4.10.08

Suze #1


Dante Gabriel Rossetti
La Ghirlandata, 1871-1874


"Não posso dormir. Como há mais de oito dias não recebi carta da Suze, e a minha absurda vaidade se recusa a crer que ela me esqueça, ponho-me a pensar, com uma perversidade triste, que tenho escrito loucuras a um cadáver.
Na última contava ela com uma coragem simples, como o mais fútil incidente, que ia entrar prò hospital pra ser operada. Anunciava-me isto, entre um projecto de vestido gris-taupe, que iria bem à sua tinta de viciosa pálida, e uma chuva de detalhes sobre a gata, a amar com romance e com luxúria um gato magro do terceiro andar.
Se tivesse sido operada e convalescesse, já decerto me teria mandado um telegrama.
É pois forçoso convencer-me de que a minha pobre Suze - «era uma vez»...
Repito alto para mim mesmo: está morta, está morta a Suze! Logo que o disse alto, todo o meu comportamento de actor o acreditou, e em todo o meu ser essa auto-sugestão ressoou em dobres, agudamente, por essa rapariga de vinte e três anos com quem vivi dois meses.
A morta (é certo, é positivo que morreu) era alta e magra.
Aqui mesmo, no meu quarto, onde certa noite ela tomou chá entre os meus livros, a vejo atirar o chapéu de rendas caras, em que havia heráldicas tulipas, acender com um gesto fino um dos Laferme, correr a mão na testa com o gesto da Duse nas catástrofes supremas, e dar-me fumo e destino e sonho. Aqui mesmo.
Naquele espelho prolongou com um traço de crayon os olhos vagos, ali apalpou as molas do divã, e no toilette atou horas depois, in memoriam, as fitas de seda azul que lhe prendiam a camisa nas espáduas...
(Mas assim não consigo dizer o que ela foi. Preciso calmar a minha febre e começar pelo começo).

Vi-a a primeira vez este Verão, no teatro, e logo a destaquei.
Os seus cabelos de criança escandinava, loiro cendrado e seda palha em que havia reflexos quase brancos, tufavam na testa sob o chapéu preto, descaíam à esquerda, subiam à direita recortando a têmpora em ogiva, inverosímeis como raios de sol de vício, químicos, absurdos... Só depois me convenci de que eram autênticos.
Os olhos eram claros, cinzento de água em névoa; a máscara alongava-se num focinhito sonâmbulo, nariz incorrecto, quase grosseiro; boca grande, acolhedora, de comissuras em pontos de interrogação; e o mento perdia-se na nuvem de tule de um laço, esparso na gola impecável de um costume tailleur azul.
Tinha muito da Sarah em nova: a cabeça de uma madona quattrocento em que vivesse a alma de Montmartre."
-continua-

«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

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Descubro este escritor português, António Patrício, cuja escrita sofre a influência da estética decadentista do final do século XIX, e decido partilhar com o mundo um dos cinco contos da obra "Serão Inquieto", escritos, como o próprio nome indica, num período nocturno, perturbado, no qual o autor tenta dar um sentido ao real por via da imaginação ou, se quisermos ser mais negros, onde a escrita deixa «fluir» uma loucura. loucura como princípio, loucura-ponte, de um homem-ponte, que não pretende chegar à outra margem.

Começámos hoje a conhecer «Suze». Acho que vale a pena conhecê-la. aos pedaços.

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