito na parede P-U-T-A [soletrando]. É uma grande asneira!
A - Mamã, o que é P-U-T-A ?
- É uma gran-de as-ne-ira.
A - Mas o que quer dizer?
- Bem, as pessoas mal educadas chamam isso às mulheres que têm muitos namorados, que vão com todos os rapazes...
A- E vão aonde?

13.9.07

História de amor e trevas #2

YEFIM LADIZHINSKY

Eram capazes de passar três ou quatro horas a discutir apaixonadamente sobre Nietzsche, Estaline, Freud, Jabotinsky, de se lançar nessas discussões de corpo e alma, de vibrar de emoção, de se indignar sobre o colonialismo, o anti-semitismo, a justiça, a «questão agrária», o «problema da mulher», a «questão da vida em oposição à arte». Mas quando tentavam exprimir um sentimento pessoal, o resultado era sempre crispado, seco, quase amedrontado, fruto de gerações de inibições e tabus. De tabus duplos, de dois sistemas repressivos: a boa educação europeia pequeno-burguesa reforçando as inibições do shtetl* tradicional judaico. Quase tudo era «proibido» ou «não se faz» ou «não é bonito».
Para além disso, faltavam-lhe as palavras: o hebraico ainda não era para eles uma língua espontânea, e muito menos íntima, e não sabiam bem o que saía quando falavam hebraico. [...]
Mesmo pessoas como os meus pais, que sabiam bem hebraico, não dominavam a língua totalmente.

pp. 17

in Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas
Ed. ASA, Março de 2007


* Shtetl: termo iídiche que designava as povoações de população maioritariamente judaica, situadas na Europa Central e de Leste de antes do Holocausto, em particular na chamada «Zona de Residência» do Império russo, Polónia, Galícia e Roménia.

À escuta #50

S - Olha, há uma terra que se chama Branco.
- Não é Branco, é Castelo Branco. Na placa estava só «C.» antes do Branco, mas isso quer dizer Castelo Branco.
S - Não, era só Branco!
- Não, era Castelo Branco!
S - Era Branco!
Pai - Se calhar também há um lugar chamado Branco...
S - Estás a ver mamã, tudo é possível, não é sempre como pensas!

Cruzes credo


Quando é que vamos acabar de vez com os sinais da cruz em espaços laicos! E o Filipe Tourais tem razão quando nos convida a encontrar as (7) diferenças.

12.9.07

História de amor e trevas #1

Rona Boyarski
Glance over Jaffa, 2005



Na escala de valores dos meus pais, quanto mais ocidental, mais cultural: Tolstoi e Dostoievsky estavam muito próximos da sua alma russa, mas penso que consideravam a Alemanha - apesar de Hitler - mais cultural do que a Rússia e a Polónia, a França mais do que a Alemanha, e a Inglaterra mais do que a França. Quanto à América, não estavam assim tão certos: um sítio onde se massacravam os índios, atacavam carruagens, procurava ouro e caçavam raparigas.
Para eles a Europa era a terra prometida e proibida, o lugar nostálgico dos campanários e das velhas praças empedradas, dos eléctricos, das pontes e das torres das catedrais, das aldeias isoladas, das fontes termais, das florestas e dos prados cobertos de neve.
[...]
Anos mais tarde, constatei que a Jerusalém do mandato britânico, nos anos vinte, trinta e quarenta, era uma cidade extraordinariamente civilizada, com grandes comerciantes, músicos, intelectuais e escritores: Martin Buber, Gershom Scholem, Agnon, e muitos outros sábios e artistas notáveis.
[...]
A Jerusalém que os meus pais cobiçavam situava-se longe do nosso bairro: em Rehavia, imersa em verdura e sons de piano, nos três ou quatro cafés com lustres dourados da rua de Jaffa ou Ben Yehuda, nos salões YMCA e no Hotel King David, onde judeus e árabes amantes da cultura se cruzavam com britânicos cultos e afáveis, onde damas sonhadoras de pescoços compridos e vestidos de baile esvoaçavam nos braços de homens de fato escuro, onde ingleses de espírito aberto encontravam judeus cultos e árabes educados, onde se realizavam recitais, bailes, serões de leitura, chás-dançantes e debates artísticos elegantes. É possível que essa Jerusalém dos lustres e dos chás-dançantes só existisse nos sonhos dos habitantes de Kerem Avraham, bibliotecários, professores, empregados e encadernadores. Seja como for, não existia no nosso bairro. O nosso bairro, Kerem Avraham, pertencia a Checov.
[...]
No nosso bairro o mundo era geralmente chamado «o grande mundo» [...] Lá, no mundo, os muros estavam cobertos de palavras de ódio, «Judeu, vai para a Palestina», e agora que aqui estamos o mundinteiro grita «Judeu, sai da Palestina».

pp. 6, 7, 8, 9

in Amos Oz,
Uma História de Amor e TrevasEd. ASA, Março de 2007

11.9.07

The windows of the world

«The Windows of the World era o nome do restaurante situado no 107° piso da Torre Norte do WTC. Estavam 171 pessoas nesse restaurante (incl. 72 empregados) no momento do choque do Boeing. The Windows of the World é também o título de uma canção de Burt Bacharach e Hal David, interpretada por Dionne Warwick em 1967. A canção foi escrita contra a guerra no Vietname mas a mensagem ainda é válida e sê-lo-á durante muito tempo.» (ver aqui o Post de 2005)


The windows of the world are covered with rain,
Where is the sunshine we once knew?
Everybody knows when little children play
They need a sunny day to grow straight and tall.
Let the sun shine through.

The windows of the world are covered with rain,
When will those black skies turn to blue?
Everybody knows when boys grow into men
They start to wonder when their country will call.
Let the sun shine through.

À escuta #49

S - Mamã, a A. está a rezar no teu quarto.
- A rezar?
S - Sim, está a pedir perdão ao Jesus pela asneira que fez.

[e, de facto, encontrei a A. de joelhos ao pé da cama, as mãos unidas, a ler «O livro das pequenas orações» que a avó lhe ofereceu há imenso tempo___ e a que ela nunca deu muita importância]

Ao jantar:
- A., acreditas mesmo no Jesus?
A - Claro!
- Então este ano queres ir para a catequese?
A - Por favor, não!
- Não?
A - Não, porque eu já sei como é que vai ser. Aparece o padre e fala com aquela VOZ no Jesus, na paz, bla bla bla, amai-vos, e eu não vou gostar!

É preciso pensar grande para se ser grande

Foi o caso de Adam Shankman. e eu vim de lá atónita com o ritmo. Not bad Travolta. Not so good Christopher Walken. Uma comédia musical com layout sixty pró obesidade e contra o racismo! Melhor deixa: "guarda a tua vida pessoal para as câmaras". Diverti-me. :)

10.9.07

Que mais precisamos de saber?

Apeteceu-lhe escrever sobre uma série de matérias que indiciam o estado do mundo, o nosso e o de todos, se pudermos criar ainda divisões. Sobre algumas dessas matérias, tem uma autoridade acrescida (vejam as notas). Fá-lo com a liberdade que teria permitido a Jorge Sena, hoje, mudar o nome de um poema. Leiam Eduardo Graça. Acabou a silly season.

8.9.07

Aldeias e cidades (quase) invisíveis #1



Entre Bornes e Vila Flôr, na IP2, uma paragem de autocarro onde se lê: "Deixem desabrochar o sonho que existe dentro de vós". Paragem, inversão de marcha, para voltar a sorrir. Uma foto, olhar à volta, montanha, tanta montanha, quem virá aqui apanhar a carreira para a cidade? E logo ao lado reparo num pequeno caminho com a indicação de Santa Comba da Vilariça/Cruzeiros/Pelourinho.


O carro parece encolher nas ruas estreitas. Velhos sentados nas escadas de pedra das casas. Uma faz esquina e concentra um grupo animado. Donas de casa aparecem à janela. Todos sorriem e espreitam, certamente a ver se reconhecem os visitantes. É quinta-feira e no sábado vão começar as festas de Santa Comba. Esperam-se muitos parentes emigrados em França ou Espanha, poderia ser o nosso caso. Mas isso só compreenderemos depois. Por agora, procuramos um lugar para estacionar e, dada a hora, estamos também de olho num restaurante.

A porta da Igreja fecha na mesma altura em que saímos do carro. Pouca sorte, dizemos, mas logo uma senhora nos pergunta se gostaríamos de ver a Santa Comba. Quem? A santa, que por acaso é muito linda, muito linda. E venham, venham, só um bocadinho que vou iluminar o altar. O altar, em talha dourada, fica resplandecente com a luz, e as pinturas dos caixotões do tecto avivam-se.




Foram restaurados há pouco tempo. O senhor padre vai fazendo as obras que é preciso, aos poucos, e todos contribuem, aos pouquinhos. O senhor padre é um homem novo, quer dizer, chegou ali um rapaz e agora deve ter uns trinta e sete. É famoso, é "o padre casamenteiro", porque nenhum dos casamentos que realizou acabou em divórcio. Na sacristia há relíquias, peças com muito valor, um belo São Jorge a cavalo e uma escultura de madeira antiga, a imagem de um santo, descolorada, porque um dia um ajudante decidiu lavá-la com lixívia. Aos pouquinhos, o senhor padre já disse, tudo será restaurado. A senhora é uma simpatia e gosta mesmo do seu trabalho, é responsável pela igreja e sente um imenso orgulho por nos dar a ver tanta beleza. Ama a sua Santa Comba. Perante a imagem, os seus olhos brilham. É mesmo linda. A santa e a senhora que, deve ser dos meus olhos, até acho que se parecem uma com a outra. Agradecemos o acolhimento e despedimo-nos. Pouco tempo depois, antes de partirmos da aldeia, seríamos surpreendidos pela santa. A verdade é que saltou do altar. Mas primeiro vamos ao restaurante.



No café-restaurante Vilariça há um frenesim que se adivinha raro. Agosto é o mês dos reencontros e a procissão é já dali a dois dias. Entram, saem, passam emigrantes e gente da terra. De vez enquando todos se levantam numa mesa para abraçar alguém. Aquele chegou agora mesmo. A viagem, oh, fez-se num instante, de carro, pois, é o hábito. Tem um look muito cool, careca, brinco na orelha, e começam logo a contar-lhe as novidades. A mais divertida aconteceu na noite anterior, uma grande farra com o Carlos, o Eugénio e mais uns quantos, depois de passarem o dia a apanhar as batatas todas do pai do António. Só homens, não sei quantos sacos, e está visto que à noite foi só entornar. Mas no café vivem-se alguns dramas. A morte recente da mulher do senhor ali ao lado é um deles. Quem passa ainda lhe dá os sentimentos, um abraço, umas palavras de consolo. Por momentos ele chora, às vezes até soluça, mas logo se controla. Uma senhora bem apessoada oferece-lhe pragmatismo: "ela foi na hora que tinha que ir, lá chegará a sua vez também". Valem-lhe os amigos, da mesma idade, sentados na sua mesa. Tentam animá-lo. "A ti conheci-te quando aindas eras solteiro. Que idade tens agora? - Setenta e oito." "Lembras-te daquela vez que o morto se mexeu?". Todos se lembravam e a tal senhora também, assustou-se tanto que até torceu um pé. E num instante, está tudo a rir. Quando voltam a ficar sós, os três velhos amigos entram em conversas de escárnio e maldizer. "Fulano de tal que julga que tem sempre razão e que não se pode contradizer". Vidas! Vidas que se cruzam com as nossas enquanto comemos "pica-paus" e outros petiscos.

Na Igreja, a Santa Comba espera-nos à entrada da porta. Ainda há pouco tão quieta no altar-mor e de repente toda saltitante sobre o andor! É preciso amarrá-la melhor.



Com 41 anos de experiência, isso não vai ser problema para o mestre amarrador de santos. Outras igrejas pagariam mais, mas ele mantém-se fiel à terra. Puxa a corda, testa, a santa está fixa, não vai cair. O neto assiste. Veio de Vitoria, no País Basco, que nem todos na aldeia passaram a ser franceses. "E a senhora, quem é o seu sogro?" - Eu, ah, não sou de cá, estou só de passagem. "Pensei que era estrangeira, casada com um dos nossos."


Fotos de MRF/2007


ADENDA: O Rui Gonçalves aconselha o restaurante Vilariça, que serve "a melhor Posta à Mirandesa da região" e umas excelentes rabanadas pelo Natal. Eu insisto nos Pica-paus. Ambos concordamos sobre a simpatia do dono da casa (e dos empregados). Telefone: 278 536 258.