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1.12.08

das Comemorações #2

Os últimos redutos do patriotismo não são a monarquia nem o PCP, mas a comparação é genial! Se as monarquias estão mais próximas da natureza, já não sei se o deus de D. Duarte é o dos cristãos ou se é um deus panteísta. Viva a República! Viva a laicidade! Mas eu gostei da entrevista de D. Duarte de Bragança ao Publico.

(...)
- Porque faz sempre um discurso no 1º de Dezembro?
(...)
- Criou-se a ideia de que a nossa independência não é necessária. De que podemos depender dos outros, seja da União Europeia, seja dos americanos ou dos espanhóis. E até que seríamos mais bem governados se o fôssemos por outros.
- Isso é uma tendência recente?
- É um pensamento que data de 1910. O núcleo duro da revolução tinha como objectivo a União Ibérica. É por isso que o vermelho da bandeira portuguesa, que representa a Espanha, é maior do que o verde, que representa Portugal. E ainda hoje há quem pense assim, até alguns ilustres escritores, que deveriam ter mais juízo.
- Mas porque cabe aos monárquicos defender o patriotismo?
- Porque não vejo mais ninguém a fazê-lo. As associações dos antigos combatentes celebram o 10 de Julho, o Presidente da República comemora o Ano Novo, e o 25 de Abril, e ainda há alguns que vão ao cemitério do Alto de São João celebrar o 5 de Outubro.
- O Presidente da República deveria fazer um discurso no 1º de Dezembro?
- Sim. Se o fizer, deixo de fazer o meu.
- A monarquia é o último reduto do patriotismo?
- O último não. O Partido Comunista também é muito patriótico.
- O que há de comum entre as duas forças?
- Um certo idealismo próprio de quem adere a movimentos políticos que não dão compensações, que não dão emprego. Se um dia houver em Portugal um referendo e ganhar a causa monárquica, os movimentos monárquicos deixam de existir.
- Quem está nos grandes partidos é sempre por interesse?
- Os partidos deveriam fazer um trabalho de formação doutrinária. Digo muitas vezes aos meus amigos do PS, por exemplo, que é fundamental debater a doutrina. Para que serve hoje em dia o socialismo?
- Acredita no socialismo?
- Acredito no socialismo cooperativista, como era definido no século XIX, por Antero de Quental, ou António Sérgio.
- Poderia ter aplicação hoje em dia?
- Podia. Veja um caso concreto. Qual é hoje o sector bancário que não está em crise? O crédito agrícola. Por ser cooperativista, mutualista. O Montepio é a mesma coisa, não teve crise. São mais abertos, têm muita gente a dar opinião, a acompanhar o que eles fazem. O Crédito Agrícola é propriedade de centenas de caixas agrícolas espalhadas pelo país. Eu sou o presidente da Assembleia-Geral da Caixa Agrícola de Nelas, e temos uma participação na caixa central. Representamos mais de um milhão de portugueses, mas não nos ligam nenhuma, a nível político.
- O PS devia estar mais atento a essa realidade?
- Sim, porque o pensamento socialista original em Portugal era esse. Se o cooperativismo estivesse mais desenvolvido, vários factores beneficiariam muito.
- Mas essas empresas podem ser competitivas?
- Na Holanda, na Áustria, na Suíça, na Alemanha, na Escandinávia, grandes organizações empresariais são cooperativas. O maior banco da Holanda é uma cooperativa. Em França, o maior banco é o Crédit Agricole. Mas estas empresas têm um inconveniente: não dão tachos a ex-ministros. Nem financiam campanhas eleitorais. Por isso não são muito simpáticas.
(...)
- Acha que devia ter uma pensão do Estado?
- Não. Isso retirava-me a independência, para a minha acção política. Embora, quando faço missões pelo mundo fora, o faça em colaboração com o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
- Que missões são essas?
- Neste momento, tenho um programa de desenvolvimento ambiental agrícola na Guiné-Bissau, outro em Angola, de introdução de novas técnicas de construção civil, outro em Timor. Estou a iniciar um projecto de ensino da língua portuguesa nos países que aderiram agora à lusofonia, como o Senegal, a Guiné Equatorial e as Ilhas Maurícias.
- Como escolhe as missões?
- Quando vejo uma oportunidade que possa ser interessante, proponho ao MNE. São sempre no campo das relações externas, geralmente com países com que Portugal tem relações fracas, como foi o caso da Indonésia, durante algum tempo, ou são hoje os países árabes.
- É respeitado nos países árabes?
- Quando estou numa monarquia árabe sou descendente do profeta Maomé.
- Porquê?
- A rainha Santa Isabel era descendente de um príncipe árabe que era descendente de Maomé. Por isso, a minha posição é completamente diferente da de qualquer embaixador da república portuguesa.
- Isso é reconhecido em todo o mundo árabe?
- É. Mas quando estou em Israel digo que o D. Afonso Henriques era descendente do Rei David. Aliás, aconteceu uma coisa curiosa, nesta última viagem a Jerusalém: o chefe dos sefarditas contou-me que D. Pedro II do Brasil, bisavô da minha mãe, tinha visitado Israel e falava fluentemente o hebreu.
- Esse respeito de que é objecto em todo o lado deve-se a pertencer a uma família aristocrática?
- Não. Não tem anda a ver com aristocracia. É por ser o chefe de uma Casa Real. O imperador do Japão, por exemplo, recebeu-me na biblioteca, coisa que só faz com a sua família.
- Também é da família dele?
- Não. Mas aconteceu uma coisa engraçada. No fim, o imperador veio à porta despedir-se de mim, o que também só faz com parentes. O motorista do táxi viu e foi contar no hotel. Quando cheguei lá, tinha os directores à minha espera, pedindo-me licença para me instalarem numa suite especial, porque viram que o imperador me tinha tratado como família.
- É como se as famílias reais fossem todas uma grande família.
- Sim. É uma família espiritual.
- Mas porque faz essas missões? Não tem obrigação nenhuma.
- Sinto que o facto de ter nascido nesta família me dá uma obrigação moral para com o meu povo.
(...)
- O atraso que temos é herdeiro do 25 de Abril?
- É sobretudo herdeiro de 1910. Se o rei D. Carlos não tivesse sido assassinado, não teria havido a revolução republicana. A nossa monarquia teria evoluído democraticamente como as outras. A revolução de 1910 atrasou Portugal muitos anos, e teve como consequência a revolução do Estado Novo de 1926.
- É um ciclo de desgraças.
- Sim, de atrasos no desenvolvimento português. E agora, mais uma vez, se houver uma grave crise, ninguém acredita que a democracia a resolva. As pessoas vão dizer que querem um militar que tome conta de nós.
- Isso lembra o que Manuela Ferreira Leite disse recentemente. A grave crise pode, de facto, acontecer? Pode acabar com a democracia?
- A educação democrática em Portugal é muito fraca. As pessoas ainda não perceberam qual é o papel dos partidos e do Parlamento. Se houver uma crise grave, com fome, pilhagens, tudo isto vai por água abaixo. Basta que, por um acto terrorista, não recebamos petróleo, que por causa de greves, ou distúrbios, a importação de produtos alimentares seja suspensa. Somos completamente dependentes. Pode haver centenas de milhares de pessoas a manifestarem-se por uma intervenção totalitária dos militares, ou do Presidente.
- Como é que o regime impede que se chegue a esse ponto?
- É preciso que a democracia seja participativa. Devia haver referendos, a sociedade civil deveria participar das decisões. As pessoas não deveriam apenas depositar o seu voto numa urna (este nome não augura nada de bom. Geralmente, o que está na urna são os mortos). As organizações ecologistas, por exemplo, deveriam ter milhares de colaboradores...
- As monarquias são mais sensíveis à causa ecologista...
- Sim, porque defendem os valores permanentes.
- As próprias famílias reais são permanentes, no poder.
- As monarquias são mais ecológicas porque estão mais próximas da natureza humana, que é baseada na família.
- As repúblicas são contranatura?
- São. As repúblicas são contranatura. Excepto aquelas repúblicas muito tradicionais, como a Suíça, ou os EUA, onde, de algum modo, elegem um rei.
- O Presidente americano é um rei?
- Sim. Esteve mesmo para ser rei. E tem mais poder do que algum rei tem hoje em dia.
(...)

20.9.08

Que laicidade para a Europa do século XXI?

Em alguns países europeus, esta é a questão da ordem do dia e urge uma resposta sábia. Em França, dois discursos de Nicolas Sarkozy - em Roma a 2 de Dezembro e em Riad a 14 de Janeiro, acenderam o debate. Para o Presidente da República francês, «uma política de civilização» exige que «a dimensão religiosa do homem seja respeitada» e que se deixe de «ignorar oficialmente as religiões». Os Estados devem passar a «reconhecer "o facto religioso" nas suas dimensões histórica e cultural» e devem «acabar com a hipocrisia que vigora entre religiões e Estado, oficialmente separados mas unidos por numerosos laços e compromissos».

Estes discursos, que poderíamos considerar apenas très realpolitik, sobretudo o proferido na Arábia Saudita, excedem os limites da substância da lei de separação dos poderes (tal como vigora em França desde 1905) a partir do momento em que Sarkozy, Presidente de um Estado laico, declara que «Dieu est au coeur de chaque homme» e afirma que «a religião não pode ser reduzida ao simples espaço privado».

Não se põe em causa a bondade da intenção de pôr fim à «guerra das duas Franças» (clerical e laica) nem o valor do apelo à tolerância religiosa. O que é questionável é se podemos confundir (e preferir) a aceitação da diversidade religiosa e a defesa da laicidade.

A resposta, aparentemente simples, acabou por não me parecer nada evidente. No último ano estive na Bósnia, na Tunísia, em Inglaterra, na Alemanha, em França e na Suiça. Confesso que estranhei a omnipresença da comunidade muçulmana. O uso de burkas - para mim, uma manifestação pública de fanatismo religioso, e que eu julgava reservado a países conotados com o extremismo islâmico -, é uma prática que fui forçada a encarar com naturalidade. De resto, vi mais mulheres com burka na Suiça do que na Bósnia ou na Tunísia. Neste país, numa zona turística, nadei e fiz hidroginástica lado a lado com portadoras de túnica e hijab (o véu islâmico). Estranhei que não despissem a vestimenta dentro da piscina, mas entranhei.

No centro da Europa dei comigo a pensar na forma como reagiria se, na minha cidade, começassem a crescer mesquitas e minaretes. Na Suiça,
a população insurge-se contra esta nova tendência (construções maioritariamente financiadas pela Arábia Saudita). E nem pensar em ouvir o apelo à oração ou muezzin! Mas, e se a proibição se alargasse ao repicar dos nossos sinos? Defender a laicidade pode conduzir a esses silêncios, o que não me parece legítimo, sobretudo depois de ver como é possível a convivência aberta entre diferentes credos em Sarajevo (e não, não esqueci a trágica História recente).

Na Europa Ocidental, a influência do cristianismo decresce, a par da emergência de novas confissões. A Inglaterra já se assume como uma sociedade multiconfessional (cristã, muçulmana e hindu). Noutros países, a integração da minoria muçulmana continua a suscitar tensões e a dividir opiniões. Assumo-me como defensora dos princípios da laicidade, mas não concordei com a lei que proibiu o uso do véu islâmico nas escolas francesas. Saber conviver com a diversidade religiosa e o multiculturalismo (conceitos diferentes mas que aqui se aproximam) supõe, para mim, o respeito pela decisão individual de ostentar símbolos religiosos. Ideais feministas e leis de paridade entre géneros devem reconhecer a impossibilidade de avaliar com rigor - e determinar - se esses comportamentos são impostos por terceiros (normalmente pais ou maridos). Enfim, esse tem sido o argumento utilizado pelos defensores da polémica lei. Discordo. Discordo também que
um juiz possa não atribuir a nacionalidade francesa a uma cidadã por esta usar burka como aconteceu recentemente, também em França.

Na Tunísia, as turistas ocidentais que faziam topless suscitavam-me o mesmo tipo de questões que as muçulmanas de burka na Suiça. Por momentos, ainda ficava dividida entre o deleite de me sentir rodeada de todos os mundos e o (pre)conceito que me levava a comportar-me e a desejar que todos se comportassem seguindo o lema de "em Roma faz como os romanos".

A verdade é que não há "romanos" puros. Nesta era de migrações globais, o que é ser europeu? É-se europeu independentemente do país de ascendência, da raça e do credo. Está a ser difícil aceitar a nova identidade europeia, mas convém não esquecer o que somos.

Voltemos então ao cerne da questão: tem sentido a defesa do que Nicolas Sarkozy apelidou de «laicidade positiva»?

As minhas leituras levaram-me à descoberta de um artigo escrito por Mustapha Benchenane (Révue "Une Certaine Idée", nº 16 de Dez. 2003) no momento em que se vivia um clima agitado em França devido precisamente à questão do uso do véu islâmico nos estabelecimentos de ensino público. Benchenane conclui que a laicidade, tal como é definida e está consagrada no sistema legal francês (lei de 9 de Dezembro de 1905), não se opõe ao uso de qualquer símbolo religioso em locais públicos, incluindo a escola. O Islão, por outro lado, ao contrário do que defendem os fundamentalistas, não obriga as mulheres a tapar-se. O hidjab ou a burka não são prescritos pelo Corão. Porquê então o psicodrama criado pelos parlamentares franceses e pelos representantes da comunidade islâmica?
A verdade é que Estados e cidadãos se sentem ameaçados e "invadidos" pela diferença das minorias (crescentes) e que, por outro lado, o hidjab e a burka, assim como a construção de novos templos, são utilizados na Europa como uma forma de afirmação político-religiosa. Por agora, nenhuma destas manifestações levou directamente à alteração da ordem pública mas a tensão aumenta e adivinham-se conflitos. Um Estado laico deve ser neutro em matéria de religião. O discurso de Sarkosy reflecte pois um imenso desvario. Dar poder à ala clerical (seja ela qual for) terá um efeito perverso. Mas, e nós, meros cidadãos desta Europa? Aceitamos a expressão de diferentes confissões no nosso quotidiano, aceitamos as mudanças obrigatórias no nosso habitat, ou dizemos não a tudo em nome da laicidade? Há meio termo?
O debate está aberto.


Adenda: Colónia - Congresso de extremistas de direita provoca protestos - Pretexto: construção de mesquita

Laicidade na Europa do século XXI

A separação entre Igreja e Estado diz respeito à política e não se estende a outros domínios?
A defesa da laicidade pode pôr em causa o direito à diversidade cultural e religiosa?

Mostar, Bósnia

Yasmine Hammamet, Tunísia (Hotel)

Vevey, Suiça

Montreux, Suiça

Neuchâtel, Suiça

Paris, França


Versailles, França

13.9.07

Cruzes credo


Quando é que vamos acabar de vez com os sinais da cruz em espaços laicos! E o Filipe Tourais tem razão quando nos convida a encontrar as (7) diferenças.

23.7.07

República e Laicidade

"...para além da questão mais relevante da necessidade de se garantir a independência do Estado face às Igrejas e demais comunidades religiosas, a Laicidade também defende a máxima liberdade de expressão e difusão de todas as opções filosóficas e ideológicas que não visem destruir as liberdades."




Confirma-se a notícia de que o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), com origem no movimento islamista, obteve maioria absoluta no Parlamento Turco. O principal partido da oposição pró-laica, o Partido Republicano do Povo (CHP, social-democrata), deverá obter cerca de 20% dos votos.

Mas não é apenas na Turquia que a questão da laicidade deve ser um motivo de luta política. Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer. Informem-se, adiram à
ARL. Leiam o Manifesto e os Estatutos da Associação e assumam a vossa posição. Espero que precisem desta ficha de adesão.

11.6.07

Por alma de quem?

Lido no site da Associação República e Laicidade:

"Por iniciativa da Embaixada de Portugal em França – e para não fugir à tradição –, em Paris, o dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas (10 de junho) foi assinalado com uma missa solene de acção de graças na Igreja de Notre Dame.

(...) aquela missa constituiu mesmo a única iniciativa oficial promovida pela representação diplomática nacional em França no dia 10 de Junho."

5.10.06

96 anos da República Portuguesa

Painel de Maria Keill no Átrio da Biblioteca-Museu República e Resistência


5 de Outubro de 1910
5 de Outubro de 2006



Este é um bom dia para ficar a conhecer as obras e exposições que esta Biblioteca Museu tem disponíveis ao público (atenção Câmaras e Bibliotecas Municipais!). E, é claro, podem sempre ler e participar nos fóruns e iniciativas da Associação República e Laicidade.

3.10.06

Sagrado & profano

Ana Koudella


Eu lembro-me da primeira vez que pequei. Até aí, portava-me mal, se batesse na minha irmã, por exemplo, ou lhe atirasse com os cubos de madeira dos puzzles infantis. Corria o ano de 1972. Um a um fomos confessar-nos. Estávamos na véspera do dia da Primeira Comunhão. De certeza que o padre me mandou rezar uns Pai-Nossos e duas Avé-Marias, ou o Acto de Contricção Meu Deus Porque Sois Tão Bom. Eu levava a sério o que os adultos me diziam e temia as ameaças, em especial se fossem lançadas por homens imponentes vestidos de batina negra. Nesse mesmo dia, experimentámos também, pela primeira vez, aquela partícula de pão ázimo que se transformaria em hóstia sagrada no Domingo seguinte, na missa a sério. "Ele" disse: quem morder a hóstia ofende o corpo de Cristo e isso é um pecado. E sem querer mordi a hóstia-que-ainda-não-o-era! Lembro-me perfeitamente do pânico que senti, estava condenada, de corar imenso e depois, já a sentir-me muito cobarde, de calar a culpa. Nunca esqueci esse episódio. Adolescente, quando compreendi de quem era o pecado, zanguei-me.

Recentemente, essas recordações voltaram à superfície. As minhas filhas chegaram à idade de frequentar a catequese. Desde há muito tempo que elas assistem curiosas ao rodopio dos miúdos em frente à Sé de Aveiro. Passamos por lá muitas vezes. Ficar a conhecer a vida de Jesus, o menino do presépio de Natal, parece-lhes bem, sobretudo se depois se pode correr e saltar no adro da Igreja. O mistério da catequese aumentou recentemente quando, assistindo a uma cerimónia religiosa, perceberam que só poderiam participar na eucaristia depois de fazerem a Primeira Comunhão. A ideia de poder tomar a hóstia, um dia, com solenidade, como os adultos, compreendendo o sentido do acto, motivou-as imenso.

Talvez possam saber (assim muito rapidamente) que hoje sou mais uma "católica não praticante" (é uma categoria nova, pós-moderna)(parece um novo dado do BI, irremediável, como o local de nascimento ou a altura). No meu caso, isso quer dizer que me foi dada uma educação religiosa católica mas que, actualmente, raramente vou à missa, não me confesso, e não acredito no Deus configurado católico que me foi inculcado. No entanto, quando menos espero, descubro em mim marcas da educação que tive e laivos de religiosidade. Respeito, obviamente, quem é crente, e não me sinto estranha nos lugares do meu culto. Mais, com o tempo, passei a encarar a fé como o mais válido dos anti-depressivos (e não há aqui nenhuma ironia).

Uma coisa é certa: não aceito que, no meu país, a Igreja (as Igrejas) ou os seus representantes, imponham restrições ao conhecimento (num sentido amplo) dos seus seguidores, ou tentem condicionar os comportamentos de natureza secular dos fiéis ou infiéis.

Apesar dos meus pequenos traumas, não me oponho de todo a que as minhas filhas frequentem a catequese. Acho mesmo que esta, bem orientada, pode enriquecê-las.
E, assumindo que as introduzo tão jovens numa comunidade religiosa particular, a minha, a do pai, dos avós, contava comigo e com o meio que as rodeia para relativizar dogmas.

Eis-me pois, cheia de intenções e apreensões, face a um grupo de cinco pessoas que recepcionam as inscrições - sentadas em fila numa espécie de "mesa de voto" - e que organizam o serviço da catequese na Sé de Aveiro. Problema imediato: o horário não é compatível com as actividades escolares. A catequese para os mais pequenos acontece à segunda-feira, às 16h. E não há nada a fazer.

Se existem falta de meios (salas, catequistas), e dizem-me que sim, eu estranho e lamento. Mas o que eu ouvi da parte desta "comissão organizadora" (onde não constava nenhum padre) é digno dos meus tempos de catequese, e não destes!
Este ano as escolas são obrigadas a ter ATL's (que incluiem desporto, inglês, música, etc.), pelo que as crianças saiem às 17h30. Mas, para esta "comissão", os pais não são obrigados a pô-las no ATL. Às 16 horas, as crianças da escola mais próxima têm inglês. Reacção: os pais têm que fazer opções, que decidam o que é mais importante, inglês ou catequese. Face a uma sugestão para alterarem os horários, perguntaram-me se pedi o mesmo à escola (que, por acaso, é uma das maiores do país em número de alunos: são 320). Quando manifestei desagrado face a tanta rigidez, deixaram claro que o serviço é gratuito. Quem não paga, não pode reclamar!

Mas eu reclamo. Os conteúdos das escolas e Igrejas não podem competir entre si. A escola ensina letras e números, humanidades e ciências. A Igreja instrui sobre a vida de Cristo e os ensinamentos dos livros sagrados.
De ambos eu espero que complementem a formação das minhas filhas em termos cívicos.

Para mim, esta conversa na ala paroquial da Sé de Aveiro é uma reprodução (se for optimista serão apenas resquícios) da mentalidade católica saloia em que fui obrigada a crescer. As minhas filhas vão ter que esperar. Não encontrei o ambiente certo para elas, nesta idade em que acreditam em tudo o que os adultos lhes dizem e que levam a sério as ameaças. O pecado vai continuar a morar ao lado.

Outras famílias mais temerosas a Deus sacrificarão o inglês. As suas crianças terão que esperar também.


P.S.: Enquanto escrevia isto fiquei com outra impressão: a de que, para a maior parte das pessoas, será incoerente defender o princípio da laicidade no regulamento das instituições públicas, viver pessoalmente com distanciamento os rituais da Santa Sé e optar por dar uma formação religiosa aos filhos. Mas é isso mesmo que eu faço e parece-me uma escolha válida. E este post é uma reclamação: a suposta liberdade que nos assiste hoje é sempre limitada por uma qualquer (muito antiga) pequena imbecilidade ou desorganização.

25.9.06

República e Laicidade

Picasso, Marianne


Comecemos por definir laicidade. Segundo Étíenne Pion (EP), é um conjunto de valores e ao mesmo tempo um sistema de vida social e cívica. Quais são esses valores? O primeiro é o da liberdade absoluta da consciência, a liberdade de crer ou não num Deus, de ter uma religião ou de mudar de religião, ou de ser ateu. Quebra-se assim uma ideia preconcebida em relação à laicidade. Segundo EP um ateu é geralmente laico mas nem todos os laicos são ateus.

O segundo valor ou princípio é o de que a liberdade de consciência supõe liberdade de expressão. Seria um paradoxo poder pensar e não poder expressar o pensamento. (...)

Todos estes aspectos dizem respeito a um conjunto de valores abstractos e filosóficos que caracterizam o pensamento laico. Mas existe uma segunda perspectiva obrigatória a ter em conta para compreender a laicidade. É preciso compreender como os sistemas sociais, cívicos e jurídicos, regulados por instituições, aplicam o ideal laico. (...)



Escrevi uma série de três textos sobre a questão da laicidade em Fevereiro/Março de 2005, por ocasião da passagem por Aveiro de Étienne Pion, presidente da CAEDEL - Centre d’Action Européénne Démocratique et Laïque. Agora, a Associação República e Laicidade, está a colocar no seu novo site/blog alguns "textos de referência" do seu arquivo e esses meus textos estão on line. Porque Étienne Pion é absolutamente esclarecedor relativamente à(s) problemática(s) da laicidade, penso que vale a pena ler o texto na íntegra. Se ainda não conhecem, esta é também uma boa ocasião para ficarem a conhecer a Associação República e Laicidade e pensar numa possível adesão.

9.2.06

Comunicado de Imprensa da Associação Cívica República e Laicidade

1. A Associação República e Laicidade considera que o único dever das autoridades de um Estado laico e democrático na actual «polémica dos cartunes» é reafirmar o direito inalienável dos cidadãos ao exercício da
liberdade de expressão, o qual inclui o direito à blasfémia. A Associação República e Laicidade não pode, portanto, deixar de lamentar e repudiar o comunicado do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros datado de 7 de Fevereiro de 2006.

2. Contrariamente ao que sustenta aquele documento oficial, a presente crispação internacional não evidencia uma «guerra de religiões», mas sim o confronto entre laicidade e clericalismo. A liberdade de expressão,
constitucionalmente garantida, é um direito fundamental que tem valor exactamente na medida em que não conhece excepções. Um alegado «dever de respeito» pelos «símbolos e figuras» religiosos não pode ser constituido em limite à liberdade de expressão, sob pena de destruir o debate livre e aberto que caracteriza as sociedades democráticas.

3. A Associação República e Laicidade – embora respeitando a legitimidade das crenças religiosas pessoais – considera também que quem exerce o cargo de Ministro do Governo da República Portuguesa não deve aduzir dogmas de fé (nomeadamente, a existência de um «profeta Abraão») como justificação de tomadas de posição políticas.

A bem da República.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
Luís Mateus (presidente)
Ricardo Alves (secretário)

13.1.06

República e Laicidade


A 9 de Dezembro passado festejou-se o primeiro centenário, em França, da Lei de Separação entre o Estado e a Igreja, a famosa Lei de 1905. Portugal também teve uma Lei de Separação entre o Estado e a Igreja pouco tempo depois, em 1911, com a sua 1ª República, e foi Afonso Costa o seu principal autor e promotor.
Num tempo em que tanto se discute a existência de crucifixos e a realização de cerimónias religiosas em muitas das nossas instalações escolares públicas, talvez fosse importante discutirmos mais o que é isso da Laicidade e como nos posicionamos nessa matéria. Para melhor se informarem deixo-vos o link da Associação República e Laicidade, um artigo de Fernando Savater, a Laicidade explicada às crianças, e a memória de uns posts aqui editados aquando da visita de Étienne Pion, Presidente do CAEDEL, a Aveiro, Laicidade I, II, III.

28.3.05

O problema com a religião


Salman Rushdie

Uma newsletter de Luis Mateus, presidente da associação República e Laicidade, chamava a atenção para este artigo (exclusivo DN/The New York Times Syndicate) de Salman Rushdie. Em 1989, o Ayatollah Khomeini lançou uma fatwa sobre o autor de Versículos Satânicos. Mas, como veremos, o seu problema com a religião ultrapassa essa sua experiência pessoal.

Nunca pensei em mim como um escritor que escreve sobre religião até uma religião ter começado a perseguir-me. A religião era uma parte do meu assunto, claro – para um romancista do sub-continente indiano, como poderia não ser assim?

(...) Agora, passados 16 anos, a religião persegue-nos a todos e, apesar de a maior parte de nós pensar, como eu pensei em tempos, que temos outras preocupações mais importantes, vamos todos ter de enfrentar o desafio. Se falharmos, este assunto em particular pode acabar por tomar conta de nós.
Para aqueles de nós que cresceram na Índia no rescaldo dos motins separatistas de 1946-1947, que se seguiram à criação dos Estados independentes da Índia e do Paquistão, a sombra desse massacre manteve-se como um aviso terrível sobre aquilo que os homens fazem em nome de Deus. E essa violência na Índia tem sido demasiado recorrente - em Meerut, em Assam e mais recentemente em Gujarat. Também a história europeia está cheia de provas dos perigos da religião politizada: as guerras francesas da religião, os amargos problemas irlandeses, o "nacionalismo católico" do ditador espanhol Franco e os exércitos rivais na guerra civil inglesa que iam para a batalha a cantarem ambos os mesmos hinos.
As pessoas sempre se viraram para a religião para obter respostas às duas grandes questões da vida: Donde viemos? E como devemos viver? Mas quanto à questão das origens, todas as religiões estão, simplesmente, erradas. O universo não foi criado em seis dias por uma força suprema que descansou no sétimo dia. Nem foi amassado, até se formar, por um deus do céu com uma batedeira gigante. E quanto à questão social, a verdade nua e crua é que sempre que a religião se senta aos comandos da sociedade o resultado é a tirania. O resultado é a Inquisição ou então os talibãs. Contudo, as religiões continuam a insistir que fornecem um acesso especial às verdades éticas e consequentemente merecem um tratamento e uma protecção especiais. (...)
A emergência do islão radical não precisa de ser descrita aqui, mas o ressurgimento da fé é um assunto mais amplo do que isso.

Nos Estados Unidos actuais é possível para quase toda a gente – mulheres, homossexuais, afro-americanos, judeus – candidatar-se e ser eleito para um cargo elevado. Mas um ateu confesso não teria mais hipóteses que um pregador no deserto. Daí a crescente qualidade santimonial do discurso político americano. Segundo Bob Woodward, o actual Presidente vê-se a si próprio como um "mensageiro" a fazer "a vontade de Deus", e "valores morais" tornou-se a frase código para o fanatismo conservador, anti-homossexual, anti-aborto. Os democratas derrotados também parecem estar a escorregar para este tipo de terreno, talvez em desespero de alguma vez poderem vir a ganhar umas eleições de outro modo.
Segundo Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, "o choque entre aqueles que acreditam e aqueles que não acreditam irá ser um aspecto dominante das relações entre os EUA e a Europa nos próximos anos". Na Europa, as bombas nas estações de comboios de Madrid e o assassínio do realizador holandês Theo Van Gogh são vistos como avisos de que os princípios seculares que estão na base de qualquer democracia humanista precisam de ser defendidos e reforçados.
Mesmo antes de acontecerem estas atrocidades, a decisão francesa de banir os símbolos religiosos tais como os lenços islâmicos teve o apoio de todo o espectro político. As reivindicações islâmicas para aulas separadas e pausas para oração foram também rejeitadas. São poucos os europeus que hoje em dia se consideram, a si próprios, religiosos – apenas 21%, segundo um recente estudo de valores europeus, contra 59% de americanos, segundo o Pew Forum. Na Europa, o Iluminismo representou uma fuga ao poder da religião de impor limites ao pensamento, enquanto na América representou uma fuga para a liberdade religiosa do Novo Mundo – um movimento em direcção à fé, mais do que um afastamento dela.
Muitos europeus vêem agora a combinação americana de religião com nacionalismo como assustadora. A excepção ao secularismo europeu pode ser encontrada na Grã-Bretanha ou pelo menos no Governo do devotadamente cristão, crescentemente autoritário Tony Blair, o qual está agora a tentar pressionar o Parlamento a fazer passar uma lei contra "o incitamento ao ódio religioso", numa tentativa cínica de angariação de votos para apaziguar os defensores dos muçulmanos britânicos, a cujos olhos praticamente qualquer crítica ao Islão é ofensiva. Jornalistas, advogados e
uma longa lista de figuras públicas avisaram que essa lei irá limitar dramaticamente a liberdade de expressão e falhará o objectivo – irá aumentar os distúrbios religiosos em vez de os diminuir. O Governo de Blair parece olhar para toda a questão das liberdades civis com desdém: o que importam as liberdades, por muito duramente conquistadas e acalentadas que tenham sido, quando colocadas face às necessidades de um Governo que enfrenta a reeleição? E no entanto a política de apaziguamento de Blair deve ser derrotada. Talvez a Câmara dos Lordes faça aquilo que os comuns não fizeram e mande esta má lei para o lixo.
E, embora isto seja mais improvável, talvez os democratas americanos percebam que na actual América 50/50 eles tenham, possivelmente, mais a ganhar ao se posicionarem contra a Coligação Cristã e seus companheiros de viagem, e ao se recusarem a deixar que a visão do mundo de Mel Gibson modele a orientação social e política americana. Se estas coisas não acontecerem, se a América e a Grã-Bretanha permitirem que a fé religiosa controle e domine o discurso público, então a aliança ocidental ver-se-á colocada sob uma pressão cada vez maior, e esses outros regionalistas, aqueles contra os quais é suposto estarmos a lutar, irão ter grandes motivos de júbilo.
Victor Hugo escreveu que "em todas as terras há um archote, o mestre-escola, e um extintor, o pároco". Precisamos de mais professores e de menos padres nas nossas vidas, porque, como James Joyce disse uma vez "Não há nenhuma heresia ou filosofia que seja tão detestável para a Igreja como o ser humano."
Mas talvez o grande advogado americano Clarence Darrow tenha defendido o argumento secular melhor que todos os outros. "Eu não acredito em Deus", disse ele, "porque também não acredito em fadas."

7.3.05

Laicidade III

Étíenne Pion, Presidente do CAEDEL, considera que o Tratado da Constituição Europeia não respeita todos os princípios fundamentais da laicidade. A saber:

- Este documento fixa a prática do liberalismo económico (diga-se, capitalismo). Depois da queda do muro de Berlim e dos regimes comunistas, é a primeira vez que uma constituição estabelece de forma dogmática o sistema económico. Leia-se o artigo "1-3º Objectivos da União" (Título I):
3. A União empenha-se no desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social (...)

- O Tratado favorece o clericalismo. Para fundamentar a sua posição Étíenne Pion fundamenta-se no artigo I-52º (Título IV, Capítulo 1), relativo ao Estatuto das igrejas e das organizações não confessionais:

1. A União respeita e não interfere no estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados-Membros.
2. A União respeita igualmente o estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as organizações filosóficas e não confessionais.
3. Reconhecendo a sua identidade e o seu contributo específico, a União mantém um diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações.


A CAEDEL assumiu um papel relevante para a eliminação da referência a "valores cristãos" no Preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais da União.

Segundo Étíenne Pion este artigo I-52º abre a porta à influência religiosa no seio de uma organização política e económica.

- Finalmente, esta Constituição só muito dificilmente será modificável. O Tratado tem vigência ilimitada (Parte IV, Disposições Gerais e Finais, Artigo IV-446º) e os projectos de revisão a que possa ser sujeita obedecem a procedimentos muito complexos e morosos:

Esses projectos (de qualquer Estado-Membro, PE ou Comissão) são enviados pelo Conselho ao Conselho Europeu e notificados aos Parlamentos nacionais. Se o Conselho Europeu, após consulta ao Parlamento Europeu e à Comissão, adoptar por maioria simples uma decisão favorável à análise das alterações propostas, o Presidente do Conselho Europeu convoca uma Convenção composta por representantes dos Parlamentos nacionais, dos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-Membros, do Parlamento Europeu e da Comissão. Se se tratar de alterações institucionais no domínio monetário, será igualmente consultado o Banco Central Europeu. A Convenção analisa os projectos de revisão e adopta por consenso uma recomendação dirigida a uma Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros. O Conselho Europeu pode decidir por maioria simples, após aprovação do Parlamento Europeu, não convocar uma Convenção quando o alcance das alterações o não justifique. Neste caso, o Conselho Europeu estabelece o mandato de uma Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros. O Presidente do Conselho convocará uma Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros a fim de definir, de comum acordo, as alterações a introduzir no presente Tratado. As alterações entram em vigor após a sua ratificação por todos os Estados-Membros, em conformidade com as respectivas normas constitucionais. (Artigo IV-443º)

Ou seja, é melhor reflectir agora sobre este Tratado! O Movimento Europa e Laicidade defende o adiamento até 2009 da sua ratificação, de forma a que todos os artigos possam ser trabalhados e melhorados. Para que uma melhor Europa seja viável!

Um dia destes, cada um de nós será convidado a definir uma posição. Já pensaram no assunto?

3.3.05

Laicidade II


Dave April, Multicultural

Voltamos a Étienne Pion do Movimento Europa e Laicidade. Segundo EP, o conjunto de valores que dão corpo à laicidade é facilmente aceite pela generalidade dos cidadãos. É na aplicação concreta do ideal laico aos sistemas regulados por instituições que surgem mais desvios e incompreensões.
O princípio jurídico fundamental é o da separação entre os domínios público e privado. Daí decorre a separação entre Igrejas e Estado que, historicamente, já deu provas de ser o modelo mais produtivo, e benéfico à Paz.
O domínio privado é um domínio individual onde se exercem as crenças, a fé eventualmente, a cultura.
O domínio público engloba a organização colectiva, a administração pública e tudo o que é regido pela lei. O domínio público manifesta-se pela existência de um serviço público. Este não deve sofrer qualquer influência de natureza religiosa ou, de outra maneira, a moral religiosa não deve condicionar a forma (ex. na educação) nem que tipo de serviços são prestados (ex. interrupção voluntária de gravidez).
Vejamos o caso da Educação: segundo EP não há nenhum interesse em identificar as crianças do ponto de vista da sua religião. Para os professores, os alunos devem ser vistos simplesmente como futuros cidadãos. EP não concorda com o uso de sinais exteriores de pertença religiosa nas escolas (véus islâmicos, crucifixos, etc.) uma vez que estes podem gerar conflitos herdados dos seus pais. E considera que a recente lei da Assembleia Nacional francesa vai ao encontro do ideal laico.
Pensemos agora no Tratado da Constituição Europeia. Na vossa opinião, é um documento que respeita os princípios fundamentais da laicidade?
(logo vos direi sobre a opinião de Étíenne Pion)

28.2.05

Laicidade I


Dave April, Alternative Thinking

Étíenne Pion é o presidente da CAEDEL - Centre d'action européénne démocratique et laïque, e está neste momento a fazer um conjunto de conferências por todo o país. A temática é "Laicidade. Um bom Princípio para o século XXI". Ontem esteve em Aveiro na livraria O Navio de Espelhos e posso dizer-vos que foi um prazer ouvir este senhor.
Comecemos por definir laicidade. Segundo Étíenne Pion (EP), é um conjunto de valores e ao mesmo tempo um sistema de vida social e cívica. Quais são esses valores? O primeiro é o da liberdade absoluta da consciência, a liberdade de crer ou não num Deus, de ter uma religião ou de mudar de religião, ou de ser ateu. Quebra-se assim uma ideia preconcebida em relação à laicidade. Segundo EP um ateu é geralmente laico mas nem todos os laicos são ateus.
O segundo valor ou princípio é o de que a liberdade de consciência supõe liberdade de expressão. Seria um paradoxo poder pensar e não poder expressar o pensamento.
A independência do espírito implica a recusa do dogma. Por excelência, os laicos são a-dogmáticos. Este pressuposto aplica-se a todo o tipo de dogmas: religiosos, políticos, culturais, e até económicos.
A recusa da verdade dogmática em qualquer domínio não invalida a existência de critérios de referência, até porque estes são sempre necessários. Para os laicos esses critérios fundam-se na Razão. A Razão como instrumento da reflexão livre. O que não significa que recusem outras formas de pensamento, assentes na sensibilidade, na intuição ou na imaginação. Estas formas são adaptáveis à razão.
O que o laico defende é: rigor nas reflexões e abertura no pensamento.
Esta abertura encaminha-nos para os outros - é importante conhecer outros pontos de vista que confrontem a nossa visão do mundo.
A esta abertura chamamos normalmente tolerância. Tolerar significa admitir qualquer coisa que não se aceita, quase como uma obrigação moral. Por isso EP prefere definir a laicidade como um sistema que "respeita as diferenças". É uma ideia mais positiva que facilita o contacto com os outros. A laicidade quer gerar uma atitude favorável à vida colectiva.
Contudo, esta noção de tolerância ou de respeito pela diferença tem limites. O nazismo não é tolerável!
Mas deve combater-se as ideias e não as pessoas. E sobretudo, formar a opinião pública de forma a que os nossos sistemas democráticos não "produzam" movimentos extremistas de intolerância.
Um laico caracteriza-se pela procura da verdade, a sua verdade, através do contacto com os outros. As ideias mais importantes, salienta EP, são as que envolvem o interesse público. A laicidade reage assim contra o excesso de individualismo reinante nas nossas sociedades. Os media e a maior parte dos agentes de sociabilização promovem a elevação do nível de vida, o máximo conforto e o bem-estar individual. Acabamos por esquecer os problemas globais da sociedade. Por exemplo, a solidariedade não é tão sistemática quanto deveria ser. Para EP, o mutualismo, o associativismo, o cooperativismo contribuem para a criação de uma moral laica.
Quebrando outro dogma, EP afirma que o conteúdo da moral religiosa e da moral laica é por vezes semelhante. A moral é entendida como uma necessidade social e, para um laico, essa motivação é suficiente.
A noção de moral não pode, contudo, ser vista como um conjunto de interdições ou como uma lista de obrigações. A moral laica resulta da livre apreciação individual e colectiva do que é bom para a vida social.

Todos estes aspectos dizem respeito a um conjunto de valores abstractos e filosóficos que caracterizam o pensamento laico. Mas existe uma segunda perspectiva obrigatória a ter em conta para compreender a laicidade. É preciso compreender como os sistemas sociais, cívicos e jurídicos, regulados por instituições, aplicam o ideal laico. (Contin. num próximo post)

Agradeço ao André Esteves o convite