10.10.08

Suze #3

Dante Gabriel Rossetti
Aspecta Medusa, 1867


Aqui começa a feitiçaria, o encantamento em que essa serpentina bruxa me colheu, polarizando o meu desejo prò seu corpo elástico e felino, como se as suas mãos de pianista me corressem na medula, e os seus olhos de névoa me perdessem em hipnose.
De corpo e espírito era flexível como uma chama ao vento.
Horas e horas, com febre, com riso, com desespero, vasculho na memória, recomponho o complexo encanto dessa rapariga que sabia de cor toda a Comédia Humana; tinha um vício pessoal, erudito, arqui-subtil; cinicamente ingénua, ingenuamente cínica; amoral e heróica, e que caminhava prò seu leito de cocotte com o ar redolente de Desdémona na canção do salgueiro...
Oh! A sua canção do salgueiro, música e versos de Bruant, como eu a trauteio ainda exasperado:

Les ch'veux frisés,
Les seins blasés,
Les reins brisés,
Les pieds usés.

Pierreuses,
Trotteuses,
A's marchent l'soir
Quand il fait noir
Sur le trottoir.


Os cabelos impossíveis, abusivos, excessivos, caíam-lhe nos ombros; a robe empire era ampla e branca, as mangas vibravam em asas de serafim profissional... Era uma aparição de lenda rociada de água Lubin - orvalho caro...
Quando depois mais de perto a detalhei, achei-lhe um não sei quê de transido, de parado, espécie de caquemono, espécie de bebé enorme, enigmático, aflitivo, como só um caricaturista-poeta criaria, num instante de emoção e febre, de quimera e riso. Pobre Suze!
Era pálida, pálida, no seu roupão de noite, sem as rosas do maquillage que ela tão subtilmente esmaecia. Pobre Suze!
Nenhum pintor português, desde o Grão Vasco, viu para além do real como tu viste, nem como tu transfigurou uma máscara de gesso, patinada a lua, numa obra-prima irradiante.
Tu que eu agora vejo como um mármore de desgraça, arrepiado, vestido à toa, sem maillot de seda, sobre uma mesa misérrima de morgue; tu que tens já talvez no ventre aberto o esverdear levíssimo com que a Morte agora te maquilha; tu que, depois de tanto venderes, cada vez eras mais tu e mais perfeita, - ninguém irá junto do teu cadáver pôr-te o colar da Ordem do Desprezo que na vida te deu beleza e estilo.
Foste um génio incompreendido, Suze. É o único ponto de contacto que tiveste com dezenas de idiotas que eu admiro.
Mas não é isto o que me aflige, pois sei bem que se da Morte me ouvisses e se da Morte me falasses, mais uma vez me dirias a tua grande frase, a frase-medalhão, a frase-refrém, que tão sinteticamente define a tua graça, o teu génio, o teu vício, o teu desdém:
- Tu sais, ça c'est un détail.
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

9.10.08

Nobel da Literatura para o escritor francês Jean-Marie Gustave Le Clézio


Jean-Marie Gustave Le Clezio

Yes, yes, no!


[The Prize, 1963]

«O erotismo, já o referi, é, na minha opinião, o desequilíbrio no qual o ser a si próprio se põe em questão, conscientemente. Num certo sentido, o ser perde-se objectivamente, mas nesse caso o sujeito identifica-se com o objecto que se perde. Se for necessário, posso dizer no erotismo: EU perco-me. Não é esta, certamente, uma situação privilegiada, mas o que se não pode negar é que a perda voluntária implicada pelo erotismo é flagrante.»

in O Erotismo, de Georges Bataille
Ed. Antígona, 1988, pp. 27

7.10.08

Suze #2

Dante Gabriel Rossetti
Lady Lilith, 1864-1868


"Acompanhava-a outra que mal vi, fisgado pelo estranho do seu tipo. Toda a noite, ferozmente, a encarcerei no meu binóculo e ela, exibindo atitudes de indiferença numa galeria intérmina, nem sequer teve o ar de ver-me.
Aborrecia-se com complacência, olhando sem fitar, cumprindo com resignação esse destino de, sobre uma plateia do Porto, num barracão de Folies-Brejeiras, esfolhar a carícia exangue e lambedora das suas mãos de raça.
No meu grupo faziam-se hipóteses. Cocotte? Cançonetista? Talvez seja essa que se estreia amanhã.
Todos a achavam imensamente estranha e alguma coisa feia.
Quando à saída ela passou, compondo um ar abstracto e passo ondeante de serpente-fantasma, excitado e burro, disse não sei que frase escória e ouvi, numa voz de seda que range, essa coisa justa: imbécile!
Deixei de ir ao teatro. Achei a vida toda tão imbecil como eu.
Até que uma manhã Just irrompe no meu quarto e preludia felicíssimo: «Foste um doido em não aparecer». Contou então: o empresário F. apresentara-o, e como eram duas e eu continuava incógnito, apresentou por sua vez o conde C., que ao menos não se arranjava mal. - «A tua, a do conde, chama-se Suzanne. A outra, a minha, é Gaby d'Anjou, é perfeita. Não sei se reparaste: um corpo grego. Há uns poucos de dias que isto nem parece o Porto -».
E partiu num turbilhão de chance, dizendo apenas, quase à porta, que a Suzanne era finíssima, e se tolerava o conde é porque não via melhor e porque, enfim, o Amieiro o não vestia mal.
Como, mesmo escrevendo, estou morto por chegar ao quarto dela, direi já que almocámos a sós dias depois, e nem sei mesmo se comi, porque estendia as mãos em concha aos seus pés magros, prós sentir crispar-se com luxúria ao ranger da seda em folha seca...
Foi rápido e simples. O meu amigo apresentou-me: o conde é lorpa, eu sou fino, ela é fina e ... voilá! "
-continua-

«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

6.10.08

Fontes perenais de eloquência #2

DEVORANTE - És üa fonte perenal de eloquência, nunca te acabarão de esgotar.
BRIOBIS - Pois crê-me que não anda aqui um terço de mim.

in Francisco de Sá de Miranda, Os Estrangeiros (1559)

Eleições nos Açores: PS promete «Ilhas com Futuro»


Fotos MRF
2007

Eleições nos Açores: PSD diz que «Melhor é possível»

Ponta Delgada
Fotos MRF
2007

Reabertura do Cineclube

IRINA PALM de SAM GARBARSKI

O filme-sensação da penúltima edição do Festival de Berlim, com uma interpretação magistral da actriz e cantora Marianne Faithfull, é a história invulgar de Maggie, uma mulher desesperada que vai trabalhar para um sex club sob o pseudónimo de Irina Palm com o intuito de pagar os tratamentos médicos do neto. Um filme cru e um retrato intimista tocante mais do que um acto de voyerismo.

Seguem-se "Os Amores de Astrea e Celadon", a última obra do autor de culto Eric Rohmer, "Segredo de um Cuscuz", de Abdellatif Kechiche, multi-premiado e provavelmente o filme mais consensual do ano, e "Um Homem Perdido", da jovem libanesa Danielle Arbid.

4.10.08

Suze #1


Dante Gabriel Rossetti
La Ghirlandata, 1871-1874


"Não posso dormir. Como há mais de oito dias não recebi carta da Suze, e a minha absurda vaidade se recusa a crer que ela me esqueça, ponho-me a pensar, com uma perversidade triste, que tenho escrito loucuras a um cadáver.
Na última contava ela com uma coragem simples, como o mais fútil incidente, que ia entrar prò hospital pra ser operada. Anunciava-me isto, entre um projecto de vestido gris-taupe, que iria bem à sua tinta de viciosa pálida, e uma chuva de detalhes sobre a gata, a amar com romance e com luxúria um gato magro do terceiro andar.
Se tivesse sido operada e convalescesse, já decerto me teria mandado um telegrama.
É pois forçoso convencer-me de que a minha pobre Suze - «era uma vez»...
Repito alto para mim mesmo: está morta, está morta a Suze! Logo que o disse alto, todo o meu comportamento de actor o acreditou, e em todo o meu ser essa auto-sugestão ressoou em dobres, agudamente, por essa rapariga de vinte e três anos com quem vivi dois meses.
A morta (é certo, é positivo que morreu) era alta e magra.
Aqui mesmo, no meu quarto, onde certa noite ela tomou chá entre os meus livros, a vejo atirar o chapéu de rendas caras, em que havia heráldicas tulipas, acender com um gesto fino um dos Laferme, correr a mão na testa com o gesto da Duse nas catástrofes supremas, e dar-me fumo e destino e sonho. Aqui mesmo.
Naquele espelho prolongou com um traço de crayon os olhos vagos, ali apalpou as molas do divã, e no toilette atou horas depois, in memoriam, as fitas de seda azul que lhe prendiam a camisa nas espáduas...
(Mas assim não consigo dizer o que ela foi. Preciso calmar a minha febre e começar pelo começo).

Vi-a a primeira vez este Verão, no teatro, e logo a destaquei.
Os seus cabelos de criança escandinava, loiro cendrado e seda palha em que havia reflexos quase brancos, tufavam na testa sob o chapéu preto, descaíam à esquerda, subiam à direita recortando a têmpora em ogiva, inverosímeis como raios de sol de vício, químicos, absurdos... Só depois me convenci de que eram autênticos.
Os olhos eram claros, cinzento de água em névoa; a máscara alongava-se num focinhito sonâmbulo, nariz incorrecto, quase grosseiro; boca grande, acolhedora, de comissuras em pontos de interrogação; e o mento perdia-se na nuvem de tule de um laço, esparso na gola impecável de um costume tailleur azul.
Tinha muito da Sarah em nova: a cabeça de uma madona quattrocento em que vivesse a alma de Montmartre."
-continua-

«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

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Descubro este escritor português, António Patrício, cuja escrita sofre a influência da estética decadentista do final do século XIX, e decido partilhar com o mundo um dos cinco contos da obra "Serão Inquieto", escritos, como o próprio nome indica, num período nocturno, perturbado, no qual o autor tenta dar um sentido ao real por via da imaginação ou, se quisermos ser mais negros, onde a escrita deixa «fluir» uma loucura. loucura como princípio, loucura-ponte, de um homem-ponte, que não pretende chegar à outra margem.

Começámos hoje a conhecer «Suze». Acho que vale a pena conhecê-la. aos pedaços.