4.2.05

Venus as a boy, paralelo


Daniel Sarphatie


[Depois de ler o texto do Ivar Corceiro, reagi. Os personagens são os que ele criou. Esta é uma visão paralela do seu Venus as a boy]

Acho que ainda respirava quando comecei a ver-me. a imagem não era nítida. esvaziava os pulmões de oxigénio. estava feio. foi quando comecei a chorar que morri.
Ela saiu cedo. quase me comoveram os movimentos submissos à ordem. chegar à mesma hora ao mesmo escritório, vestir discretamente, cumprir todos os dias. suar pouco. até na cama ela se mantém seca.
Ontem fizemos amor. não me parece que ela tenha percebido qualquer diferença mas nunca tive tanto prazer. sabia que era a última vez. ainda sinto o falo endurecer. morrer completamente não é muito diferente de perder uma perna. levamos algum tempo até deixar de sentir as partes do corpo. ainda tenho comichões e tesão.
Tenho rugas, já não disfarço as olheiras. Quando me vi na banheira, percebi que me tinha sido atribuido o primeiro castigo divino. Olhar para mim morto ao espelho. a água foi ficando menos turva.
Mas depois não foi tão mau assim. Por exemplo, pude continuar a ver televisão.
Não me ocorreu ir à janela. Mas hei-de experimentar lançar-me. Como se mata um morto?
Ela deve estar a chegar.
Mal a vi, soube de imediato que íamos acabar juntos. ela era bonita e esguia. envolvia-me e quando tentava retê-la, fugia-me dos braços. chamava-lhe polvo. sabia que precisava de um polvo. para poder fugir na minha hora sem grandes receios ou culpa.
É melhor não voltar à casa de banho. apesar de ser fácil qualquer movimento. pareço massa de plasticina, amolgo-me, alongo-me, deslizo suavemente sobre a matéria. puxo a pele que já só é uma espécie de película elástica.
Olho para os meus braços. eram bem modelados. há alguns minutos atrás seria angustiante vê-los deformarem-se. se ainda sentisse arrepios. mas não. agora, nem ela, nem ninguém, me pode ver. vou abandonar-me à diluição___________________________________.
É ela. sei que toca a campainha, mas mortos, percebemos logo que não nos podemos dar a ver. como as tartarugas bébés que nunca conhecem a progenitora correm para o mar quando estala o ovo. Atravesso a matéria. Ela resmunga. amo a neurose. mas não resisto aos novos poderes que pressinto. quando ela pousa os sacos, sopro. matéria espalhada.
Oh não, fiquei sem tv! não entres aí!_______________és doce! ____________________pois, a tua vida continua.

8 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Já lá vou, Paola. Bjs

Menina Marota disse...

Ler este texto e, em especial a esta hora matinal, tirou-me um pouco a alegria, porque, sabes há coincidências de tal forma gémeas, que este texto comoveu-me e abalou-me, na medida em que, "li" os sentimentos de alguém muito perto de mim e, que pensará assim... só que, ele é real, não é um texto... belo, mas um texto...
Desculpa, não consigo dizer mais nada... Fica bem...
Abraço

http://eternamentemenina.blogs.sapo.pt/

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Menina Marota,
é verdade que estes 2 textos não são uma ode à alegria. ele já só é um espectro. mas lamento que tenhas ficado triste. isto era para ser um mero exercício de escrita.
fica com um abraço grande, tb virtual, mas vindo de alguém que existe.

ana.in.the.moon disse...

Exercício de escrita, é favor... Daqui fui até ao site do Ivar Corceiro, de lá até ao Bagaço Amarelo, que não conhecia, percorri alguns posts, fiz o download do livro que ele (generosamente) disponibiliza e achei bem parar ao fim da leitura de duas histórias. Voltei aqui para ler, só então, este texto. Fiquei envolvida numa nuvem de fantasia. Alguém chama a isto tempo perdido? A mim ocorre-me mais depressa "qualidade de vida"... Obrigada pelos exercícios.

mfc disse...

O saber-se que se vai... deve ser terrível!
Saber-se que se vai de forma datada... porque saber, sabêmo-lo todos!

Viajante disse...

Simples e belo.
Uma mistura sempre feliz.
Foi bom estar aqui, hoje. Vou contente.

Beijos.

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Chegada do fds foi bom encontrar algum feed-back.
A todos, obrigada pelas palavras. Ao Ivar, obrigada pelo talento e pela vontade que me deu de continuar a história.
Bjs

Ivar C disse...

Tenho andado tão ocupado que só hoje é que li este texto. Ainda bem que o fiz…
Obrigado.
Ivar