Nascido em Praga (1936), Václav Havel trabalhou no Teatro da Balaustrada, onde foi técnico de luzes, secretário, assistente de encenação, leitor e autor residente. As suas duas primeiras peças, Garden Party (1963) e Notificação (1965), granjearam-lhe de imediato o reconhecimento internacional como dramaturgo. Finda a Primavera de Praga, em 1968, passou a ser um autor proibido na sua pátria e, devido ao estatuto de co-fundador e porta voz da «Carta 77», veio a sofrer inúmeras condenações e penas de prisão que acabaram por desencadear uma onda de protestos a nível internacional, incluindo os países de Leste. As Cartas que escreveu a Olga Havlová (1933-1996), sua esposa (desde 1964 até 1996), constituíram «o único meio que possuo para comunicar contigo e com o mundo». Václev Havel viria a ser o último presidente da Checoslováquia (1989-92) e o primeiro Presidente da República Checa (1993-2003). Em 1997 casou com a actriz Dagmar Havlová. Em 2008, "viu subir à cena uma nova peça sua De saída, que dava conta dos dilemas de um líder político no momento de abandonar o cargo. A obra foi aclamada pela crítica." Václev Havel morreu ontem durante o sono, na sua casa em Hrádecek.
1ª CARTA
Querida Olga:
Os astrólogos tinham razão, como se está a ver, quando me predisseram de novo cadeia para este ano e quando anunciaram um Verão quente. Aqui faz realmente um calor horrível, uma sauna imparável. Custa-me que esta minha nova «base» te venha a, com certeza, trazer muitas contrariedades. Na minha opinião devias permanecer em Hrádecek [1], aí administrar a casa, embelezá-la, tratar da horta, ir com os cães ao lago, etc. Sempre poderia alguém da família fazer-te companhia, ou os amigos que aí quisessem ir passar férias. De nada serve estares em Praga - aqui em nada me podes ajudar, e, depois, com que irias ocupar o teu tempo? Lá, ia certamente ser necessário começar a conduzir o carro, para poderes ir às compras e coisas do género. E não ficarias sempre dependente de outras pessoas. Enfim, devias viver como se eu tivesse partido de viagem, ou seja, fazer uma vida normal. É a melhor maneira de me ajudares: saber que estás bem e que nada te falta. (...)
4 de junho de 1979
5ª CARTA
Querida Olga:
Antes de mais: esqueci-me, como, aliás, é costume, de te mandar os parabéns pelo teu aniversário. Só me lembrei uns minutos depois de entregar a carta anterior. Desculpa! Quanto a esta minha falta de memória, parece que já não há nada a fazer. Então, aqui, vão atrasados os meus parabéns! Compro-te um presente quando estiver em liberdade, já que presentes da prisão (feitos de migalhas) não são os que mais te agradam, tanto quanto me lembro... Recebeste as minhas últimas cartas - com os nº 3 e 4? Era, com certeza, bom que confirmasses através de um postal, na volta do correio, a recepção de cada carta, para não perder o controlo... Da última vez acusei a recepção da tua primeira carta; desde então chegaram mais duas. A primeira deu-me grande alegria e despertou-me a vontade de escrever (nela contavas-me como vocês tinham lido as minhas peças). Agradeço-te do coração! Em contrapartida, a segunda (e também a terceira) deixou-me um pouco inquieto. Dizias que não me mandavas um beijo - que eu já sabia a razão. Eu não sei a razão! O que sei é que não deves escrever-me essas coisas, fico mal por sei lá quantos dias. As cartas são a única coisa que temos, aqui lemo-las uma dezena de vezes, ponderamos todas as implicações em todos os sentidos, alegramo-nos com o mínimo pormenor ou com ele também sofremos e tomamos consciência de como estamos manietados - em conclusão, deves escrever-me cartas amáveis! E numera-as, escreve a data, e, principalmente, escreve de forma clara e legível! Afinal, não deve custar muito sentares-te de vez em quando à máquina e escreveres tudo o que acontece contigo! (...)
P.S. Apercebi-me de uma coisa estranha: este mundo aqui dentro tem muito mais verdade que o mundo aí fora. As coisas e os seres humanos mostram-se aqui na sua verdadeira dimensão. A mentira e a hipocrisia esaparecem. Quando estiver outra vez aí fora, hei-de contar-te coisas interessantes sobre este tema.
Segunda-feira, 23.7.1979
(...)
Manhã de terça-feira, 24.7
Hoje sonhei contigo! Tínhamos alugado um palácio em Veneza! Continuo com boa disposição. Escreve-me cartas e postais bonitos para poder guardá-los!
9ª CARTA
Querida Olga:
A tua visita deu-me muita coragem e alento; depois dela senti-me jovial. Fiquei especialmente feliz por termos a mesma opinião sobre a viagaem aos EUA e por me teres apoiado incondicionalmente sobre aquilo que penso de toda a questão. (...) Hoje à tarde comecei a confeccionar para ti uma jóia com bocados de pão. Mando-te um desenho para o caso de não a conseguir fazer chegar a ti pelo advogado. Não tinha ideia de que apreciavas este tipo de coisas ou já te tinha moldado outras há muito tempo.. (...)
Sábado, 8 de Setembro de 1979
(Continuação - Domingo)
Parece que acabei de conseguir algo que se pareça com uma jóia, mas não te vou fazer um desenho - quero que seja uma surpresa. Tentei insuflar-lhe um jeito de arte nova. (...) Não queria esquecer uma coisa: a água em Hrádecek fecha-se assim: 1. Desligas a bomba de água; 2. Abres a torneira que fica no canto da cave e deixas sair a água do cano; 3. Abres todas as torneiras da casa (não esqueças o celeiro) para o ar entrar na conduta.
Gostava de sublinhar outra vez o efeito benéfico da tua visita. Suporta-se melhor o cativeiro.
Ontem tentei, de determinada forma que me foi sugerida, entrar em contacto telepático contigo - mas parece que não resultou. não possuo (ao contrário do que acontece aos outros) os pressupostos necessários para isso.
(...)
P.S. Os meus companheiros consideram-me louco por causa da minha atitude «despegada» relativamente ao visto de saída para os EUA.[2]
[1] Casa de fim-de-semana de Havel, perto de Trutnov, na Boémia do Norte.
[2] V.H. rejeitou a oferta oficial de saída do país, que lhe fora feita ainda durante a sua prisão preventiva.
Nota: Os sublinhados são da autoria de V.H.. Mantive-os .
Fragmentos de " Cartas a Olga". Edição Livros do Brasil, 1984, pp. 11-19