12.3.07

As últimas leituras

I.
Ponte sobre o rio Luachimo na Lunda
(ou a terra que me viu nascer)


Tremia, eu. Frio da água do naufrágio, sombra negra do peixe que voou o fundo do mar para cima da minha canoa afundada; o sujo ruído do motor dos fuzileiros; ainda o cheiro da pólvora das rajadas em meio ao vento que lhes levava para longe, agora? Era mais é meu maior terror: a ilha dos espíritos dos mafulos e dos homens da Jinga revivia o meio do meu medo.

in José Luandino Vieira
De Rios Velhos e Guerrilheiros - I. O Livro dos Rios
Ed. Caminho, Novembro 2006, pp 27


O escritor que nos revelou as múltiplas cidades de Luanda, mergulha agora pelos rios da sua memória, desaguando sonhos e pesadelos que nos deixam ora com medo e com frio, ora com saudade. O rio e as suas margens. numa escrita que projecta a história recente de Angola. Não fora o quimbundo, que deixou claro como sou estrangeira da terra onde nasci, e talvez tivesse navegado melhor este livro.


II.
Denny Moers
Directing Passage


Mas agora tenho a certeza de que o contacto se estabeleceu. Ela já não choraminga, nem se balança para diante e para trás sobre os joelhos, rosnando levemente no fundo da sua garganta. Ela observa. E começo a acreditar que despertei algo no seu pensamento, algo que começou a manifestar-se neste quarto. Sinto isso. Está lá. Está lá. Um processo de desprendimento de si própria começou a esboçar-se.
Hoje, quando lhe dava banho, passou a ponta dos dedos, numa espécie de tímida curiosidade, pelas costas da minha mão, sentindo a textura da pele - e depois recuou rapidamente, como se eu a pudesse censurar e punir. O efeito foi estranho e um pouco assustador. Como se tivesse surgido um animal do escuro, tocando-me com a sua língua. Será que ela está a começar finalmente a ter alguma noção do seu próprio corpo?

in David Malouf
Uma Vida Imaginária
Ed. Assírio & Alvim, Agosto 2006, pp 72


Ainda a relação do homem com a Natureza. Desta vez, a atravessar a escrita de um australiano. mesmo se o romance se situa no continente europeu. Malouf imaginou o diário do poeta romano Ovídio nos últimos anos da sua vida. Como nos diz no posfácio, o que queria escrever não era um romance histórico ou uma biografia, mas uma ficção com raízes em possíveis eventos. Ovídio foi desterrado, por deliberação imperial, para o território dos Citas, junto do Mar Negro. Nos limites do império ele aprenderá a viver com bárbaros, mas sobretudo, encontrará a Criança, uma criança-lobo que ele procurará integrar na comunidade humana. Para fundamentar as suas descrições da relação de Ovídio com a Criança, Malouf foi à fonte mais segura: os estudos de J.M.G. Itard sobre Victor, o rapaz selvagem de Aveyron. Todo o romance é uma reflexão sobre a relação e as fronteiras entre "lei" e barbárie, poder político e identidade pessoal, inato e adquirido, ser e natureza, poesia e natureza, o homem e Deus (será a entidade divina o Outro que prevemos em nós?), sobre a função da fala (no isolamento em que se encontra, Ovídio pergunta-se se o exilado será alguém a quem foi "roubada" a língua), etc. etc..

É um livro belíssimo, de grande lirismo, e de leitura fácil. Foi escrito em 1978 e, desde então, é considerado por muitos um verdadeiro livro de culto, um "livro de sabedoria". Leiam Uma Vida Imaginária e perceberão porquê!


III.

De Adolfo Bioy Casares
Diário da Guerra aos Porcos
Ed. Cavalo de Ferro, Setembro 2006

... sobre o qual falarei num próximo post.

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