4.12.04

O Senhor Tavares


"Há pressupostos literários que não têm nada a ver com a literatura"

Acabo de chegar d' O Navio de Espelhos, onde assisti à sessão de lançamento dos novos livros do Gonçalo M. Tavares. Quem consultou a Agenda Cultural da CMA (agora relançada) pôde lêr que se tratava do lançamento de "O Senhor Brecht" e de "O Senhor Juarroz". Quem já ouviu falar um bocadinho do escritor, não vai ficar surpreendido com a notícia de que, afinal, havia outros dois novos livros: uma compilação de vários livros de poesia num único volume (pelo que, na verdade, ele lançou mais do que 4 livros) e um estranho "A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil".
Entrevistei o Gonçalo há duas semanas... É capaz de ser mais exacto dizer que conversamos (o Gonçalo gosta da palavra exactidão - ... e de muitas outras). Inexactamente, sobre a sua escrita e os seus vícios de escritor. Ainda este mês, a entrevista vai ser editada no jornal que conhecem.
Mas hoje foi bom revê-lo e re-ouvi-lo. (eu posso inventar palavras). O Gonçalo Tavares, assim num tom muito rouco e simples, alertou-nos para os falsos pressupostos literários: por exemplo, o de que um bom romance deve ter mais de 100 páginas ou o de que um bom livro de poesia deve ter menos de 100 páginas. ou que não se devem lançar 5 livros num ano. ou o que diz que uma página em branco é um espaço de liberdade.
O Gonçalo violou todos estes falsos pressupostos.
Vamos centrar-nos na falsa liberdade da folha em branco.
Nunca escrevemos em folhas já escritas ou desenhadas ou traçadas . Mas a forma condiciona a escrita. (por exemplo, gosto de pontos finais seguidos de palavras em letra minúscula).(e de parêntesis entre pontos finais). (e os conteúdos variam consoante a forma). O Gonçalo decidiu criar tabelas literárias e escrever sobre elas. Assim, insert tables - número de colunas? - 2, 3, 4 (nós decidimos) - e escreve-se um texto, obrigando o leitor a saltar de coluna em coluna.
E por que é que, num texto, uma frase deve ser consequente da frase anterior? Por que precisamos de uma cadeia de frases que quase podemos numerar, primeira-segunda-terceira-... ?
O Gonçalo Tavares decidiu romper um pouco com esse nosso conforto num dos seus livros (o do Barthes). Através desse exercício de literatura reflectiu e leva-nos a reflectir sobre os condicionalismos da escrita e da leitura. Formas e normas adquiridas. Não inatas. Mas por que parece anti-natural lêr de cima para baixo, ou da direita para a esquerda?
Não li ainda o livro que mais estranhei, ouvi o seu autor. mas já em 1953, Roland Barthes esperava que "O Grau Zero da Escrita" fosse uma testemunha de uma certa dificuldade da literatura, condenada a significar-se sempre a si própria através de uma escrita que não pode ser livre. Cinquenta anos mais tarde, com "A Perna Esquerda de Paris...", Gonçalo Tavares responde a Barthes. Vou precisar de lêr o livro para perceber como, exactamente.
(e, é claro, o livro ainda tem a Perna e o Musil)
Os dois , o Senhor Tavares e Barthes, dizem-nos que não há linguagem escrita sem um rótulo. Por gozo (agrada-me pensar assim), os dois criaram livros difíceis de catalogar.
Por gozo, o Gonçalo Tavares não lança um livro por ano. Lança os que já marinaram tempo suficiente.
E, na adega literária lá de casa, sei que há muitos livros a amadurecer.

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