Só hoje me apercebi da discussão que anda por aí (a blogosfera é mesmo esse lugar vago) a propósito da lista dos "Dez livros que não mudaram a minha vida", lançada por Manuel A. Domingos. Caiu o Carmo e a Trindade quando Eduardo Pitta, Francisco José Viegas e outros amantes de alma e profissão de literatura, aceitaram o repto. É um facto que esta é uma pergunta-sem-resposta por essência, porque os livros que não mudaram a nossa vida são aqueles que esquecemos (mesmo se a memória está um pouco fora do nosso controle, seja selectiva, e possamos fazer negação). Os livros que não mudaram a nossa vida não são os que não apreciámos, não nos comoveram, não nos ensinaram nada sobre a composição ou estrutura da narrativa ou sobre a História de um lugar ou povo. A imagem que criámos sobre o autor e a sua obra, retirada desse não-sentir, basta para produzir um efeito. O efeito mínimo é o de não voltar a comprar um livro seu, ou ainda, mais subtil, o de não transmitir entusiasmo, contagiando com o nosso desleite outros potenciais leitores. É assim que um livro que supostamente "não mudou a nossa vida", muda a dos outros, pela ausência.
Os livros mudam sempre as nossas vidas mas, a menos que os tenhamos escrito, dificilmente constarão no nosso epitáfio. Nem esperamos ser "aquele que leu Joyce ou Proust e nunca mais foi o mesmo". Os livros são parceiros discretos. Estão connosco no final do dia, esvaziando-nos a mente das agruras do quotidiano, ou a meio da tarde em dias de Verão, enchendo o niente de dolce fare. Mesmo que por vezes se tornem possessivos. Mesmo que nos agridam. Eles há que nos esbofeteiam. Outros validam ou rebatem valores, reestruturando o pensamento, por um dia ou para sempre. Mas não sejamos ingénuos ou tolos. Nem fanáticos. O alcorão não é a vida, mesmo que deva ser recitado. Os outros livros também não.
O meu pai coleccionava livros. Ainda hoje é a pessoa menos vulnerável que conheço a modas, marcas e consumismo. Mas comprava livros. O meu pai estruturou o meu olhar sobre os livros. Desde miúda que os vejo como um bem patrimonial, na mesma ordem das casas ou da terra. Os livros que li, desde pequena, mudaram a minha vida, e eu nem os escolhi, escolheu-os ele no momento em que os comprou. Eu olhava a estante e pescava.
Esqueci muitos dos livros que li. Esqueci até o nome do autor. Como inclui-los numa lista? E poderia essa ser a lista dos livros que não mudaram a minha vida?
Lembro-me de ler "A Felicidade Conjugal" de Tolstói com treze ou catorze anos e de odiar... a vida conjugal do século XIX e, por isso, Tolstói. A aversão condicionou as minhas escolhas futuras: excluí sempre o autor. Trouxe depois, de casa do meu pai, vários volumes com as obras completas, na esperança de me redimir da atitude. Continuam ali à espera. Duvido que "Guerra e Paz" vá mudar a minha vida. Mas, se ler a obra, mudo a minha pequena história pessoal. Os livros fazem isso. Independentemente do que retemos da escrita, integramo-los no romance da nossa vida. Fundimos leituras com pais, irmãos, amigos, casas e lugares. Mas são muitos os livros que excluimos da nossa história. Que se dane se é um Joyce, Proust ou Tolstói. Não há sacrilégio! A nossa percepção das letras, do belo, do bom, da arte, é livre, muito livre!
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