23.3.07

Geração em linha



Ontem foi dia de tertúlia. Desde há uns meses, reunimo-nos semanalmente e conversamos. Sou uma das mais novas do grupo e a maior parte do tempo escuto. Os meus amigos mais velhos têm imenso para contar. O pretexto para os encontros começou por ser o gosto comum pela leitura e pela cidade, mas falamos de tudo - a ida ao futebol, a última viagem, os filhos e os netos, e depois, naturalmente, lá vem uma história ou uma reflexão que me deixa a pensar. Outro dia o F., que já passou os setenta, disse que tinha estado a pensar nas últimas décadas da nossa História e que não tinha dúvidas de que a mudança maior tinha a ver com o comportamento sexual. Lembrava-se da II Guerra Mundial, vivera mais anos no tempo da ditadura do que no pós 25 de Abril, lembrava-se do aparecimento da televisão e da chegada à lua mas, o que mais o marcara pessoalmente, fora a revolução de mentalidades a partir dos anos 60, e depois de 74 em Portugal. Ainda antes do Maio de 68, viu um casal de namorados a beijar-se no metro de Paris e não esqueceu o seu espanto, quase inquietação. Seria possível?

O L., que tem sessenta e poucos anos, contou logo a história do poeta António Botto, que terá sido o primeiro e único funcionário público que viu publicada em Diário da República a causa do seu despedimento por homossexualidade. Parece que assediou um colega no local de trabalho. Que escândalo! Até porque não se ousava dizer, quanto mais escrever, a palavra homossexualidade.

E lá foram enumerando o que até há poucos anos não era concebível sequer. Para as mulheres, claro, as inibições e proibições eram maiores. Sair do país, ou mesmo comprar um carro, sem autorização do marido, não era possível. Não havia a pílula (foi produzida pela primeira vez em 1952 - e devemos agradecer a invenção a um mexicano!), e depois foi a expectativa da pílula ou não pílula e contracepção. Reinava o princípio do "crescei e multiplicai-vos"! A C. aludiu ao Discurso às Parteiras, de PIO XII (em 1951), em que o Papa condena aqueles que afirmam que a sexualidade tem uma finalidade própria independentemente do seu objectivo primário, a procriação, à qual se devem subordinar todos os outros fins. David Lodge, mesmo se centrado na sua Inglaterra, narra tão bem os problemas dos casais dessa época e a sua decepção com a Humanae Vitae de Paulo VI!

Em 1940, a celebração da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, impediu os portugueses casados catolicamente de recorrer ao divórcio - apesar da Lei de 1910 que admitia pela primeira vez o divórcio e que dava ao marido e à mulher o mesmo tratamento, tanto em relação aos motivos de divórcio como aos direitos sobre os filhos.
A maioria das mulheres também não podia votar. A lei de 1931 só reconhecia o direito de voto às mulheres diplomadas com cursos superiores ou secundários - enquanto que aos homens continuava a exigir-se apenas que soubessem ler e escrever. Só em 1968 é proclamada a igualdade de direitos políticos do homem e da mulher, independentemente do seu estado civil. Em relação às eleições locais, permanecem, contudo, as desigualdades, sendo apenas eleitores das Juntas de Freguesia os chefes de família (segundo o novo Código Civil de 1967, a família é chefiada pelo marido, a quem compete decidir em relação à vida conjugal comum e aos filhos).

Imaginem que foi preciso chegar a 1976 para ser abolido o direito do marido abrir a correspondência da mulher!

O F. concluia que era espantoso como em algumas décadas tudo se alterara. Mas todos concordámos que são ainda muitos os resquícios desta nossa História recente.



P.S.: "Geração em linha" é também o título de uma exposição do escultor Pedro Figueiredo, que vi há poucos meses no TA. A imagem que vemos aqui é de uma peça intitulada "Sentido único".

Sem comentários: