4.2.05

Venus as a boy


Daniel Sarphatie

[Um dia destes, entramos numa livraria e pegamos Numa Avenida de Merda do Ivar Corceiro. Ao lado, talvez esteja uma colectânea de contos. Desfolhamos e encontramos Venus as a boy]

Ela fixou um dos produtos que a senhora da caixa passara pelo leitor de códigos de barras. Era comestível e tinha um prazo de validade, e nesse instante assimilou o que o seu companheiro lhe dissera na noite anterior, logo depois de uma hora de sexo: que não queria envelhecer, nem ver-se ao espelho derrotado pelas rugas. Tal como Dorian, insistira antes de adormecer. Pôs as compras nos sacos.
A campainha tocou insistentemente.
Como duas ilhas de origem vulcânica, os seus joelhos emergiam da água elevando-se em direcções simetricamente opostas. As suaves saliências peitorais e a ponta do falo, adormecido no brando ritmo das ondas, completavam um arquipélago ao abandono. Os seus braços escondiam-se atrás das costas, e dada a quietude do corpo, apenas as gotas que pingavam espaçadamente da torneira pareciam provocar movimento na água.
A campainha tocou insistentemente. Por causa dos pesados sacos de compras que trazia, ela já tinha marcas na pele, à volta dos metacarpos, por isso pousou-os no chão para procurar a chave. Os sacos estenderam-se como a clara de um ovo, aumentado a distância entre as suas asas. “Foda-se” – roeu quando se apercebeu da dificuldade acrescida que teria em apanhá-los de novo. Depois abriu a porta, com a chave que demorou a encontrar nos bolsos, e entrou.
A porta ficou entreaberta.
A televisão estava ligada e sozinha. Ela desligou-a empurrando-a levemente para trás, tal a força do impulso com que o fez. Depois dirigiu o olhar para a lâmina de luz que sorrateira se escapava pela frincha da porta da casa de banho. “Quando te decidires a sair da casa de banho vai lá fora buscar as compras” – disse, e continuou, arrependendo-se do seu tom agressivo: - “Por favor...”
Tal como a luz, também o silêncio saiu sorrateiramente pela porta, e embrulhou-a num lençol de frio, talvez branco, pensou esperando a morte. Nele foi envolvida até se aproximar da banheira e afastar o cortinado. Percorreu o cadáver com os olhos, fixando momentaneamente as ilhas com a íris hesitante. Depois beijou-o e foi buscar as compras.

[Espreite outros talentos do Ivar Corceiro, aqui]

3 comentários:

Didas disse...

Pois é. Lá na padaria também estamos todas ansiosas à espera da Avenida de Merda. Não há meio!

Ivar C disse...

Divas, obrigado pela ajuda.
O “Numa Avenida de Merda”, só sai lá para Abril, embora no princípio estivesse prevista a sua edição para Novembro passado, e a distribuição estará condicionada a umas dez livrarias no país. Em Aveiro até acho que a livraria “O Navio de Espelhos” é a única.

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Solteirão, obrigada pela visita. Volta sempre!

Bagaço Amarelo, não tem de quê! Junto-me à Didas e fico a aguardar o livro!