14.11.06

O LIVRO DOS BONS PRINCÍCIOS

II


Durante mais de trinta anos, os burgueses de S. Bartolomeu de Loure invejaram a Dona Agustina Dessa a sua criada Celinha. Por pouco mais de 2 contos de reis por ano, o suficiente para dar um bom presente à afilhada pela Páscoa e para viver sem grandes ilusões, tratava da lida da casa, lavava e engomava os cortinados no início de cada estação, e Deus sabe como aquele palacete era mais janelas que paredes, polia pratas todos os quinze dias, lavava os serviços de cristal com vinagre sempre que eram utilizados, cuidava da criação, sabia matar galinhas e esfolar coelhos, cozinhava que era uma benção, e manteve-se fiel à patroa - embora ela fosse pessoa de trato difícil e sorriso tíbio.
Muito nova casara com um rapaz da aldeia vizinha de Seixo. Quando o conheceu estava num altar, e ninguém foge ao destino, dizia depois. Foi num Domingo ou Dia Santo. Tinha quinze anos e cantava no coro da missa das oito. Ainda o padre não saíra da sacristia e já tinha dado por ele. Era novo por ali e tinha uma impertinência agravada pela altura. Com a cabeça acima dos outros, só quem fosse cego é que não via que sorria para ela o tempo todo. Desde o primeiro dia, Santo Deus! A vê-la rezar o Pai-Nosso ou o Acto de Contrição, a ouvi-la cantar a Avé-Maria, mas sobretudo nos momentos em que ela respondia ámen, soltava um olhar tão prazenteiro, que mesmo a fraca má língua começava a afiar. A Celinha nem caíu de amores à primeira desobediência do olhar, a bem da verdade até desdenhou. De tão magro, ele parecia que tinha um buraco no peito. Nem se lhe viam os botões da camisa! Mas acabou por se prender àquela presença e, quando deu por si, já mal dormia nas noites que antecediam a missa.
Não fosse ter-se casado com esse homem, que acabou por escavar-lhe também um buraco no peito, e nunca a Dona Agustina Dessa teria encontrado a criada Celinha que todos cobiçavam.


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Imagine o leitor-autor que pretende escrever um livro e não sabe por onde, nem como, começar. O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS proporciona-lhe uma vasta gama de princípios para conto, novela ou romance que o leitor-autor poderá seleccionar livremente. Depois terá apenas que escrever o resto demorando o tempo que entender. Inúmeras obras-primas foram já produzidas utilizando esta técnica, que é, não temamos a palavra, revolucionária.

Foi esta a ideia que O Afinador de Sinos decidiu lançar, convidando-me a mim e à Inominável para entrarmos no projecto. Vocês, caros amigos, respondam ao desafio, e peguem neste Princípio (II), no anterior (I) e naqueles que se vão seguir, e enviem-nos os vossos textos ou contos___ ou partam para a escrita do livro das vossas vidas.


Amanhã, quarta-feira, sai o III Princípio no Ponto.de.Saturação.

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