14.9.07

História de amor e trevas #3

LEA ZAREMBO

Naquela época, aparentemente, no topo da escala de prestígio estavam os pioneiros. Mas os pioneiros viviam longe de Jerusalém, nas planícies costeiras, na Galileia, nos desertos das margens do Mar Morto. Nós venerávamos de longe a sua imagem forte e sonhadora, com o tractor e os sulcos da terra como pano de fundo, nos cartazes do Fundo Nacional Judaico.
Um pouco abaixo vinha a comunidade organizada: leitores do jornal Davar* sentados nas varandas, de camisola interior, no Verão, membros da Histadrut*, da Haganá*, da Caixa de Segurança Social, vestidos de caqui, que contribuíam para a «caixa comunitária», adeptos da salada-omelete-queijo fresco, partidários da contenção, da responsabilidade, de um modo de vida sólido, da «caixa comunitária», da produção local, do proletariado, da disciplina partidária e das azeitonas não picantes em frascos de Tnuva, Azul em cima e azul em baixo, construímos um porto aqui! um porto aqui!

Do outro lado da barreira, frente a esta comunidade organizada, estavam os dissidentes-terroristas, os ultra-ortodoxos de Mea Shearim*, bem como os comunistas «inimigos de Sião», e uma plêiade de intelectuais, de carreiristas, de artistas egocêntricos do tipo cosmopolita decadente e com eles uma quantidade de excêntricos, de individualistas e niilistas duvidosos, de yekes* incapazes de se desfazerem dos seus tiques germânicos, de toda a espécie de snobs anglicizados, de sefarditas afrancesados ricos que, vistos de cá, pareciam lacaios cerimoniosos, de Iemenitas, de Georgianos, de Marroquinos, de Curdos e de originários de Salónica, todos eles indiscutivelmente nossos irmãos, e uma mão-de-obra incontestavelmente muito promissora, mas o que fazer, ainda tínhamos de ter muita paciência com eles e não poupar esforços.

Havia ainda os refugiados e os imigrantes clandestinos, os sobreviventes e os antigos deportados, que eram olhados em geral com um misto de piedade e desprezo: uns pobres coitados, uns miseráveis, mas quem lhes tinha mandado esperar por Hitler, em vez de virem para cá quando ainda era tempo? E porque se tinham deixado levar como gado para o abate em vez de se organizarem e de resistirem? E que acabassem de vez com aquelas lamúrias em iídiche, e não começassem a contar-nos o que lhes fizeram lá, porque não é coisa para se orgulhar, nem eles nem nós. E para além disso, nós aqui estávamos virados para o futuro e não para o passado e, a propósito de passado, nós tínhamos um passado hebraico glorioso, bíblico e hasmoneu, e não valia a pena desfeá-lo com um passado judeu deprimente, feito de amarguras e desgraças (que nós pronunciávamos sempre em iídiche «tsures», com uma careta de nojo e escárnio, para que as crianças percebessem que aquelas desgraças eram uma espécie de lepra deles e não nossa).

pp. 19-20

in Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas
Ed. ASA, Março de 2007


*
Davar: Literalmente «palavra». Jornal hebraico, órgão da Histadrut, publicado entre 1925 e 1944.
Histadrut: Organização Geral dos Trabalhadores Israelitas, fundada em 1920.
Haganá: Literalmente «Defesa». Organização militar clandestina da colónia judaica na Palestina, durante o mandato britânico, de 1920 a 1948, que viria a ser a base do futuro exército israelita a partir da fundação do Estado de Israel, em 1948.
Mea Shearim: Literalmente «Cem portões», bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém.
Yekes: Nome dado aos judeus alemães.

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