29.4.08

A Estrada



A Estrada, de Cormac McCarthy
Ed. Relógio D'Água, Março 2007
[original: The Road, 2006
]

«Ele pensou que, algures no mar alto, ainda poderia haver navios tripulados por cadáveres, à deriva, com as velas flácidas, em farrapos. Ou vida nas profundezas. Enormes lulas a moverem-se sobre o fundo do mar nas trevas frias. A deslizarem na horizontal como combóios, com olhos do tamanho de pratos. E talvez, do outro lado daquelas vagas ocultas pelo nevoeiro, um outro homem caminhasse efectivamente com outra criança sobre o areal cinzento e sem vida. Com um mero oceano a separá-los, talvez eles dormissem numa outra praia, entre as cinzas amargas do mundo, ou talvez se quedassem de pé, vestidos de andrajos, perdidos sob o mesmo sol indiferentepp. 144-145

A Relógio D' Água manteve as cores da capa original e o negro profundo é a cor das cinzas, do pó, da terra, do areal, do céu, do mar, da estrada percorrida por pai e filho neste romance de Cormac McCarthy. A Estrada é um livro muito distinto de Este país não é para velhos, que li há pouco tempo. É uma obra que nos faz mergulhar num universo futurista e tem uma estrutura singular, como se não houvesse princípio nem fim. Quando abrimos o livro já tudo aconteceu, quando o fechamos sabemos que nada vai mudar. Mas as personagens e nós, leitores, atravessamos a estrada e sentimos frio, fome, choramos, esgotamos forças.

A Estrada conta-nos a história de uma viagem nesse futuro onde não há esperança. Um homem e seu filho, «cada qual o mundo inteiro do outro», vão sobrevivendo através do amor. Um amor desmedido. Nesta obra, temos uma visão do pior e do melhor de que somos capazes: a destruição e devastação total, a persistência desesperada e o afecto.

Em teoria, estamos nos Estados Unidos da América, mas poderia ser qualquer outro lugar. Por razões que Cormac não explica, já não há vida no planeta. A paisagem é apocalíptica. Todas as espécies desapareceram, à excepção de alguns humanos que andam à deriva. Restam cadáveres, árvores caídas, ossadas de aves, «no limiar da maré alta, um emaranhado de ervas e espinhas de peixe aos milhões, formando um cordão que se estendia pela praia fora até onde a vista alcançava, como uma curva de nível da morte. Um enorme sepulcro de sal. Absurdo. Absurdopp. 147

No pai subsiste a memória do que foi o planeta, no filho subsiste um coração puro, não contaminado e uma confiança absoluta no pai. Responde-lhe sempre «Está bem», mesmo quando o confronto com a violência ou a fome vão debilitando a esperança.
Os dois vão caminhando obstinadamente na direcção do Sul, sem que saibamos porquê. Na verdade, nem eles sabem o que vão encontrar.

O romance é negro, muito negro. E no entanto, há uma luz lateral, discreta, divinal, que nos faz reflectir sobre a essência do que salva a humanidade:

«Lembras-te daquele menino, papá?
Sim. Lembro-me dele.
Achas que ele está bem, o tal menino?
Sim, sim. Acho que ele está bem.
Achas que ele se perdeu?
Não. Não me parece que ele se tenha perdido.
Tenho medo de que ele se tenha perdido.
Acho que está tudo bem com ele.
Mas quem é que o vai encontrar, se ele estiver perdido? Quem é que vai encontrar o menino?
A bondade vai encontrar o menino. Sempre assim foi. E há-de voltar a ser
pp. 183-184

É um dos melhores romances que li nos últimos tempos. Vencedor do Pullitzer Prize for Fiction de 2007, "A Estrada", do escritor norte-americano Cormac McCarthy, vai agora ser adaptado para cinema. Não, desta vez, não serão os irmãos Coen, mas o realizador australiano John Hillcoat. No elenco, teremos Viggo Mortensen e Charlize Theron. Esse filme, eu vou ver.

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