28.9.07

A Sinfonia Pastoral

A vizinha pegou então numa vela que dirigiu para um canto e assim pude distinguir, acocorado na lareira, um ser incerto, que parecia adormecido, com o rosto quase todo tapado pela espessa massa de cabelo.
- Esta menina cega. (...) Terá de ser levada para o hospício, senão, não sei o que será dela.
Fiquei chocado ao ouvir decidir assim do destino da menina (...).
Acudiu-me logo ao espírito tomar eu próprio conta daquela pobre menina abandonada (...)

A minha mulher é um jardim de virtudes e mesmo nos momentos difíceis que tivemos por vezes de passar não me foi dado a duvidar um instante da qualidade do seu coração; porém, a sua caridade natural não gosta de ser apanhada de surpresa. É uma pessoa amante da ordem, que faz questão de não ficar aquém nem ir além do dever. A sua própria caridade está regulada como se o amor fosse um tesouro esgotável.

pp 13-16

in André Gide, A Sinfonia Pastoral
Ed. Ambar, Porto, Janeiro 2006
[Original editado em 1919 pelas Éditions Gallimard]

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