23.4.08

Cinemas paraíso



Acho que todos tivemos/temos os nossos cinemas-paraíso. O primeiro da minha vida morava em Espinho e chamava-se Cine-Teatro São Pedro. Foi lá que vi Esplendor na Relva, me apaixonei pelo Warren Beatty e senti ciúmes da minha amiga Natália que, pelo nome e pela parecença com Natalie Wood, teria sempre mais chances do que eu na eventualidade - tão real! - de um encontro. Foi também lá que dei um grito terrível, assustada com um primeiro plano repentino de uma serpente em Excalibur. Fiquei com a impressão de que toda a sala se ergueu para ver quem era a histérica. Aos Domingos à tarde, tinha eu 12, 13 anos, eram exibidos filmes indianos, que eu via, chorosa e encantada. Mas também me lembro de cinema brasileiro, nomeadamente Eu te amo, de Arnaldo Jabor, o primeiro filme erótico a que assisti. Como todos se conheciam, e as notícias corriam rápido em Espinho, não me levantei no intervalo para passar o mais despercebida possível. A minha mãe ia saber da minha presença na sala, pela certa!
O Cine-Teatro São Pedro representava para nós o mesmo que o Monumental para os lisboetas, e teve a mesma sorte. Foi destruído, não servindo de nada abaixo-assinados para defesa daquele património. Em sua substituição, construiram um centro comercial medíocre e algumas salas de cinema numa cave (como contrapartida). A perda foi imensa.

O segundo cinema-paraíso da minha vida foi o Quarteto, em Lisboa. A paixão começou nos anos 80, mais precisamente a partir de 1984. Depois, no início dos anos 90 tornei-me vizinha do Quarteto. Passei a ver todas as sessões, independentemente do tipo de filme. Na altura, a curiosidade era imensa e tudo me apetecia, além de que não me faltava tempo disponível. Às sextas à noite, havia dose dupla em cada sala, e lembro-me de correr de sala em sala, com a anuência dos empregados, para compor o meu par preferido. Vi várias centenas de filmes durante anos. Era o único cinema onde se via Godard (andava na universidade ao tempo da polémica que gerou filas para ver
Je vous salue, Marie), Fassbinder (lembro-me perfeitamente da estreia de Querelle), Scorsese (sim, vi lá Touro Enraivecido ou o alucinante After Hours), Coppola (do tempo de Rumble Fish), André Téchiné (que realizou um dos filmes da minha vida, mais um, Ma Saison Preférée), David Lynch (o meu primeiro filme foi Dune e adorei) e tantos outros realizadores. Lembro-me também de fiascos, de filmes de série B, alguns filmes de terror (como se chamava aquele do assassino na sala de cinema que exibia um filme de horror com um assassino que também mata espectadores que estão a ver um filme fantástico de dinossauros que comem pessoas? :)), filmes de que esqueci o nome mas cujo enredo guardo na memória, filmes e filmes, e gente, desconhecidos que começavam o namoro ali ao lado, que falavam alto ou choravam sozinhos, colados a mim, ou cinéfilos conhecidos, como o Paulo Portas (o promissor director do Independente na altura, que ia às sessões da tarde, sozinho) ou o Lauro António (que recordo, com o filho pela mão).

Aquela rua do Quarteto era tão calma e foi também ali a única vez que me assaltaram nos quase vinte anos vividos em Lisboa. Eu e uma amiga a ver os cartazes cá fora, dois sujeitos que nos perguntam as horas, nós sorridentes e eles puxam-nos os colares, quase me arrancando o pescoço, que a moda era usar vários fios de prata cheios de berloques uns por cima dos outros.
Atónitas, deixamo-los fugir, a correr. E depois fomos ao cinema!

O Quarteto, fundado em 1975,
fechou em Novembro, poucos meses antes do seu fundador, Pedro Bandeira Freire, também desaparecer. Talvez a CML venha a classificar o espaço como de interesse cultural da cidade. Mas como se classifica um homem que gera vivências, emoções, gostos, servindo cinema português e do mundo, clássico ou alternativo, a milhares de pessoas durante décadas? Como se agradece?

Eu mando-lhe beijos.


2 comentários:

Fernando Vasconcelos disse...

Vi no Quarteto entre outros precisamente Excalibur ... e um filme de um concerto do Neil Young ...

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Pois é, Fernando, para quem vive/viveu em Lisboa, é difícil não ter memórias (boas) ligadas ao Quarteto.
Abraço