8.1.08

Cultura hospitalar


I. Com apenas 10 dias, uma das minhas filhas adoeceu. Em poucas horas desenvolveu uma infecção subcutânea que provocou uma febre altíssima. Ela começou a rejeitar o biberão e estava cada vez mais apática. Encontrava-me em Espinho na altura e, nesse período (2000), ninguém sabia muito bem onde se dirigir nos casos de emergência médica infantil. Dirigi-me ao Hospital de Espinho - mas este deixara de ter urgências pediátricas; tentei uma Policlínica que, depois de chamar por telefone um médico de Clínica Geral, me passou uma "recomendação" e me reencaminhou para o Hospital de São Sebastião em Santa Maria da Feira. Com tantas voltas, esperas e viagens, era quase meia-noite quando cheguei a este Hospital. À entrada, na triagem, uma enfermeira espanhola informou-me que ali não havia urgência pediátrica nocturna e que, sendo de Espinho, eu deveria dirigir-me ao Hospital de Gaia. A febre da bebé aumentara e cada vez eram mais as horas passadas desde a última vez que ela tinha aceite beber o leite. Descontrolei-me. Levantei a voz, pedi para chamarem o director clínico. Aceitaram ver a bebé, "apenas porque ela tinha dez dias e o caso aparentava gravidade".

Na sala de espera aguardei quase uma hora até aparecer a pediatra que examinou a bebé. Depois, essa médica e uma colega, começaram a discutir o caso à minha frente como se eu fosse invisível. Pedi explicações, disseram-me meia dúzia de palavras pouco claras e comunicaram-me que a bebé ficaria internada. Eu estava em estado de choque, era mãe há muito pouco tempo, a vida da minha filha parecia estar ameaçada, deixara outra bebé (gémea) em casa. Não sabia reagir com tranquilidade mas, quando me disseram que o melhor seria deixar a bebé e voltar no dia seguinte, bati o pé. Conhecia os meus direitos, ficaria a acompanhar a bebé. Logo a seguir percebi por que razão a minha presença era indesejada. O Hospital, que abrira há pouco mais de um ano, tinha uma unidade de cuidados neo-natais muito peculiar: os bebés até aos 3 meses ficavam juntos numa enfermaria aparentemente muito sofisticada, toda envidraçada, com berços modernos, mas onde havia uma única banheira (a maior parte dos bebés tinham infecções de natureza variada ou eram prematuros/ a banheira era desinfectada uma vez por dia!) e uma única cadeira longa para as mães. A cadeira estava ocupada pela mãe de dois gémeos prematuros e, por isso, os acompanhantes dos outros 8 bebés dormiam sentados em cadeiras de madeira. Alguns juntavam várias cadeiras, improvisando assim uma cama. Eu ainda não recuperara da cesariana, não conseguia dormir em qualquer posição, por isso passei 6 dias e noites sentada. Como não havia armários, o aspecto geral daquela sala era o de um parque de campismo.

A minha filha tinha que tomar antibióticos via intravenosa. Atrasavam-se sempre em relação à hora da tomada. Reclamei. Disseram-me que havia falta de pessoal. Os médicos e enfermeiros daquele Hospital, público mas de gestão privada, auferiam de salários superiores aos seus colegas mas trabalhavam até à exaustão. Uma enfermeira disse-me que "se eles pudessem empregar meia pessoa para reduzir custos, não hesitariam". Nunca mais vi a médica que internou a minha filha. Nunca compreendi quem era o enfermeiro chefe daquela enfermaria. Felizmente a febre baixou e, ao fim de 6 dias, ela teve alta. Fiquei tão feliz que nem percebi que saía dali sem perceber a causa da doença.

II. A minha filha tem 3 meses e o quadro clínico é o mesmo. Infecção subcutânea, febre alta, rejeição de alimentos. Desta vez estou em Paris, cheguei há duas semanas. Ninguém tem dúvidas, devo deslocar-me ao
Hôpital Necker. O médico que a observa aconselha o internamento. Acompanha-me, com a bebé, até à enfermaria. Dá-me um cartão com o seu contacto telefónico. Ele é o responsável por aquela paciente, a última palavra será sempre a dele. Posso ligar-lhe se tiver alguma dúvida. Apresenta-me o enfermeiro-chefe que, enquanto uma equipa observa novamente a bebé, me faz uma visita guiada pelas instalações. O Hospital é muito antigo mas cada criança e respectivo acompanhante têm um quarto individual: berço e banheira de uso exclusivo da bebé, cadeira longa extensível para a mãe. As divisórias entre quartos são em pré-fabricado mas, psicologicamente, ter alguma privacidade faz uma enorme diferença. Em cada enfermaria há um gabinete que é partilhado por um psicólogo e um assistente social. Ali atendem entre as 9h e as 10h da manhã, depois dirigem-se a outra enfermaria. Logo no primeiro dia sou visitada pelos dois. O psicólogo observa a minha relação com a bebé. O assistente social pergunta-me se preciso de ajuda, já que, como estrangeira, posso ter dificuldade em compreender o processo burocrático da assistência médica (na verdade, ainda não tinha cartões da Segurança Social francesa e era preciso tratar rapidamente desse assunto). A febre da bebé é controlada mas não nos deixam sair do Hospital sem um diagnóstico claro. A bebé correu todas as especialidades: dermatologia, pedo-gastroenterologia, otorrino, nutricionista, etc.. Percebi finalmente que ela não fazia alergia à lactose, que podia beber perfeitamente um leite não dietético, que ela tinha eczema e que as "fissuras" na pele geravam a infecção porque as suas resistências imunológicas eram baixas. Devidamente medicada, nunca mais teve problemas. Com o crescimento ficou mais forte e hoje passa os Invernos sem gripes ou grandes constipações. O eczema não desapareceu mas está controlado.


A enorme diferença entre um sistema e outro é de natureza organizacional e cultural. A assunção clara da responsabilidade médica, a transparêcia da hierarquia dentro da organização e a interiorização do conceito de doente como cliente de um serviço público a que tem direito, são fundamentais. Qualquer reforma que não contemple estas premissas não será eficiente.



[Cartaz da Colecção de Francisco Madeira Luis, disponível no site da UA]

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