8.10.07

Fut-farta

Ammar Amarni

Pertencer a um clube, militar desde pequenino, transmitir o culto aos filhos, submeter-se ao carisma dos líderes, crer, ter fé nas vitórias do clube, vibrar com as jogadas no estádio ou no sofá, ser capaz de bater, insultar, gritar, pelo clube - qual catarse -, é um fenómeno estranhamente familiar. Mas os adeptos fervorosos sempre me pareceram beatas. Vão à missa ao estádio, aos domingos e quartas - e sempre que os deuses o ditarem! -, e passam o resto da semana a rezar o terço da bola. A energia e agressividade que animam claques e simples devotos não se assemelha mais às celebrações da eucaristia da Europa católica porque são poucos os padres autorizados a gravar cds e a ter emissões em directo com espectáculos de dança, exorcismo e transe. A função (social) da exaltação é preenchida pelo futebol que, graças ao apoio dos mass media, se tornou mesmo no novo ópio do povo.

O que está em causa é uma questão de intensidade. O jogo em si, pode ser belo; a sua prática, muito saudável; torcer pelo clube anima um momento, cria cumplicidades, gera emoções simples, e a vida até se quer assim, prazenteira e simples.

Eduardo Graça assina um artigo no SE, «
Futebol -"fluxo" e resistência», em que afirma que «O fluxo subjuga o jogo, que se transforma no próprio fluxo, mas não elimina as manifestações de resistência em que o jogo autêntico persiste. (...) desde as pequenas colectividades recreativas às grandes empresas, desde as escolas às ruas, o “fluxo futebolístico” encontra a sua réplica em milhares de resistentes que, apagados da ribalta mediática, são o outro lado de uma realidade humana que persiste em não se deixar apagar».

É verdade: a forma como o sistema mediático envolveu o "desporto rei" e, por outro lado, a atracção que este desporto exerce, mesmo entre os últimos das ligas que ninguém conhece. É claro que há contágio. Os "resistentes" ambicionam muitas vezes ser engolidos pelo fluxo. Mas resistem, partilhando as agruras por falta de apoios e as alegrias pelos pequenos-grandes triunfos. Notável, sobretudo num país em que as taxas de associativismo são tão baixas.

O futebol é então ópio e pão, na nossa cultura. Agrega, dá gozo, faz bem ao estado físico e mental dos seus praticantes, serve-se a todas as mesas. É o epicentro de todas as actividades desportivas mas não faz mal.

Os dirigentes dos clubes falam do futebol como o motor de desenvolvimento de outras modalidades. Mas é assim?

Eu concordo com Eduardo Graça, «Scolari e Mourinho deixarão, um dia, de ocupar o palco, mas o “fluxo futebolístico” vai persistir, e o seu outro lado, o jogo autêntico, resistirá em todo o mundo, bastando para tal que hajam jogadores e um objecto simples, mais ou menos arredondado, no qual se possam dar pontapés.»

Todos dizem que o futebol é uma paixão e que não há explicação. Mas há: é que essa paixão é a única que se (nos) alimenta. Eu não gosto de países monogâmicos. O pão da nossa cultura é fantástico mas andamos subnutridos. Os patins do hóquei não são mágicos? Os objectos do basquetebol e andebol são menos arrendondados? Bater uma pequena bola para além da rede com a ajuda de uma raquete não é emocionante?

Eduardo Graça, os maiores resistentes são os clubes não futebolísticos. Vivem em guetos. Movimentam-se como agentes de contra-cultura. Já que falou da sua "Ilha da Culatra", vou defender o "meu" Clube dos Galitos. É espantoso mas, neste momento, bate-se para manter o posto náutico na cidade dos canais. On line, está já uma petição. Leiam-na, pf.. (e sim, esta é outra das cidades que teve um novo estádio de futebol).

O problema do "fluxo" é que elimina todos os in-puts alheios ao sistema. Centrifuga jogadores, treinadores, árbitros, penalizações da Fifa, mas exclui outros desportos, política (a não ser que seja municipal, pelas piores razões) e qualquer sentido mais abrangente da cultura do nosso país. Por isso é triste e perigoso, como tudo o que é redutor.



ADENDA: No Absorto, Eduardo Graça lança chamas sobre a forma como o associativismo popular é encarado e enquadrado em Portugal.

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