27.9.07

Internet #1

A Internet não é uma simples tecnologia de comunicação. É evidente que está no epicentro de muitas áreas da actividade social, económica e política.

À medida que o fenómeno amadurece, o perfil demográfico dos utilizadores - nos EUA e Europa, aproxima-se mais da população como um todo. O acesso à banda larga favoreceu esse crescimento. Mas em África, apenas 0.6 por cento da população (uma grande parte na África do Sul) tinha acesso à Internet no remoto (eu sei) ano 2000. A info-exclusão nas zonas pobres do planeta é um problema real.

Mesmo à escala nacional, percebemos facilmente que a Internet é um instrumento de exclusão social: segundo dados de 2004*, 9 em cada 10 especialistas de profissões intelectuais e científicas utilizavam Internet, contra 1 em cada dez trabalhadores não qualificados.

Os próprios Estados advertem de que não haverá uma verdadeira inserção na realidade contemporânea sem uma participação eficiente no mercado do conhecimento. Por isso fico perplexa quando Manuel Castells, autor dos três volumes de A Era da Informação (1996-2004) e de Galáxia Internet (2001), afirma que: «A web não isola e tampouco é instrumento do poder ou do mundo dos negócios. Ao contrário. É um espaço descentralizador e cidadão. A Internet é um fenómeno económico, social e político, mas não é tecnologia que traga uma solução global para os problemas da humanidade nem um sistema que crie desigualdades sociais.»

Sobre os efeitos da web no grau de sociabilidade, continuam a realizar-se estudos, mas não há consenso. Que qualquer determinismo tecnológico seria redutor, concordo. O impacto da Internet tornou-se possível devido a uma série de mudanças sociais que começaram em 1850, com a revolução industrial, e, numa escala temporal mais curta, no pós-guerra. Estou a falar de coisas tão diferentes, mas convergentes no efeito que permitiu a expansão da Internet, como o acesso a bens de consumo de massa, a competitividade em matéria científica (e bélica) entre os dois blocos na Guerra Fria, a cultura libertária dos anos 60 e 70, a crise da família tradicional e o declínio do papel de cooperação que a família tinha, bem como os novos modelos de urbanismo, em prol de um certo culto do individualismo. A Internet estará a criar uma revolução e estaremos no início de uma nova era, mas as condições para essa revolução se operar estavam criadas.

Não é uma solução global para os problemas da humanidade. Mas acentua desigualdades. Pior que isso, apesar da sua influência no sistema socio-político, pela possibilidade que dá ao cidadão comum de expressar descontentamento (político), pela emergência de movimentos sociais criados por comunidades vituais (movimentos "emocionais" porque pretendem formar consciências e não tomar o poder do Estado, ao contrário dos partidos políticos), apesar da proclamada democracidade (ou aproximação ao modelo democrático) (Alain Touraine dizia há anos que não existiam sociedades democráticas ou totalitárias, mas sociedades que aspiravam a um ou a outro modelo), apesar destas múltiplas vozes que visam calar "a voz do dono", nunca o mundo esteve tão desiquilibrado e injusto. (esqueçam o "nunca", ou talvez não).

A verdade é que a par dos avanços (cada vez mais céleres) em termos de progresso tecnológico, científico e até cívico - que nos faz viver envolvidos em redes de comunicação transnacionais, em redes de mobilidade viária e áerea infindáveis, em circuitos de migrações, em países com sistemas de ensino obrigatório e sistemas nacionais de saúde gratuitos, em normas de regulamentação comunitárias e princípios de direitos humanos - a par deste movimento, nunca a incerteza e o medo foram tão grandes e diversos. Falta de trabalho, solidão, depressões, aumento da criminalidade, terrorismo, insegurança, degradação ambiental, miséria e fome, racismo, intolerância religiosa. Castells tem razão, a culpa e a solução não estão na Internet. O nome do papão é outro: capitalismo global. Em 2015, vaticina a ONU, 51 por cento dos pobres do mundo estarão concentrados em África.


Mas como podemos não utilizar essa ferramenta potente, no sentido de diminuir o déficit de justiça no mundo? Como deixar passar em claro que a rede que une pessoas, povos e continentes, e que é contemporânea do turismo em massa, não favorece maior aceitação dos fluxos migratórios, coincidindo a sua expansão, pelo contrário, com o crescimento de nacionalismos extremistas e sentimentos de xenofobia? A Internet pode ou não mudar a nossa visão global do mundo?

A web é, e será cada vez mais, instrumento do poder e do mundo dos negócios. Não me refiro apenas ao desenvolvimento de tecnologias de controle - as de identificação (passwords), as de vigilância (que interceptam mensagens) e as de investigação (elaboração de bases de dados). Dados os apelos à segurança na rede e à vulnerabilidade de cidadãos (e de Estados), estas novas tecnologias que atacam a privacidade dos cidadãos e afectam a liberdade de expressão, são aceites por todos nós com naturalidade. A web é um instrumento do poder porque as propostas educativas reflectem mais tecnologia e menos humanidade. A web é parte da solução global porque é um instrumento potente criado pelo Homem e formatado para o servir. Não existem «não lugares», mesmo se o virtual é real.


* Inquérito à Utilização das Tecnologias da Informação e da Comunicação pela População Portuguesa, Resultados 2004, UMIC, Observatório da Inovação e Conhecimento

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