17.1.10

A Vida e Opiniões de Tristam Shandy


Espero que tenham lido Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880) de Machado de Assis. O tom é irónico e sarcástico e, para nosso deleite, Brás Cubas é até capaz de se revelar hostil com o leitor. Foi através das Memórias Póstumas que cheguei a outra obra, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (1759-1767) de Laurence Sterne. A influência é clara. Enredo (aparentemente) sem estrutura, muito humor, diálogos vis e sarcásticos com o leitor, um narrador proposto a oferecer, ao seu ritmo e com as interrupções que considerar necessárias, a sua extraordinária biografia e obra. Está a ser um verdadeiro prazer conhecer Tristam, este nobre cavaleiro do século XVIII. Se tiverem dúvidas, espreitem só os primeiros capítulos:

«Quem me dera que o meu pai, ou a minha mãe, ou ambos, para dizer a verdade, uma vez que ambos estavam de serviço na ocasião, tivessem prestado mais atenção ao que estavam a fazer quando me conceberam; tivessem eles tomado em devida conta o quanto eu dependia daquilo que estavam a fazer; - já que não estava em causa apenas a produção de um Ser racional, mas possivelmente a boa formação e temperatura do seu corpo, talvez até o seu génio e a qualidade do seu espírito; - e, apesar do que pudessem pensar em contrário, mesmo a fortuna da sua casa podia ser determinada pelos humores e disposições que fossem então dominantes: - Tivessem eles tomado tudo isto em devida conta, e procedido em conformidade, - estou verdadeiramente convencido que eu teria feito outra figura no mundo, muito diferente daquela em que o leitor provavelmente me vai ver. - Podeis acreditar, boas almas, que isto não é assim uma coisa tão insignificante como muitos de vós podereis pensar; - já todos vós, atrevo-me a dizê-lo, tereis ouvido falar dos espíritos vitais, de como eles se transfusionam de pai para filho, etc. etc. - e de muitas coisas desse teor: - Pois bem, podeis crer na minha palavra, nove em cada dez partes do senso ou da sandice de um homem, dos seus sucessos e fracassos neste mundo, dependem dos movimentos e actividade daqueles espíritos, e dos diferentes trajectos e calhas que tomam, de tal modo que uma vez postos em marcha, bem ou mal, não é assunto de meia tigela - ei-los que se lançam com estardalhaço num corropio imparável; e ao pisarem e repisarem sempre os mesmos passos, acabam por fazer deles uma estrada, tão plana e direita como um caminho da horta, da qual, uma vez que a ela se hajam acostumado, nem o próprio Diabo por vezes os consegue afastar.

Dizei-me cá, meu amor, disse a minha mãe, não vos esquecestes por acaso de dar corda ao relógio? ---------- Valha-me D___! gritou o meu pai, lançando uma interjeição, mas tendo o cuidado de moderar a voz ao mesmo tempo, --- Onde é que alguma mulher, desde a criação do mundo, interrompeu um homem com pergunta tão disparatada? Perdão, o que estava o vosso pai a dizer? - Nada.

(...) foi no mínimo uma pergunta muito disparatada - porque disseminou e dispersou os espíritos vitais, cuja função era escoltar e ir de mão dada com o HOMUNCULUS*, conduzindo-o são e salvo ao lugar destinado à sua recepção.»


* Homunculus: "Pequeno Homem", isto é, o espermatozóide, que no século XVIII era concebido como um ser humano completo em formato microscópico. O esperma teria a função de transportar o homunculus na concepção. [Nota do tradutor, Manuel Portela]


in Laurence Sterne (1998). A Vida e Opiniões de Tristam Chandy. Lisboa: Antígona. Parte Primeira - Volumes I-IV. pp. 57-59


Imagem: Retrato de Laurence Sterne da autoria de Sir Joshua Reynolds, 1760.

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