Mostrar mensagens com a etiqueta Memórias de uma menina bem comportada. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Memórias de uma menina bem comportada. Mostrar todas as mensagens

26.10.09

Dundo, Memória Colonial, Diana Andringa


«O filme chama-se Dundo, Memória Colonial, mas podia chamar-se "ambivalência". Foi ambivalência que Diana Andringa sentiu ao regressar ao Dundo, onde nasceu em 1947, e que foi o centro de uma das mais importantes companhias coloniais de Angola, a Diamang.
"Era um filme que planava em mim mas que eu tinha medo de fazer", afirma. Porque era "um filme mais pessoal" do que os que faz normalmente, e porque "não tinha a certeza de conseguir encontrar o registo certo" para falar de uma coisa profundamente pessoal: a culpa por ter nascido branca e privilegiada numa terra em que os negros "eram tratados como se não fossem pessoas" precisamente para ela poder continuar a ser privilegiada.
"Fiquei totalmente marcada pelo Dundo", conta. Pela vida idílica da comunidade branca, mas também pela "sensação de ter vivido em criança num mundo de enorme violência latente". Diana queria saber se as suas memórias eram verdadeiras e por isso voltou, acompanhada pela filha, uma testemunha que, sendo de outra geração, não partilha essa culpa. Não é de todo um filme de nostalgia. "Sentia a necessidade de saber como é que as pessoas do Dundo olhavam para nós".
Encontrou pessoas que falavam, elas sim, com alguma nostalgia do tempo dos portugueses. Mostrou-lhes um filme antigo que conseguira encontrar com uma das "coisas mais sinistras" que guardava na memória: o coro de meninos negros a cantar Josézito já te tenho dito. E filmou-os comovidos a ver essas imagens e a balbuciar as palavras da música que guardavam na memória.
Mas, ao mesmo tempo, ouviu-os a falar dos maus tratos, da tortura, das escolas separadas, dos médicos "para brancos", das humilhações, do serem tratados como menos do que um animal doméstico (lembra-se ainda de um bife que o cozinheiro fez para o gato dela e do desabafo dele: ‘a minha filha nunca comeu um bife').
Percebeu que não se tinha enganado a ler os sinais, que, no meio de coisas boas que a Diamang tinha feito pelo Dundo, havia apesar de tudo uma razão para sentir culpa quando olhava para a sua pele branca. E perante tudo isso, uma palavra continua a vir-lhe à cabeça: ambivalência.»

Realizadora:
Nome: Diana (Marina Dias) Andringa.
Nascida a 21.08.1947 em Dundo, Chitato, Lunda, Angola.
Nacionalidade portuguesa.

Espectadora (onde?)(onde?)(onde?) do "filme que eu queria fazer" e que agora "tenho medo" de ver:
Nome: Maria do Rosário (Borges de Sousa) Fardilha de Girardier
Nascida a 07.10.1966 em Dundo, Chitato, Lunda, Angola.
Nacionalidade portuguesa.

24.9.08

À minha professora


No dia 7 de Outubro fará exactamente trinta e seis anos que a conheci. Foi o meu primeiro dia de aulas.

A memória leva-me a percorrer o que me parecia ser um longo corredor escuro, no (então) Colégio Nossa Senhora da Conceição em Espinho. Até à minha sala de aula, de mão dada. Num momento qualquer, olhei para a minha mãe, que caminhava à minha direita, e ela pareceu-me demasiado grande e alheia. Como em regressão, ainda sinto o meu tamanho reduzido, a sua mão apertada, ditadora, o eco dos passos determinados, ruidosos, no corredor, e o pavor de saber que me iria deixar naquele lugar estranho. No ano anterior, em 1971, tinha regressado de Angola, da Lunda Norte, do desterro luxuoso e selvagem do Dundo, e a adaptação ao Puto estava a ser difícil. O país era parco em luz, em cor e em espaço. Não gostava de Portugal. Não gostava de casas sempre fechadas. Não gostava daquele corredor escuro.

Só recordo um dos meus colegas desse primeiro ano. Chamava-se Rui e olhava-me fixamente. A paixão do Rui por mim fez história. A mim, aquela paixão sossegou. Com os mesmos seis anos, um menino conseguiu proteger uma menina com o olhar. Um menino, e uma professora.

A Professora Fernanda Arlette não era pródiga em abraços como, de resto, nenhum professor deveria sê-lo naqueles tempos. Tinha uma postura muito erecta, um ar permanentemente aprumado. Usava um penteado à anos 50, que manteve toda a vida, o cabelo levantado e depois preso num puxo discreto. Era refinada, educada, gentil, um modelo de comportamento. Esta rigidez era apenas quebrada, ou acompanhada, pela sua voz, doce, musical, e por sorrisos afectuosos, sorrisos que eram palmadinhas de ternura. Quando se dirigia a alguém, todo o corpo e gestualidade acompanhavam a intenção. Por isso, quando entrei na sala, soube que ela me tinha visto, que ela era a responsável por mim naquele lugar, que estava feliz por me receber e, também, que ela exigiria a minha participação e obediência. A luta foi brava.

A professora observava-me, silenciosa, a maior parte do tempo. Eu escutava-a, ou não, silenciosa. Queria aprender a ler e absorvia letras e conjuntos de letras com avidez. Cedo, em casa, comecei a pegar no jornal, exibindo saber. Era a minha forma de comunicar que subira um escalão na hierarquia dos seres que dominam o mundo. Os pivots de jornais televisivos eram imperadores. Aquele domínio das palavras e o direito adquirido de as proferir na televisão não me deixavam dúvidas. A minha professora era um mestre, também ela poderia ser imperador.

No final do primeiro ano, a avaliação não perdoou: era boa aluna a português e um desastre em tudo o resto. A aritmética era um quebra-cabeças que me confundia, as aulas de música não pareciam ser coisa para levar a sério, a ginástica era uma violência - e o ginásio era um frigorífico.

«Rosarinho, temos que nos esforçar!», dizia a professora, exasperada. Mas a Rosarinho não percebia, não gostava, não queria, e ficava muda.
Há poucos anos, reencontrei-a. Trinta anos mais tarde, já reformada, a professora Fernanda Arlette mantinha o mesmo penteado e a mesma idade, parecia não ter envelhecido, parecia não ter mudado nada. Lembrava-se do meu silêncio e da batalha que tinha travado para me «soltar» e me despertar para outras matérias que não o português. Como uma gata, andei a segui-la. No segundo ano, ela optou por uma escola pública e fui atrás dela. Na «escola da Tourada» ela conseguiu moldar-me, dar-me a volta, com a disciplina e o método que lhe eram tão caros, e com aquela voz e aquele olhar sempre presente.

Naquele tempo de reguadas, foram poucas as vezes em que a vi erguer o instrumento do suplício mas, uma vez, calhou-me a mim. Passei a aula na brincadeira com uma colega e errei os exercícios de matemática! O castigo foi ficar de pé, de costas para a turma. A reguada foi dada porque, pela janela, assisti a uma senhora tropeçar e cair no recinto da feira, e desatei às gargalhadas. Mas nunca tive, não tenho emenda. Ainda hoje esse tipo de situação me faz rir.

Quanto ao resto, ela conseguiu fazer qualquer coisa, muito, por mim. Quando nos separámos, eu frequentava aulas de ballet e queria ser bailarina, não sabia se preferia História a Geografia, fazia contas complicadas com horas, minutos e segundos, era fã do Festival da Canção, queria que os meus pais me comprassem uma viola e, melhor ainda, tinha muitas amigas. Foi com a Professora Fernanda Arlette que atravessei o 25 de Abril e o período de mudanças que se seguiu. Até 1976 continuámos a cantar o hino nacional no final de cada aula e, uma vez por outra, ela fazia questão de que não esquecêssemos o Pai-Nosso. Tudo misturado com gaivotas que voavam, voavam, asas de vento, coração de mar...

Na escola pública, a minha turma passou a só ter meninas - Estela, Paula Cristina, Maria Cristina, Cristina Barbosa, Ivone, Cecília, Paula Lemos, Paula Leal, Idalina, Cláudia Sofia, Samaritana,... Lembro-me de todas, e da minha professora. Chamava-se Fernanda Arlette. Morreu este mês. Tinha quase oitenta anos, mas parecia não envelhecer.



[Imagem: Escultura de Mónica Oliveira - Memórias - Ferro pintado, resina - 39x29x8,5 cm - 2007]

23.4.08

Cinemas paraíso



Acho que todos tivemos/temos os nossos cinemas-paraíso. O primeiro da minha vida morava em Espinho e chamava-se Cine-Teatro São Pedro. Foi lá que vi Esplendor na Relva, me apaixonei pelo Warren Beatty e senti ciúmes da minha amiga Natália que, pelo nome e pela parecença com Natalie Wood, teria sempre mais chances do que eu na eventualidade - tão real! - de um encontro. Foi também lá que dei um grito terrível, assustada com um primeiro plano repentino de uma serpente em Excalibur. Fiquei com a impressão de que toda a sala se ergueu para ver quem era a histérica. Aos Domingos à tarde, tinha eu 12, 13 anos, eram exibidos filmes indianos, que eu via, chorosa e encantada. Mas também me lembro de cinema brasileiro, nomeadamente Eu te amo, de Arnaldo Jabor, o primeiro filme erótico a que assisti. Como todos se conheciam, e as notícias corriam rápido em Espinho, não me levantei no intervalo para passar o mais despercebida possível. A minha mãe ia saber da minha presença na sala, pela certa!
O Cine-Teatro São Pedro representava para nós o mesmo que o Monumental para os lisboetas, e teve a mesma sorte. Foi destruído, não servindo de nada abaixo-assinados para defesa daquele património. Em sua substituição, construiram um centro comercial medíocre e algumas salas de cinema numa cave (como contrapartida). A perda foi imensa.

O segundo cinema-paraíso da minha vida foi o Quarteto, em Lisboa. A paixão começou nos anos 80, mais precisamente a partir de 1984. Depois, no início dos anos 90 tornei-me vizinha do Quarteto. Passei a ver todas as sessões, independentemente do tipo de filme. Na altura, a curiosidade era imensa e tudo me apetecia, além de que não me faltava tempo disponível. Às sextas à noite, havia dose dupla em cada sala, e lembro-me de correr de sala em sala, com a anuência dos empregados, para compor o meu par preferido. Vi várias centenas de filmes durante anos. Era o único cinema onde se via Godard (andava na universidade ao tempo da polémica que gerou filas para ver
Je vous salue, Marie), Fassbinder (lembro-me perfeitamente da estreia de Querelle), Scorsese (sim, vi lá Touro Enraivecido ou o alucinante After Hours), Coppola (do tempo de Rumble Fish), André Téchiné (que realizou um dos filmes da minha vida, mais um, Ma Saison Preférée), David Lynch (o meu primeiro filme foi Dune e adorei) e tantos outros realizadores. Lembro-me também de fiascos, de filmes de série B, alguns filmes de terror (como se chamava aquele do assassino na sala de cinema que exibia um filme de horror com um assassino que também mata espectadores que estão a ver um filme fantástico de dinossauros que comem pessoas? :)), filmes de que esqueci o nome mas cujo enredo guardo na memória, filmes e filmes, e gente, desconhecidos que começavam o namoro ali ao lado, que falavam alto ou choravam sozinhos, colados a mim, ou cinéfilos conhecidos, como o Paulo Portas (o promissor director do Independente na altura, que ia às sessões da tarde, sozinho) ou o Lauro António (que recordo, com o filho pela mão).

Aquela rua do Quarteto era tão calma e foi também ali a única vez que me assaltaram nos quase vinte anos vividos em Lisboa. Eu e uma amiga a ver os cartazes cá fora, dois sujeitos que nos perguntam as horas, nós sorridentes e eles puxam-nos os colares, quase me arrancando o pescoço, que a moda era usar vários fios de prata cheios de berloques uns por cima dos outros.
Atónitas, deixamo-los fugir, a correr. E depois fomos ao cinema!

O Quarteto, fundado em 1975,
fechou em Novembro, poucos meses antes do seu fundador, Pedro Bandeira Freire, também desaparecer. Talvez a CML venha a classificar o espaço como de interesse cultural da cidade. Mas como se classifica um homem que gera vivências, emoções, gostos, servindo cinema português e do mundo, clássico ou alternativo, a milhares de pessoas durante décadas? Como se agradece?

Eu mando-lhe beijos.


9.1.08

Memórias de uma menina bem-comportada


Nasci no dia 9 de Janeiro de 1908, às quatro horas da manhã, num quarto de móveis lacados a branco que dava para o Bulevar Raspail. Nas fotografias de família, tiradas no Verão seguinte, vêem-se senhoras ainda novas, de vestidos compridos e chapéus emplumados com penas de avestruz, e senhores de palhinhas e panamás, sorrindo para um bebé: são meus pais, meu avô, minhas tias, meus tios e sou eu. Meu pai tinha trinta anos, minha mãe vinte e um, eu era a primeira filha. (...)
Em casa, o menor incidente era alvo de vastos comentários; ouviam de bom grado as minhas histórias, repetiam as minhas graças. Avós, tios, tias, primos, uma família abundante, garantiam a minha importância. Além disso, todo um povo sobrenatural se inclinava para mim com solicitude. Logo que soube andar, a mamã levou-me à igreja; mostrou-me, feitos de cera, de gesso, pintados nas paredes, retratos do Menino Jesus, de Deus, da Virgem, dos anjos, um dos quais, como Louise, se achava especialmente ao meu serviço. O meu céu estrelava-se com miríades de olhos benevolentes. (...)
Protegida, mimada, divertida pela incessante novidade das coisas, era uma menina alegre. No entanto, havia alguma coisa que não batia certo, pois tinha ataques de fúria, atirava-me para o chão, roxa e com convulsões. (...) Berrava tanto e durante tanto tempo que várias vezes no Luxemburgo me tomavam por uma criança mártir. «Pobre pequena», disse-me uma vez uma senhora oferecendo-me um rebuçado. Agradeci-lhe com um pontapé. Este episódio fez rumor; uma tia obesa e com bigode, que escrevia, contou-o na Poupée Modèle. Eu compartilhava da admiração que inspirava a meus pais o papel impresso: através da história que me leu Louise senti-me uma personagem; pouco a pouco, no entanto, comecei a sentir-me envergonhada. «A pobre da Louise chorava às vezes amargamente, lastimando as suas ovelhas», escrevia a minha tia. Louise nunca chorava; não possuía ovelhas e gostava de mim: e como era possível comparar uma menina a umas ovelhas? Suspeitei a partir desse dia que a literatura tem uma relação muito incerta com a verdade.

in Memórias de Uma Menina Bem-Comportada, de Simone de Beauvoir, Círculo de Leitores, Março 1975, pp 7-14


Eu teria uns 12 ou 13 anos quando me apercebi de um livro de capa branco e lettring carregado a negro rosnando 2º SEXO. O livro estava nas estantes mais altas da biblioteca, ao lado de outros que eu suspeitava ou tinha a certeza que eram "proibidos". A vontade de os ler tinha-se instalado há algum tempo atrás. Já conseguira desviar A Felicidade Conjugal de Tolstói, Um Homem e uma Mulher de Burt Hirschfeld e outros tantos, sem olhar a correntes, épocas ou estilos, apenas à sugestão dos títulos. Mas transportar O 2º Sexo (Factos e Mitos; A Experiência Vivida) pela casa, era demais para mim. Foi então que reparei nas Memórias de Uma Menina Bem-Comportada; sendo da mesma autora, o título seria certamente enganoso, e eu esperava enganar com ele toda a família, ou pelo menos disfarçar o meu recente interesse por certos temas. Na altura não tinha nenhuma referência sobre Beauvoir. Foi com essa ignorância e as hormonas aos saltos que comecei a ler este livro fantástico. Devorei-o. O enredo e as reflexões interessavam-me além de que, durante a leitura, não perdi a esperança de que ela fosse mais explícita em matéria de sexo quando chegasse às memórias da adolescência. Anos mais tarde, quando o reli, dei-me conta de que este é um dos melhores livros de memória da infância. Não me surpreendeu o facto de eu-criança me ter projectado na obra. Beauvoir-escritora, torna crível o pensamento da criança-Beauvoir. Só viria ter a mesma sensação com a leitura de O Primeiro Homem de A. Camus.

Das Memórias fixei Zaza, cuja morte me fez chorar imenso. Simone escreve - no último parágrafo do livro - que durante muito tempo pensou que pagara a sua liberdade com a morte da amiga. Nós continuamos a pagar a nossa liberdade, malgré Beauvoir. "A disputa durará enquanto os homens e as mulheres não se reconhecerem como semelhantes".

[Imagem de Simone Beauvoir via]

18.10.07

La double vie de Veronique


Tenho uma amiga que se parece imenso com a Irène Jacob de Krzysztof Kieślowski. Lembro-me do M. aparecer com ela. Fiquei impressionada. Não era possível tanto charme e aquele tipo específico de feminidade, tudo tão vivo. Disse a toda a gente que o M. namorava com a Irène Jacob. Durante bastante tempo mantivemos o contacto, fomos aos casamentos uns dos outros, assistimos ao nascimento das crias, mas depois, devido às distâncias, passámos a ver-nos mais raramente. Recentemente voltei a estar com ela. Ela perdeu o viço. Mantém o charme, uma certa elegância, mas a pele ficou baça, os dentes amareleceram. Ela mirrou. Provavelmente também se deu conta de como os anos passaram por mim. É natural, merda. Mas eu tinha a imagem tão nítida da Irène Jacob. Revi agora, também, o modelo original. No filme de Paul Auster, Irène Jacob é Claire Martin. Irène/Claire, mesmo elevada a musa, também já não é a menina Kieślowski. Os seios que eram pequenos e perfeitos parece que mirraram, a boca deixa agora perceber uma má-oclusão. Pior, a nova Jacob perdeu graça e espontaneidade.

Acho insuportável assistir ao envelhecimento das minhas divas.

[
Aqui, trailer dos filmes de Krzysztof Kieślowski]

20.7.07

Amanhã Demanhã Doce Norte

1. Quando andávamos na universidade, depois de beber uns copos a mais, eu e a minha amiga G. fazíamos muitas vezes um show musical com um alinhamento muito especial. Constava sempre uma canção das Doce, Amanhã Demanhã, que cantávamos com um acentuado sotaque do norte. "Feicha a puorta, apaga as luzis, bem deitar-te a moeu lado/Dá-me um bueijo e o meu deseijo vai ficar acuordado". Ela era de Braga, e as duas, nortenhas (mesmo sem ser de gema), não tínhamos nenhuma dificuldade em dar um tom muito natural à pronúncia. Junto dos lisboetas da Universidade Nova (que por acaso eram poucos) e do Bairro Alto tivémos algum sucesso.

2. Passados vinte anos, não queria acreditar quando comecei a ouvir as minhas filhas cantar esta canção. Esta e outras das Doce, tipo "Uma da manhã, Hei"! As letras não se adequam muito a meninas de 6/7 anos, certo? Mas não havia nada a fazer. A Docemania tinha chegado cá a casa! Surpresa: quando fizeram anos, receberam o CD!

3. Agora que elas estão de férias, há sempre um momento do dia em que Amanhã Demanhã ecoa pela casa. Como elas sabem que esta é "a música da mamã e da madrinha G.", até aumentam o volume!

4. Dei por mim no duche a inventar versões diferentes desta canção. É difícil expressar-vos a emoção da descoberta, mas esta letra dá para tudo! Comecei com um swing: "Fe-cha-a-por-ta apa-ga a luUuUuUuUz". A versão cabaret alemão também fica bem, mas como não posso dançar para vocês, não sei se consigo convencer-vos. Como modinha brasileira é um mimo: "Fêche a porta, apague a luz, vem deitarrr-te a meu ladu". Enfim, demorei um tempão no duche, o que é pouco ecológico, mas saí de lá com a alma lavada. E concluí que a melhor versão é a da balada à Jorge Palma, mesmo se o estilo Madredeus também não fica nada mal. Deixo-vos a letra, decidam.

Fecha a porta, apaga as luzes
Vem deitar-te a meu lado
Dá-me um beijo e o meu desejo
Vai ficar acordado

Vem amor, a noite é uma criança
E depois quem ama por gosto não cansa
Amanhã de manhã

REFRÃO: Vamos acordar e ficar a ouvir
A rádio no ar, a chuva a cair
Eu vou-te abraçar e prender-te então
No corpo que é teu, na cama, no chão
Os nossos lençóis e a colcha de lã
Eu vou-te abraçar amanhã de manhã

Fecha os olhos, esquece o tempo
Nesta noite sem fim
Abre os braços, acende um beijo
Fica dentro de mim

Vem amor, a noite é uma criança
E depois quem ama por gosto não cansa
Amanhã de manhã


5. Saiu o Norte, e eu gosto muito do Jorge Palma.

11.1.07

Quando for grande quero ser...

Este é um TPC atrasado. Ele pediu mas fui deixando passar o tempo porque não sabia o que responder. Agora acabo de ver escritas estas palavras, "a arte do movimento sobre pontas", e decidi. Quero ser bailarina.

Quando eu era pequenina:


Quando eu for grande:


... mas também pode ser assim:

3.10.06

Sagrado & profano

Ana Koudella


Eu lembro-me da primeira vez que pequei. Até aí, portava-me mal, se batesse na minha irmã, por exemplo, ou lhe atirasse com os cubos de madeira dos puzzles infantis. Corria o ano de 1972. Um a um fomos confessar-nos. Estávamos na véspera do dia da Primeira Comunhão. De certeza que o padre me mandou rezar uns Pai-Nossos e duas Avé-Marias, ou o Acto de Contricção Meu Deus Porque Sois Tão Bom. Eu levava a sério o que os adultos me diziam e temia as ameaças, em especial se fossem lançadas por homens imponentes vestidos de batina negra. Nesse mesmo dia, experimentámos também, pela primeira vez, aquela partícula de pão ázimo que se transformaria em hóstia sagrada no Domingo seguinte, na missa a sério. "Ele" disse: quem morder a hóstia ofende o corpo de Cristo e isso é um pecado. E sem querer mordi a hóstia-que-ainda-não-o-era! Lembro-me perfeitamente do pânico que senti, estava condenada, de corar imenso e depois, já a sentir-me muito cobarde, de calar a culpa. Nunca esqueci esse episódio. Adolescente, quando compreendi de quem era o pecado, zanguei-me.

Recentemente, essas recordações voltaram à superfície. As minhas filhas chegaram à idade de frequentar a catequese. Desde há muito tempo que elas assistem curiosas ao rodopio dos miúdos em frente à Sé de Aveiro. Passamos por lá muitas vezes. Ficar a conhecer a vida de Jesus, o menino do presépio de Natal, parece-lhes bem, sobretudo se depois se pode correr e saltar no adro da Igreja. O mistério da catequese aumentou recentemente quando, assistindo a uma cerimónia religiosa, perceberam que só poderiam participar na eucaristia depois de fazerem a Primeira Comunhão. A ideia de poder tomar a hóstia, um dia, com solenidade, como os adultos, compreendendo o sentido do acto, motivou-as imenso.

Talvez possam saber (assim muito rapidamente) que hoje sou mais uma "católica não praticante" (é uma categoria nova, pós-moderna)(parece um novo dado do BI, irremediável, como o local de nascimento ou a altura). No meu caso, isso quer dizer que me foi dada uma educação religiosa católica mas que, actualmente, raramente vou à missa, não me confesso, e não acredito no Deus configurado católico que me foi inculcado. No entanto, quando menos espero, descubro em mim marcas da educação que tive e laivos de religiosidade. Respeito, obviamente, quem é crente, e não me sinto estranha nos lugares do meu culto. Mais, com o tempo, passei a encarar a fé como o mais válido dos anti-depressivos (e não há aqui nenhuma ironia).

Uma coisa é certa: não aceito que, no meu país, a Igreja (as Igrejas) ou os seus representantes, imponham restrições ao conhecimento (num sentido amplo) dos seus seguidores, ou tentem condicionar os comportamentos de natureza secular dos fiéis ou infiéis.

Apesar dos meus pequenos traumas, não me oponho de todo a que as minhas filhas frequentem a catequese. Acho mesmo que esta, bem orientada, pode enriquecê-las.
E, assumindo que as introduzo tão jovens numa comunidade religiosa particular, a minha, a do pai, dos avós, contava comigo e com o meio que as rodeia para relativizar dogmas.

Eis-me pois, cheia de intenções e apreensões, face a um grupo de cinco pessoas que recepcionam as inscrições - sentadas em fila numa espécie de "mesa de voto" - e que organizam o serviço da catequese na Sé de Aveiro. Problema imediato: o horário não é compatível com as actividades escolares. A catequese para os mais pequenos acontece à segunda-feira, às 16h. E não há nada a fazer.

Se existem falta de meios (salas, catequistas), e dizem-me que sim, eu estranho e lamento. Mas o que eu ouvi da parte desta "comissão organizadora" (onde não constava nenhum padre) é digno dos meus tempos de catequese, e não destes!
Este ano as escolas são obrigadas a ter ATL's (que incluiem desporto, inglês, música, etc.), pelo que as crianças saiem às 17h30. Mas, para esta "comissão", os pais não são obrigados a pô-las no ATL. Às 16 horas, as crianças da escola mais próxima têm inglês. Reacção: os pais têm que fazer opções, que decidam o que é mais importante, inglês ou catequese. Face a uma sugestão para alterarem os horários, perguntaram-me se pedi o mesmo à escola (que, por acaso, é uma das maiores do país em número de alunos: são 320). Quando manifestei desagrado face a tanta rigidez, deixaram claro que o serviço é gratuito. Quem não paga, não pode reclamar!

Mas eu reclamo. Os conteúdos das escolas e Igrejas não podem competir entre si. A escola ensina letras e números, humanidades e ciências. A Igreja instrui sobre a vida de Cristo e os ensinamentos dos livros sagrados.
De ambos eu espero que complementem a formação das minhas filhas em termos cívicos.

Para mim, esta conversa na ala paroquial da Sé de Aveiro é uma reprodução (se for optimista serão apenas resquícios) da mentalidade católica saloia em que fui obrigada a crescer. As minhas filhas vão ter que esperar. Não encontrei o ambiente certo para elas, nesta idade em que acreditam em tudo o que os adultos lhes dizem e que levam a sério as ameaças. O pecado vai continuar a morar ao lado.

Outras famílias mais temerosas a Deus sacrificarão o inglês. As suas crianças terão que esperar também.


P.S.: Enquanto escrevia isto fiquei com outra impressão: a de que, para a maior parte das pessoas, será incoerente defender o princípio da laicidade no regulamento das instituições públicas, viver pessoalmente com distanciamento os rituais da Santa Sé e optar por dar uma formação religiosa aos filhos. Mas é isso mesmo que eu faço e parece-me uma escolha válida. E este post é uma reclamação: a suposta liberdade que nos assiste hoje é sempre limitada por uma qualquer (muito antiga) pequena imbecilidade ou desorganização.

16.9.06

Conversa da treta

Desafios são desafios e neste devemos escrever aleatóriamente seis coisas sobre nós, passando depois o testemunho a outros seis bloguistas.

1. Nasci no Dundo e ninguém nasce e abandona o lugar onde nasceu impunemente (quem é que dizia isto?). Quando em 1971 cheguei a Portugal, estranhei o país. Às vezes revivo essa impressão.
2. Por essa altura, lembro-me de que queria muito aprender a ler. Fixei, como uma fotografia, uma imagem em que estou sentada no colo do meu pai enquanto ele lê o jornal, na nossa sala que tinha as paredes verdes, e vou apontando as letras do alfabeto. Mas o que mais me fascinava era a rapidez com que os adultos falavam e a sua capacidade de dizer palavras difíceis sem hesitações. Os pivots dos telejornais eram os meus ídolos. Eles sabiam ler, fixavam tudo, e por isso tinham sido escolhidos para contar a toda a gente o que se passava de importante no mundo. Hoje, enquanto assisto às notícias penso muitas vezes que é só conversa da treta!
3. Entrei para a escola primária no exacto dia em que fiz seis anos mas, desse dia, a única imagem que guardo é a de um longo corredor, escuro, onde os meus passos ecoavam. Tudo o que me rodeava parecia mover-se em câmara lenta. Existem momentos, hoje, em que essa sensação se repete.
4. As minhas filhas, gémeas, têm seis anos, e eu sei que elas não vão esquecer o bruar da sua nova escola com quase trezentos alunos. No primeiro dia, uma delas, não conseguiu largar-me a mão. A outra aguentou o impacto mas, à noite, só queria colo. Eu também.
5. Quando estava grávida das minhas filhas encontrei a minha professora da primária e conversámos imenso. Disse-me que, menina, eu só falava quando tinha a certeza de que estava certa e que olhava para ela como se a contemplasse. Era boa aluna mas mas era difícil comunicar comigo. Hoje, não há nada que me dê mais prazer que conversar. Contudo, dou comigo muitas vezes a ter conversas da treta, pelo que perdi uma boa qualidade. Mas conservo o espanto e ainda há quem se queixe da reserva.
6. Depois de três dias de aulas, as minhas filhas estão mais confiantes. Uma delas, à saída da escola, disse-me que já sabia escrever, porque é isso que ela mais anseia (suspeito que os desenhos que tem feito não satisfaçam a pressa que tem de ser grande). A outra, que eu imaginava igualzinha a mim aos seis anos, surpreendeu-me. Trocando impressões com a sua professora fiquei a saber que, afinal, ela não é nada tímida, mas a alegria que a põe a saltar à minha volta no regresso a casa, diz-me que, lá no fundo, o que ela mais sente é alívio face à avaliação que supunha fosse acontecer quotidianamente na nova escola. Uma coisa é certa, gostaria que guardassem uma memória feliz deste tempo. Sabes, as recordações são uma espécie de claras em castelo. Bem batidas, muito firmes, fazem com que cresçamos bem. As minhas, envolvo em cremes doces, e às vezes sabem bem, outras vezes nem por isso... enfim, conversa da treta!


Passo a palavra aos blogues:
Não compreendo os homens
Não compreendo as mulheres
Farinha Amparo (Didas ou Rosarinho)
Meditassões do Jakim
mEIA vOLTa e...
Voz em Fuga

11.9.06

Sonho de uma noite de fim de Verão

Hoje sonhei com Atico. Era uma adolescente sentada numa sala de aulas, estava perante uma prova escrita de filosofia, e lia a pergunta: "Que filósofos conheceram Atico?"

Ainda sinto a inquietação da aluna que é surpreendida por uma pergunta que não vem no programa. Olho o professor. Ele compreende o meu desconcerto de boa aluna que sabe que vai falhar e de forma amável tenta tranquilizar-me. Diz-me que essa pergunta não está incluida na avaliação. Eu sorrio. Trata-se de um jogo. Lanço-me no desafio, começo a escrever.
Estou convencida de que Atico é um filósofo grego que conheceu Sócrates ou Platão. Depois corrijo, talvez ele seja um pré-socrático. Mas, por causa de um recente jogo de Trivial, em que descobri que Arquimedes inventou o parafuso sem fim, detenho-me no problema da medida do parafuso. Arquimedes acreditava que nada do que existe é tão grande que não possa ser medido. Como se mede um parafuso sem fim?
O tempo passou e a minha folha é um rascunho. Acho importante referir Aristóteles, talvez seja essa a resposta correcta, Aristóteles integra o programa.

Observo o professor. Ele está inclinado sobre a secretária, lê um livro. De repente estende um braço, espreguiça-se, e olha para mim divertido. Deve haver aqui uma ratoeira. Releio a pergunta. Talvez Atico seja um mar ou um lugar.
O tempo passa e começo a ficar ansiosa. Não importa se errar a resposta mas quero compor uma reacção bem pensante, quero impressioná-lo. Volto aos pré-socráticos e decido listar os princípios da existência de todas as coisas, qual seria o arché de Atico?

Ele pôs-se de pé e disse "acabou o tempo". Eu acordei.
Há tanto tempo que não recordava um sonho! Pensei no meu professor de filosofia do liceu, sempre o mesmo em todos os anos, e naquela questão que apareceu num teste. "O homem da rua pergunta - que horas são, o filósofo pergunta - o que é o tempo. Comente."
Não sei se os testes americanos passaram a dominar os exames deste novo tempo. Espero que não. A adolescente tinha razão, havia uma ratoeira no teste do sonho. Atico era mesmo um lugar: uma língua.
E esse meu professor do liceu ensinou-me a gostar de filosofia e de poesia.

Um dia ofereci-lhe uma rosa com um pé enorme. Não me lembro do momento em que apareci com a rosa. Mas na minha memória, ficou para sempre, como a cena de um filme, a imagem de um velho senhor, ligeiramente obeso, a afastar-se de mim com a rosa na mão, numa postura de menino de comunhão em dia de procissão, o pé da flôr a oscilar, e, tenho a certeza, os olhos a conter com esforço umas lágrimas teimosas.

Esta semana as minhas filhas vão entrar para a escola primária, ou, como se diz agora, para o primeiro ano do primeiro ciclo. Se elas tivessem um professor assim, eu dormiria melhor.