8.9.07

Aldeias e cidades (quase) invisíveis #1



Entre Bornes e Vila Flôr, na IP2, uma paragem de autocarro onde se lê: "Deixem desabrochar o sonho que existe dentro de vós". Paragem, inversão de marcha, para voltar a sorrir. Uma foto, olhar à volta, montanha, tanta montanha, quem virá aqui apanhar a carreira para a cidade? E logo ao lado reparo num pequeno caminho com a indicação de Santa Comba da Vilariça/Cruzeiros/Pelourinho.


O carro parece encolher nas ruas estreitas. Velhos sentados nas escadas de pedra das casas. Uma faz esquina e concentra um grupo animado. Donas de casa aparecem à janela. Todos sorriem e espreitam, certamente a ver se reconhecem os visitantes. É quinta-feira e no sábado vão começar as festas de Santa Comba. Esperam-se muitos parentes emigrados em França ou Espanha, poderia ser o nosso caso. Mas isso só compreenderemos depois. Por agora, procuramos um lugar para estacionar e, dada a hora, estamos também de olho num restaurante.

A porta da Igreja fecha na mesma altura em que saímos do carro. Pouca sorte, dizemos, mas logo uma senhora nos pergunta se gostaríamos de ver a Santa Comba. Quem? A santa, que por acaso é muito linda, muito linda. E venham, venham, só um bocadinho que vou iluminar o altar. O altar, em talha dourada, fica resplandecente com a luz, e as pinturas dos caixotões do tecto avivam-se.




Foram restaurados há pouco tempo. O senhor padre vai fazendo as obras que é preciso, aos poucos, e todos contribuem, aos pouquinhos. O senhor padre é um homem novo, quer dizer, chegou ali um rapaz e agora deve ter uns trinta e sete. É famoso, é "o padre casamenteiro", porque nenhum dos casamentos que realizou acabou em divórcio. Na sacristia há relíquias, peças com muito valor, um belo São Jorge a cavalo e uma escultura de madeira antiga, a imagem de um santo, descolorada, porque um dia um ajudante decidiu lavá-la com lixívia. Aos pouquinhos, o senhor padre já disse, tudo será restaurado. A senhora é uma simpatia e gosta mesmo do seu trabalho, é responsável pela igreja e sente um imenso orgulho por nos dar a ver tanta beleza. Ama a sua Santa Comba. Perante a imagem, os seus olhos brilham. É mesmo linda. A santa e a senhora que, deve ser dos meus olhos, até acho que se parecem uma com a outra. Agradecemos o acolhimento e despedimo-nos. Pouco tempo depois, antes de partirmos da aldeia, seríamos surpreendidos pela santa. A verdade é que saltou do altar. Mas primeiro vamos ao restaurante.



No café-restaurante Vilariça há um frenesim que se adivinha raro. Agosto é o mês dos reencontros e a procissão é já dali a dois dias. Entram, saem, passam emigrantes e gente da terra. De vez enquando todos se levantam numa mesa para abraçar alguém. Aquele chegou agora mesmo. A viagem, oh, fez-se num instante, de carro, pois, é o hábito. Tem um look muito cool, careca, brinco na orelha, e começam logo a contar-lhe as novidades. A mais divertida aconteceu na noite anterior, uma grande farra com o Carlos, o Eugénio e mais uns quantos, depois de passarem o dia a apanhar as batatas todas do pai do António. Só homens, não sei quantos sacos, e está visto que à noite foi só entornar. Mas no café vivem-se alguns dramas. A morte recente da mulher do senhor ali ao lado é um deles. Quem passa ainda lhe dá os sentimentos, um abraço, umas palavras de consolo. Por momentos ele chora, às vezes até soluça, mas logo se controla. Uma senhora bem apessoada oferece-lhe pragmatismo: "ela foi na hora que tinha que ir, lá chegará a sua vez também". Valem-lhe os amigos, da mesma idade, sentados na sua mesa. Tentam animá-lo. "A ti conheci-te quando aindas eras solteiro. Que idade tens agora? - Setenta e oito." "Lembras-te daquela vez que o morto se mexeu?". Todos se lembravam e a tal senhora também, assustou-se tanto que até torceu um pé. E num instante, está tudo a rir. Quando voltam a ficar sós, os três velhos amigos entram em conversas de escárnio e maldizer. "Fulano de tal que julga que tem sempre razão e que não se pode contradizer". Vidas! Vidas que se cruzam com as nossas enquanto comemos "pica-paus" e outros petiscos.

Na Igreja, a Santa Comba espera-nos à entrada da porta. Ainda há pouco tão quieta no altar-mor e de repente toda saltitante sobre o andor! É preciso amarrá-la melhor.



Com 41 anos de experiência, isso não vai ser problema para o mestre amarrador de santos. Outras igrejas pagariam mais, mas ele mantém-se fiel à terra. Puxa a corda, testa, a santa está fixa, não vai cair. O neto assiste. Veio de Vitoria, no País Basco, que nem todos na aldeia passaram a ser franceses. "E a senhora, quem é o seu sogro?" - Eu, ah, não sou de cá, estou só de passagem. "Pensei que era estrangeira, casada com um dos nossos."


Fotos de MRF/2007


ADENDA: O Rui Gonçalves aconselha o restaurante Vilariça, que serve "a melhor Posta à Mirandesa da região" e umas excelentes rabanadas pelo Natal. Eu insisto nos Pica-paus. Ambos concordamos sobre a simpatia do dono da casa (e dos empregados). Telefone: 278 536 258.

2 comentários:

Rui Gonçalves disse...

Ah! O Vilariça! Talvez a melhor Posta à Mirandesa da região. E as rabanadas no Natal? E a simpatia do dono... Tudo muito bom!
Se quiserem reservar telefonem para 278 536 258.
A minha mãe e a minha sogra são de Vila Nova De Foz Côa, ali (relativamente) perto.
Boas viagens por este Portugal...
Bjs
Rui

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Pois, eu ia a caminho de Foz Côa quando descobri este cantinho de Portugal. Escapou-me a Posta, mas experimenta os Pica-paus ;)

Obrigada pela dica
Beijos