4.9.06

Banville, O mar e Bonnard

Pierre Bonnard
Marthe au gant de crin, 1920

Certo dia, em 1893, Pierre Bonnard avistou uma rapariga a descer de um eléctrico de Paris e, atraído pela sua beleza frágil e pálida, seguiu-a até ao local onde ela trabalhava, uma agência de pompes funèbres, onde passava os dias a coser pérolas em coroas mortuárias. Foi assim que, desde o início, a morte entrelaçou a sua fita negra na vida de ambos. Ele não tardou a conhecê-la - suponho que que essas coisas eram feitas com naturalidade e um certo aprumo na Belle Époque - e pouco tempo depois ela abandonou o emprego e tudo o resto na sua vida e foi viver com ele. Disse-lhe que se chamava Marthe de Méligny e que tinha dezasseis anos. Na realidade, embora só o viesse a descobrir volvidos mais de trinta anos, quando decidiu finalmente casar com ela, o seu verdadeiro nome era Maria Boursin e, quando se conheceram, não tinha dezasseis anos, mas, como Bonnard, vinte e poucos. Permaneceram juntos atravessando várias vicissitudes, cada vez mais frequentes, até à morte dela cerca de cinquenta anos depois. (...) Era reservada, ciumenta, ferozmente possessiva, sofria de um complexo de perseguição, e era uma hipocondríaca ferrenha e obstinada. Em 1927, Bonnard comprou uma casa, Le Bosquet, numa cidadezinha incaracterística, Le Cannet, na Côte d'Azur, onde viveu com Marthe, remetido a um isolamento intermitentemente atormentado, até à morte dela quinze anos depois. Em Le Bosquet, a mulher criou o hábito de passar intermináveis horas no banho, e foi no banho que Bonnard a pintou, repetidamente, dando continuidade à série mesmo depois da morte dela. Os Baignoires constituem o culminar triunfante da obra de uma vida inteira. No Nu no banho, com cão, começado em 1941, um ano antes da morte de Marthe, e apenas concluído em 1946, ela surge em tons de rosa, malva e ouro, uma deusa num mundo flutuante, emaciada, perene, simultaneamente morta e viva, e ao lado, sobre os ladrilhos, o seu pequeno cão castanho, o seu animal de estimação, suponho que um basset, vigilante, enroscado em cima duma esteira ou do que pode ser um rectângulo de luz desmaiada projectada através de uma janela invisível. O espaço estreito que lhe serve de refúgio vibra à sua volta, nas suas cores latejantes. Os pés, o esquerdo estendido na extremidade da perna imponderavelmente comprida, parecem ter deformado a banheira e provocado um bojo na extremidade esquerda e, por baixo da banheira, do mesmo lado, dentro do campo de forças, também o chão surge desalinhado e como que prestes a esgueirar-se pelo canto, não como um chão mas como uma poça de água escorregadia. Aqui tudo se move, tudo se move serenamente, num silêncio aquoso. Ouve-se um gotejar, um leve murmurejar, um suspiro trémulo. Uma mancha vermelha ferruginosa na água ao lado do ombro direito da banhista talvez seja de ferrujem ou, quem sabe, de sangue seco. (..)
Também ela, a minha Anna, quando adoeceu, adquiriu o hábito de tomar longos banhos à tarde. Dizia que a acalmavam.

Pierre Bonnard
Nu no banho, com cão, 1941-46

Transcrição: in Banville, Jonh, O Mar, ed. ASA, Junho 2006, pp 97-98

Max Morden, o protagonista deste romance em que se entrelaçam muitas histórias, é um especialista de Bonnard. A escrita do "grande livro sobre Bonnard" vai correr mal. Banville termina O Mar e Max escreveu apenas "metade de um pretenso primeiro capítulo e de um bloco de notas cheio de anotações dispersas e incipientes" (pp 163-164). Ultrapassar a perda recente de Anna e confrontar um trauma de infância vão consumir Max. vai consumir-nos. de dor e muito prazer.

e voltou a acontecer: li um mestre.

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