19.12.04

À uma hora da manhã


ama o lugar misterioso II

Enfim! só! já nada se ouve senão o rolar de algumas carruagens retardadas e estafadas. Durante uma hora pertence-nos o silêncio, senão o descanso. Enfim! a tirania da face humana desapareceu, e não sofrerei senão por mim próprio.
Enfim! é-me permitido um banho de trevas! Antes de mais nada, duas voltas à fechadura. Parece-me que este girar de chave vai aumentar a minha solidão e reforçar as barricadas que me separam actualmente do mundo.
Vida horrenda! Horrenda cidade! Recapitulemos o dia: contacto com bastantes homens de letras, um dos quais me perguntou se era possível chegar à Rússia por via terrestre (tomava sem dúvida a Rússia por uma ilha); discussão generosa com o director duma revista, que, a cada objecção, respondia: "- Isto aqui é um partido de gente honesta", o que implica que todos os outros jornais são redigidos por malandrões; (...)
Descontente com todos e descontente comigo, bem quisera resgatar-me e insuflar-me um pouco de orgulho no silêncio e na solidão da noite. (...) e vós, Senhor meu Deus! concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que me provem a mim mesmo que não sou o último dos homens, que não sou inferior àqueles que desprezo.

in Baudelaire, Charles, O Spleen de Paris - Pequenos Poemas em Prosa, Ed. Relógio d'Água, 1991 (pp 30-31)

1 comentário:

mfc disse...

Alguns momentos de solidão podem retemperar-nos a energia, mas presisamos logo de establecer uma relação para a dispendermos.