21.4.12

Um original "Tabu "

Miguel Gomes desdobra o filme em dois níveis antagónicos: uma primeira parte de pessoas comuns, uma idosa temperamental, Aurora, a sua empregada cabo-verdiana, e Pilar, uma vizinha dedicada a causas sociais, que partilham o andar num prédio em Lisboa; uma segunda parte, de cinema "fantástico" e grandes emoções: amor, aventura, traição, exotismo, arrependimento, morte. Nesse sentido, Miguel Gomes voltou a fazer um filme em que o assunto também é o próprio cinema.

"Tabu" é todo a preto e branco. Mas na segunda parte, como no cinema mudo, não se ouve a voz das personagens, apesar de as vermos falar. A narrativa é sustentada na voz off, mas escuta-se o som ambiente. Desta forma não há qualquer reconstituição técnica da sétima arte, pois em nenhuma fase intermédia a tecnologia nos deu o som ambiente e de voz off, retirando os diálogos.
Ao contrário do que acontece com "O Artista", o cinema mudo é evocado mas não imitado. E por momentos, a narração (feita por uma das personagens) aproxima-nos do estilo documental. Serve também para manter uma perspetiva exterior. Aquela é uma história real que nos estão a contar, mas a nossa realidade é outra, a nossa realidade é a da primeira parte.

Tal é evidente quando, numa espécie de prólogo, vemos uma curta-metragem, passada na selva africana, a que Pilar está a assistir. Nesse prólogo, temos o "intrépido aventureiro", que poderia ser Serpa Pinto, não fosse a história barroca e romântica em que é envolvido. Vemos o filme inteiro e só depois nos apercebemos de que aquilo é um filme dentro do filme.
Esse preâmbulo promete uma África de aventuras para a segunda parte. É a pequena ficção que preenche a vida de uma personagem carente de ficções, como nós próprios. Evidencia-se a presença africana, colonialista, em Lisboa, através dos mais diversos pormenores, desde a arquitectura a traços do décor. Ou até mesmo a personagem de Santa, a criada negra de Aurora, em que no trato se notam resquícios do colonialismo. Santa carrega o peso do desenraizamento, da iliteracia (está a aprender as primeiras linhas em Daniel Defoe, "Robison Crusoe", o homem-metáfora para a solidão). A própria transição para a segunda parte é feita num espaço de decoração naif, um centro comercial no Cacém em que se reproduz uma selva.

Em Lisboa contam-se os dias, em África contam-se os meses. Essa leitura diferenciada do tempo é dada através dos separadores, marca que acompanha as três longas de Miguel Gomes. Este é também um filme sobre a dicotomia do tempo. O presente saudosista, o passado que queremos viver. Só que no passado da segunda parte há uma inconsciência do próprio tempo. Como se os actos não tivessem consequências, numa leviandade infantil. Se na primeira parte parte Aurora exibe traços de senilidade, em África a insanidade é aceite, como é claro nos anfitriões da festa da piscina (o pai brinca à roleta russa enquanto o filho joga boxe francês com fantasmas).
A segunda parte torna "Tabu", na sua essência, uma grande história de amor. Uma história de amor impossível, mas daquelas que nos envolvem e nos apaixonam. E o aparente distanciamento criado pela narração, pelo ambiente africano que nos é distante ou pelo comportamento ético das próprias personagens (colonialista no sentido mais perverso) não lhe retira emoção.

O trabalho dos actores é fantástico. Carloto Cotta vale mais do que Dujardin e Ana Moreira está absolutamente deslumbrante. E depois há o crocodilo. O crocodilo bebé, brinquedo de carne e osso e dentes afiados, que vai crescendo, como uma fera insubmissa, que foge do espaço. Mas aquele animal, resquício do tempo em que os homens eram macacos e os macacos eram homens, representa a memória. A memória das histórias que ficaram por contar.

"Tabu", de Miguel Gomes, argumento de Miguel Gomes e Mariana Ricardo, com Teresa Madruga, Laura Soveral, Ana Moreira, Henrique Espírito Santo, Carloto Cota, Isabel Cardoso, Ivo Müller e Manuel Mesquita, 118 min.



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