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3.10.06

Sagrado & profano

Ana Koudella


Eu lembro-me da primeira vez que pequei. Até aí, portava-me mal, se batesse na minha irmã, por exemplo, ou lhe atirasse com os cubos de madeira dos puzzles infantis. Corria o ano de 1972. Um a um fomos confessar-nos. Estávamos na véspera do dia da Primeira Comunhão. De certeza que o padre me mandou rezar uns Pai-Nossos e duas Avé-Marias, ou o Acto de Contricção Meu Deus Porque Sois Tão Bom. Eu levava a sério o que os adultos me diziam e temia as ameaças, em especial se fossem lançadas por homens imponentes vestidos de batina negra. Nesse mesmo dia, experimentámos também, pela primeira vez, aquela partícula de pão ázimo que se transformaria em hóstia sagrada no Domingo seguinte, na missa a sério. "Ele" disse: quem morder a hóstia ofende o corpo de Cristo e isso é um pecado. E sem querer mordi a hóstia-que-ainda-não-o-era! Lembro-me perfeitamente do pânico que senti, estava condenada, de corar imenso e depois, já a sentir-me muito cobarde, de calar a culpa. Nunca esqueci esse episódio. Adolescente, quando compreendi de quem era o pecado, zanguei-me.

Recentemente, essas recordações voltaram à superfície. As minhas filhas chegaram à idade de frequentar a catequese. Desde há muito tempo que elas assistem curiosas ao rodopio dos miúdos em frente à Sé de Aveiro. Passamos por lá muitas vezes. Ficar a conhecer a vida de Jesus, o menino do presépio de Natal, parece-lhes bem, sobretudo se depois se pode correr e saltar no adro da Igreja. O mistério da catequese aumentou recentemente quando, assistindo a uma cerimónia religiosa, perceberam que só poderiam participar na eucaristia depois de fazerem a Primeira Comunhão. A ideia de poder tomar a hóstia, um dia, com solenidade, como os adultos, compreendendo o sentido do acto, motivou-as imenso.

Talvez possam saber (assim muito rapidamente) que hoje sou mais uma "católica não praticante" (é uma categoria nova, pós-moderna)(parece um novo dado do BI, irremediável, como o local de nascimento ou a altura). No meu caso, isso quer dizer que me foi dada uma educação religiosa católica mas que, actualmente, raramente vou à missa, não me confesso, e não acredito no Deus configurado católico que me foi inculcado. No entanto, quando menos espero, descubro em mim marcas da educação que tive e laivos de religiosidade. Respeito, obviamente, quem é crente, e não me sinto estranha nos lugares do meu culto. Mais, com o tempo, passei a encarar a fé como o mais válido dos anti-depressivos (e não há aqui nenhuma ironia).

Uma coisa é certa: não aceito que, no meu país, a Igreja (as Igrejas) ou os seus representantes, imponham restrições ao conhecimento (num sentido amplo) dos seus seguidores, ou tentem condicionar os comportamentos de natureza secular dos fiéis ou infiéis.

Apesar dos meus pequenos traumas, não me oponho de todo a que as minhas filhas frequentem a catequese. Acho mesmo que esta, bem orientada, pode enriquecê-las.
E, assumindo que as introduzo tão jovens numa comunidade religiosa particular, a minha, a do pai, dos avós, contava comigo e com o meio que as rodeia para relativizar dogmas.

Eis-me pois, cheia de intenções e apreensões, face a um grupo de cinco pessoas que recepcionam as inscrições - sentadas em fila numa espécie de "mesa de voto" - e que organizam o serviço da catequese na Sé de Aveiro. Problema imediato: o horário não é compatível com as actividades escolares. A catequese para os mais pequenos acontece à segunda-feira, às 16h. E não há nada a fazer.

Se existem falta de meios (salas, catequistas), e dizem-me que sim, eu estranho e lamento. Mas o que eu ouvi da parte desta "comissão organizadora" (onde não constava nenhum padre) é digno dos meus tempos de catequese, e não destes!
Este ano as escolas são obrigadas a ter ATL's (que incluiem desporto, inglês, música, etc.), pelo que as crianças saiem às 17h30. Mas, para esta "comissão", os pais não são obrigados a pô-las no ATL. Às 16 horas, as crianças da escola mais próxima têm inglês. Reacção: os pais têm que fazer opções, que decidam o que é mais importante, inglês ou catequese. Face a uma sugestão para alterarem os horários, perguntaram-me se pedi o mesmo à escola (que, por acaso, é uma das maiores do país em número de alunos: são 320). Quando manifestei desagrado face a tanta rigidez, deixaram claro que o serviço é gratuito. Quem não paga, não pode reclamar!

Mas eu reclamo. Os conteúdos das escolas e Igrejas não podem competir entre si. A escola ensina letras e números, humanidades e ciências. A Igreja instrui sobre a vida de Cristo e os ensinamentos dos livros sagrados.
De ambos eu espero que complementem a formação das minhas filhas em termos cívicos.

Para mim, esta conversa na ala paroquial da Sé de Aveiro é uma reprodução (se for optimista serão apenas resquícios) da mentalidade católica saloia em que fui obrigada a crescer. As minhas filhas vão ter que esperar. Não encontrei o ambiente certo para elas, nesta idade em que acreditam em tudo o que os adultos lhes dizem e que levam a sério as ameaças. O pecado vai continuar a morar ao lado.

Outras famílias mais temerosas a Deus sacrificarão o inglês. As suas crianças terão que esperar também.


P.S.: Enquanto escrevia isto fiquei com outra impressão: a de que, para a maior parte das pessoas, será incoerente defender o princípio da laicidade no regulamento das instituições públicas, viver pessoalmente com distanciamento os rituais da Santa Sé e optar por dar uma formação religiosa aos filhos. Mas é isso mesmo que eu faço e parece-me uma escolha válida. E este post é uma reclamação: a suposta liberdade que nos assiste hoje é sempre limitada por uma qualquer (muito antiga) pequena imbecilidade ou desorganização.