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18.6.09

Aldeias da minha/vossa vida

Em 2007, depois de uma viagem em que visitei aldeias (e cidades) históricas e com estórias de Portugal, pensei criar uma rubrica fixa a que chamei «Aldeias e Cidades quase Invisíveis». Acabei por editar apenas três posts (!). A criação do blogue/concurso «Aldeia da minha vida» fez-me pensar novamente nesses lugares quase esquecidos. Várias pessoas participaram escrevendo um texto sobre a/uma aldeia da sua vida. O resultado é muito interessante, vale a pena ler (e, se quisermos, participar no concurso, votando no melhor texto). Mas, bom mesmo, é apontarmos o nome dos locais e viajar cá dentro ao encontro desse património.
Aqui, fica a minha descoberta de Santa Comba da Vilariça (post já publicado).


Entre Bornes e Vila Flôr, na IP2, uma paragem de autocarro onde se lê: "Deixem desabrochar o sonho que existe dentro de vós". Paragem, inversão de marcha, para voltar a sorrir. Uma foto, olhar à volta, montanha, tanta montanha, quem virá aqui apanhar a carreira para a cidade? E logo ao lado reparo num pequeno caminho com a indicação de Santa Comba da Vilariça/Cruzeiros/Pelourinho.


O carro parece encolher nas ruas estreitas. Velhos sentados nas escadas de pedra das casas. Uma faz esquina e concentra um grupo animado. Donas de casa aparecem à janela. Todos sorriem e espreitam, certamente a ver se reconhecem os visitantes. É quinta-feira e no sábado vão começar as festas de Santa Comba. Esperam-se muitos parentes emigrados em França ou Espanha, poderia ser o nosso caso. Mas isso só compreenderemos depois. Por agora, procuramos um lugar para estacionar e, dada a hora, estamos também de olho num restaurante.
A porta da Igreja fecha na mesma altura em que saímos do carro. Pouca sorte, dizemos, mas logo uma senhora nos pergunta se gostaríamos de ver a Santa Comba. Quem? A santa, que por acaso é muito linda, muito linda. E venham, venham, só um bocadinho que vou iluminar o altar. O altar, em talha dourada, fica resplandecente com a luz, e as pinturas dos caixotões do tecto avivam-se.
Foram restaurados há pouco tempo. O senhor padre vai fazendo as obras que é preciso, aos poucos, e todos contribuem, aos pouquinhos. O senhor padre é um homem novo, quer dizer, chegou ali um rapaz e agora deve ter uns trinta e sete. É famoso, é "o padre casamenteiro", porque nenhum dos casamentos que realizou acabou em divórcio. Na sacristia há relíquias, peças com muito valor, um belo São Jorge a cavalo e uma escultura de madeira antiga, a imagem de um santo, descolorada, porque um dia um ajudante decidiu lavá-la com lixívia. Aos pouquinhos, o senhor padre já disse, tudo será restaurado. A senhora é uma simpatia e gosta mesmo do seu trabalho, é responsável pela igreja e sente um imenso orgulho por nos dar a ver tanta beleza. Ama a sua Santa Comba. Perante a imagem, os seus olhos brilham. É mesmo linda. A santa e a senhora que, deve ser dos meus olhos, até acho que se parecem uma com a outra. Agradecemos o acolhimento e despedimo-nos. Pouco tempo depois, antes de partirmos da aldeia, seríamos surpreendidos pela santa. A verdade é que saltou do altar. Mas primeiro vamos ao restaurante.

No café-restaurante Vilariça há um frenesim que se adivinha raro. Agosto é o mês dos reencontros e a procissão é já dali a dois dias. Entram, saem, passam emigrantes e gente da terra. De vez enquando todos se levantam numa mesa para abraçar alguém. Aquele chegou agora mesmo. A viagem, oh, fez-se num instante, de carro, pois, é o hábito. Tem um look muito cool, careca, brinco na orelha, e começam logo a contar-lhe as novidades. A mais divertida aconteceu na noite anterior, uma grande farra com o Carlos, o Eugénio e mais uns quantos, depois de passarem o dia a apanhar as batatas todas do pai do António. Só homens, não sei quantos sacos, e está visto que à noite foi só entornar. Mas no café vivem-se alguns dramas. A morte recente da mulher do senhor ali ao lado é um deles. Quem passa ainda lhe dá os sentimentos, um abraço, umas palavras de consolo. Por momentos ele chora, às vezes até soluça, mas logo se controla. Uma senhora bem apessoada oferece-lhe pragmatismo: "ela foi na hora que tinha que ir, lá chegará a sua vez também". Valem-lhe os amigos, da mesma idade, sentados na sua mesa. Tentam animá-lo. "A ti conheci-te quando aindas eras solteiro. Que idade tens agora? - Setenta e oito." "Lembras-te daquela vez que o morto se mexeu?". Todos se lembravam e a tal senhora também, assustou-se tanto que até torceu um pé. E num instante, está tudo a rir. Quando voltam a ficar sós, os três velhos amigos entram em conversas de escárnio e maldizer. "Fulano de tal que julga que tem sempre razão e que não se pode contradizer". Vidas! Vidas que se cruzam com as nossas enquanto comemos "pica-paus" e outros petiscos.

Na Igreja, a Santa Comba espera-nos à entrada da porta. Ainda há pouco tão quieta no altar-mor e de repente toda saltitante sobre o andor! É preciso amarrá-la melhor.
Com 41 anos de experiência, isso não vai ser problema para o mestre amarrador de santos. Outras igrejas pagariam mais, mas ele mantém-se fiel à terra. Puxa a corda, testa, a santa está fixa, não vai cair. O neto assiste. Veio de Vitoria, no País Basco, que nem todos na aldeia passaram a ser franceses. "E a senhora, quem é o seu sogro?" - Eu, ah, não sou de cá, estou só de passagem. "Pensei que era estrangeira, casada com um dos nossos."


[Fotos de MRF/2007]


ADENDA: O Rui Gonçalves aconselha o restaurante Vilariça, que serve "a melhor Posta à Mirandesa da região" e umas excelentes rabanadas pelo Natal. Eu insisto nos Pica-paus. Ambos concordamos sobre a simpatia do dono da casa (e dos empregados). Telefone: 278 536 258.

29.10.07

Aldeias e cidades (quase) invisíveis #3


Imagens da Igreja Matriz, da Capela de São Pedro, do jardim do Centro de Interpretação da Serra da Estrela (C.I.S.E.), do Museu do Pão e do Museu do Brinquedo, para além de alguns detalhes de ruas.

Vivemos esta semana de CineEco entre o C.I.S.E e a Casa Municipal da Cultura de Seia. Restou-nos pouco tempo livre para andar pela cidade ou ir à Serra, pelo que estas imagens são apenas uma pequena nota sugestiva da beleza do lugar. Como dizia Miguel Torga a propósito da Beira, também Seia anda «à roda, à roda, e sempre à roda da mesma força polarizadora: - a Estrela. (...) Há rios na Beira? Descem da Estrela. Há queijo na Beira? Faz-se na Estrela. Há roupa na Beira? Tece-se na Estrela. Há vento na Beira? Sopra-o a Estrela. Há energia eléctrica na Beira? Gera-se na Estrela. Tudo se cria nela, tudo mergulha as suas raízes no seu largo e materno Seio».

Hoje, este cariz fortemente serrano permanece, mas a cidade não parou no tempo. É impossível não repararmos nas estruturas e equipamentos sociais que foram sendo criados na cidade, nomeadamente o novíssimo C.I.S.E.. O que a Estrela dá, Seia deseja estudar e conservar. A defesa do ambiente não é moda mas forma de estar. Foi ali que, há já treze anos, a CMS aprovou e subsidiou um festival de cinema centrado nesta temática. Este ano, uma nova iniciativa foi criada: a organização da Conferência Anual CineEco subordinada ao tema do Desenvolvimento Sustentado. Foram os seguintes os temas abordados:
"Turismo de Natureza e Cultural, no contexto regional e ibérico das estratégias e programas de desenvolvimento sustentável", "Aldeias de Xisto: Desenvolvimento Sustentável" e "Os valores naturais das montanhas do Centro Interior".

Vive-se bem nesta Beira - que ainda sofre de algumas limitações em matéria de acessibilidades. A gastronomia quase merecia um capítulo próprio. Ficam os nomes dos espaços que nos receberam mais que bem:
Restaurante Borges, Farol, Martinho (Quinta do Crestelo), O Tachinho do Francisco, Restaurante do Museu Nacional do Pão.

Fiquei com vontade de voltar para andar à roda, à roda e sempre à roda.

16.9.07

Aldeias e cidades (quase) invisíveis #2


Idanha-a-Velha foi a capital da civitas Igaeditanorum, que parece ter sido fundada por Augusto. Actualmente, é habitada por umas dezenas(?) de pessoas, que cozem o pão no forno comunitário (recentemente recuperado) ou fabricam adufes, para gáudio dos turistas que passam. Para além dos arqueólogos e desta população envelhecida, abandonada em toscas casas de pedra, vizinhos de uma Torre dos Templários em que encrustam fios de arame para secar a roupa, não se vê vivalma, apenas uma alma adormecida chamada História. Mas cruzamo-nos com Ela em todos os caminhos.

«A Sé, dos princípios do Cristianismo, com uma forte intervenção no período manuelino tem incorporado no lado Sul um Baptistério paleo-cristão (séculos VI/VII); muito próximo pode ver-se as ruínas do chamado Palácio dos Bispos. Junto às muralhas e próximo da Porta Sul, encontram-se fragmentos de ruínas romanas de uma habitação (séculos I-III) que se estendeu para limites exteriores à muralha...».



O Largo da Sé dá acesso ao Lagar de Varas, «edifício importante na arqueologia industrial, que testemunha o aproveitamento de recursos da comunidade e a sua capacidade de transformação dos produtos agrícolas da região. Este espaço, recuperado recentemente, apresenta no seu interior, uma primeira sala, com duas enormes varas de prensagem e uma caldeira; na sala contígua pode ver-se o depósito de azeitona e o espaço de moagem».


A Praça do Pelourinho marca o cruzamento de dois eixos estruturantes da aldeia, e nela se encontram elementos caracterizadores relevantes da sua importância cívica e religiosa: o Pelourinho, testemunho do (novo) foral instituido por D.Manuel I, em 1510, o Edifício dos Antigos Paços e a actual Igreja Matriz. Antiga Misericórdia, a Igreja Matriz apresenta estilo renascentista (século XVIII) com influências populares.
O património de Idanha-a-Velha é fruto da presença de inúmeros povos que aí se estabeleceram ao longo de vários séculos, romanos, visigodos, árabes. A cidade foi tomada por D. Afonso III, Rei de Leão, durante a reconquista, mas fazia já parte do Condado Portucalense aquando da fundação de Portugal. Mais tarde D. Afonso Henriques entregou-a aos Templários. D. Dinis incluiu-a na Ordem de Cristo.
Foram várias as tentativas de repovoamento mas o percurso histórico de desertificação parecia traçado. Hoje, Idanha-a-Velha, Monumento Nacional, surge renovada, mas só, (quase) invisível.


Agradeço à Liga dos Amigos da Freguesia de Idanha-a-Velha (LAFIV) que nos saciaram a fome, a sede e o saber, em frente à muralha, num dia de muito calor. Preparavam-se para o grande almoço anual que reune gente vinda de todo o país. Numas instalações improvisadas cedidas pela CM (novas, mas vazias: quem quer explorar um café ou restaurante em frente a uma das estações arqueológicas mais importantes do país?) homens e mulheres vestiram-se de cozinheiros, empregados de mesa e tesoureiros por um dia. Sairam-nos na rifa e gostamos do prémio. ;)



Para activar os photoshows, clicar na primeira tecla da esquerda. Fotos de MRF.


Links:
IPPAR
CM Idanha-a-Nova/freguesia Idanha-a-Velha
Geopark Naturtejo da Meseta Meridional

Arquivo:
As cidades invisíveis
Aldeias e cidades (quase) invisíveis #1 (Santa Comba da Vilariça)

13.9.07

À escuta #50

S - Olha, há uma terra que se chama Branco.
- Não é Branco, é Castelo Branco. Na placa estava só «C.» antes do Branco, mas isso quer dizer Castelo Branco.
S - Não, era só Branco!
- Não, era Castelo Branco!
S - Era Branco!
Pai - Se calhar também há um lugar chamado Branco...
S - Estás a ver mamã, tudo é possível, não é sempre como pensas!

8.9.07

Aldeias e cidades (quase) invisíveis #1



Entre Bornes e Vila Flôr, na IP2, uma paragem de autocarro onde se lê: "Deixem desabrochar o sonho que existe dentro de vós". Paragem, inversão de marcha, para voltar a sorrir. Uma foto, olhar à volta, montanha, tanta montanha, quem virá aqui apanhar a carreira para a cidade? E logo ao lado reparo num pequeno caminho com a indicação de Santa Comba da Vilariça/Cruzeiros/Pelourinho.


O carro parece encolher nas ruas estreitas. Velhos sentados nas escadas de pedra das casas. Uma faz esquina e concentra um grupo animado. Donas de casa aparecem à janela. Todos sorriem e espreitam, certamente a ver se reconhecem os visitantes. É quinta-feira e no sábado vão começar as festas de Santa Comba. Esperam-se muitos parentes emigrados em França ou Espanha, poderia ser o nosso caso. Mas isso só compreenderemos depois. Por agora, procuramos um lugar para estacionar e, dada a hora, estamos também de olho num restaurante.

A porta da Igreja fecha na mesma altura em que saímos do carro. Pouca sorte, dizemos, mas logo uma senhora nos pergunta se gostaríamos de ver a Santa Comba. Quem? A santa, que por acaso é muito linda, muito linda. E venham, venham, só um bocadinho que vou iluminar o altar. O altar, em talha dourada, fica resplandecente com a luz, e as pinturas dos caixotões do tecto avivam-se.




Foram restaurados há pouco tempo. O senhor padre vai fazendo as obras que é preciso, aos poucos, e todos contribuem, aos pouquinhos. O senhor padre é um homem novo, quer dizer, chegou ali um rapaz e agora deve ter uns trinta e sete. É famoso, é "o padre casamenteiro", porque nenhum dos casamentos que realizou acabou em divórcio. Na sacristia há relíquias, peças com muito valor, um belo São Jorge a cavalo e uma escultura de madeira antiga, a imagem de um santo, descolorada, porque um dia um ajudante decidiu lavá-la com lixívia. Aos pouquinhos, o senhor padre já disse, tudo será restaurado. A senhora é uma simpatia e gosta mesmo do seu trabalho, é responsável pela igreja e sente um imenso orgulho por nos dar a ver tanta beleza. Ama a sua Santa Comba. Perante a imagem, os seus olhos brilham. É mesmo linda. A santa e a senhora que, deve ser dos meus olhos, até acho que se parecem uma com a outra. Agradecemos o acolhimento e despedimo-nos. Pouco tempo depois, antes de partirmos da aldeia, seríamos surpreendidos pela santa. A verdade é que saltou do altar. Mas primeiro vamos ao restaurante.



No café-restaurante Vilariça há um frenesim que se adivinha raro. Agosto é o mês dos reencontros e a procissão é já dali a dois dias. Entram, saem, passam emigrantes e gente da terra. De vez enquando todos se levantam numa mesa para abraçar alguém. Aquele chegou agora mesmo. A viagem, oh, fez-se num instante, de carro, pois, é o hábito. Tem um look muito cool, careca, brinco na orelha, e começam logo a contar-lhe as novidades. A mais divertida aconteceu na noite anterior, uma grande farra com o Carlos, o Eugénio e mais uns quantos, depois de passarem o dia a apanhar as batatas todas do pai do António. Só homens, não sei quantos sacos, e está visto que à noite foi só entornar. Mas no café vivem-se alguns dramas. A morte recente da mulher do senhor ali ao lado é um deles. Quem passa ainda lhe dá os sentimentos, um abraço, umas palavras de consolo. Por momentos ele chora, às vezes até soluça, mas logo se controla. Uma senhora bem apessoada oferece-lhe pragmatismo: "ela foi na hora que tinha que ir, lá chegará a sua vez também". Valem-lhe os amigos, da mesma idade, sentados na sua mesa. Tentam animá-lo. "A ti conheci-te quando aindas eras solteiro. Que idade tens agora? - Setenta e oito." "Lembras-te daquela vez que o morto se mexeu?". Todos se lembravam e a tal senhora também, assustou-se tanto que até torceu um pé. E num instante, está tudo a rir. Quando voltam a ficar sós, os três velhos amigos entram em conversas de escárnio e maldizer. "Fulano de tal que julga que tem sempre razão e que não se pode contradizer". Vidas! Vidas que se cruzam com as nossas enquanto comemos "pica-paus" e outros petiscos.

Na Igreja, a Santa Comba espera-nos à entrada da porta. Ainda há pouco tão quieta no altar-mor e de repente toda saltitante sobre o andor! É preciso amarrá-la melhor.



Com 41 anos de experiência, isso não vai ser problema para o mestre amarrador de santos. Outras igrejas pagariam mais, mas ele mantém-se fiel à terra. Puxa a corda, testa, a santa está fixa, não vai cair. O neto assiste. Veio de Vitoria, no País Basco, que nem todos na aldeia passaram a ser franceses. "E a senhora, quem é o seu sogro?" - Eu, ah, não sou de cá, estou só de passagem. "Pensei que era estrangeira, casada com um dos nossos."


Fotos de MRF/2007


ADENDA: O Rui Gonçalves aconselha o restaurante Vilariça, que serve "a melhor Posta à Mirandesa da região" e umas excelentes rabanadas pelo Natal. Eu insisto nos Pica-paus. Ambos concordamos sobre a simpatia do dono da casa (e dos empregados). Telefone: 278 536 258.

As cidades invisíveis

Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior atenção e curiosidade que a qualquer outro enviado seu ou explorador. Na vida dos imperadores há um momento, que se segue ao orgulho pela vastidão ilimitada dos territórios que conquistámos, à melancolia e ao alívio de sabermos que em breve renunciaremos a conhecê-los e a compreendê-los;[...] é o momento desesperado em que se descobre que este império que nos parecera a soma de todas as maravilhas é uma ruína sem pés nem cabeça, que a sua corrupção está demasiado gangrenada para que baste o nosso ceptro para a remediar [...].

in Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
Ed. Teorema


Nas últimas semanas andei por aldeias cidades quase invisíveis, escondidas por mares de granito, marões, muitos, parentes do único Marão da pátria de Torga ou, mais a Sul, nascidas à beira da Estrela (que só por isso a Beira é a Beira, à beira da serra), algumas célebres pelas suas ruínas, lugares que deixaram de ser o que eram e que existem agora com outra alma, a custo, ainda dependentes da riqueza que se atribuir às pedras mais ou menos soltas ou agregadas, esculpidas ou torturadas, que escaparam a séculos ou a décadas de abandono. Terras que são de quem lá ficou ou de quem foi para longe, para muito longe, mas volta sempre, custe o que custar, para carregar o Santo ou abraçar compadres. Terras de suas gentes, velhas, pobres, saudosas de frutos e filhos, mas inertes. Ou terras que seguraram a última candeia e se transformaram em coisa híbrida, fruto da fusão da cultura rural original com os valores do novo turismo, histórico, alternativo.

É o nosso império, e a soma de todas estas maravilhas não pode vir a ser uma ruína sem pés nem cabeça. Mas, antes que a memória, o desejo, os sinais, as trocas, até o nome, se alterem novamente, convém ir até lá. Todos os lugares se aproximaram de nós. E os olhos podem agora ser muitos.

A partir de hoje, em cada fim de semana tentarei recrutar exploradores, falando deste ou daquele lugar quase invisível. Até que se esgote a memória e os arquivos de fotografias (pelo que não garanto nada :) ).

7.9.07

À escuta #48


Numa das praias fluviais mais limpas e equipadas que vi no nosso país, na barragem do Azibo (próximo de Macedo de Cavaleiros), uma emigrante perturba toda a clientela do restaurante de apoio. "Berra" com alguém ao telemóvel durante quase uma hora em francês. Todos a ouvem insultar toda a familia portuguesa, nomeadamente o oncle Machado, e concluir várias vezes que c'est ma famille mais ils ne sont que de la merde. Pedem-lhe que se retire, o que ela faz, mas como continua a gritar, e as portas envidraçadas estão todas abertas, o incómodo não desaparece. Então alguém diz que não vale a pena criar infraestruturas modernas, de design arrojado, como aquele, em frente a uma praia que deve ser a única a ter avisos em braille, passagens niveladas para deficientes, canadianas anfíbias, etc., para aquele tipo de clientela. Ou seja, não se deve oferecer pérolas (civilidade) a porcos. Ouvem-se cochichos em todas as mesas. Muito preocupadas com a ideia de perder outros "lagos" como aquele só por causa do comportamento de uma senhora, as minhas filhas decidem entrar na discussão. A dado momento, S. levanta a voz bem alto e afirma:

- Os cegos não têm culpa!

À escuta #47

Em viagem, num mesmo dia, entram em Espanha (Sanábria), regressam a Portugal (Trás-Os-Montes) e, mal entram num restaurante, percebem que nas mesas à volta muitas pessoas falam francês. Conclusão da S. que poucos dias antes tinha ouvido uma explicação sobre a CE:
- Isto é que é a tal Europa, não é?

À escuta #46

A - Todos aqui são franceses!
- Não são bem franceses. São portugueses que vivem em França e estão cá de férias.
A - Mas tantos?
- Sim, no mês de Agosto têm férias e voltam à terra para matar saudades.
A - Mas se têm saudades por que não falam português?
- Alguns já vivem em França há muitos anos e habituaram-se a falar mais em francês do que em português.
A - Eu acho que eles não querem que os outros percebam o que dizem. É como se dissessem segredos em voz alta, não é? Mas isso não se faz!