18.12.04


Como é que este gesto entrou dentro do meu organismo?

Ando a lêr A Perna Esquerda de Paris do Gonçalo M. Tavares. Decidi partilhar um pouco dessa leitura com vocês, até à saída da entrevista. Leiam até ao fim para ficarem com água na boca. A água faz bem.


Não há gestos femininos ou masculinos, pelo menos feitos com as mãos. Já que as mãos são partes do corpo comuns ao homem e à mulher. Quando muito existirão gestos femininos feitos com os seios, a vagina ou as ancas largas, e existirão gestos masculinos feitos com o orgão sexual masculino.(...) Eis uma teoria.
Bloom disse:
- Tenho vontade de te fazer um gesto absolutamente masculino com a parte do meu corpo que é absolutamente masculina.
Maria Bloom disse que não, estava a ler um livro de filosofia. Estava a acabar. Faltavam três páginas.
- Deixa-me ler estas três páginas. A seguir fornicamos.
Bloom concordou; ficou à espera.
O problema que se colocou aqui é que o livro que Maria estava a ler exigia idas constantes ao dicionário. Para além disso, Maria Bloom ficava, no final de cada frase, a reflectir longamente sobre o que acabara de ler.
Tinha então passado já uma hora e, das três páginas, Maria Bloom só havia lido uma.
Bloom começava a ficar irritado.
Começava, pois, a perder o desejo e a ganhar irritação (sendo que a irritação expulsa fluidos distintos).
Maria, disse Bloom, acabas de ler esse livro ou não?
(não sabem fazer livros mais simples, murmurava, irritado, Bloom).
Maria, sem tirar os olhos do dicionário, que novamente consultava, disse:
- Podes ir despindo-te.
Bloom assim fez. Despiu-se.
Quando finalmente Maria Bloom terminou de ler o seu livro de filosofia, Bloom tinha perdido o desejo e ganho uma constipação. Espirrava abundantemente.
- Esse maldito livro!
Nenhum livro causa constipações, disse Maria.
O desejo não se perde como se perde um objecto sólido. Maria Bloom não procurou o desejo perdido de Bloom pela casa toda.


Como é que este nome Bloom entrou no organismo do Gonçalo? Acordou e o bloom estava lá? Isso não é muito à Gonçalo! Penso na (Honra Perdida de) Katharina Blum do Heinrich Böll... Há muito tempo que não pensava Blum...

4 comentários:

saltapocinhas disse...

Não li este artigo, li o anterior e estou pasmada! Apesar de eu achar que há muitos presidentes de camara que não ficam nada a dever aos caciques de antigamente... Para quando os mandatos limitados??

mfc disse...

Conheço casais Blum, a começar por um que vive cá em casa!
Porque se adia sempre uma das molas reais da vida?!

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Pois é! (para os dois)- adiam-se coisas importantes...
Já sei pq me lembrei da KB: tal como a Katharina, o empregado da CMP perdeu o controlo da sua vida de um momento para outro: o que parecia ser um acto/comportamento comum foi transformado num crime! (é a única semelhança)

Anónimo disse...

Esta história é absolutamente exemplar...