10.7.10

cartas de amor


Hoje não vieste. Para dizer a verdade, não dei conta disso até à hora de me deitar. (...) foi quando de facto pensei em ti, não tinhas vindo, não regressaste, prendeu-te a noite ou a luz, não deste conta do caminho. Eu desabituei-me de ti. Não é bem desabituar, foi mais qualquer coisa como ter deixado de esperar e, por distracção, ou por repetição automática do tempo e dos gestos, fechei a porta à chave.
(Carta p. 10)

Aqui a escrever-te de um café com pena de que o papel não reconheça o chá que tomo, a torrada, as vozes à volta, e só te vá encontrar transformada eu numa letra miudinha. (...)
(Carta p. 18)

Agora tenho aqui a tua carta à minha frente e não sei o que hei-de fazer com ela. Mas de que raio é que te foste lembrar - escrever-me, meu Deus, escrever-me uma carta, o que foste tu dizer-me por papel e sem cá estares? (...) de que raio de coisa te foste lembrar, não havias de vir cá buscar o fato do teu irmão? na terça-feira passada, não era? ele há-de estar a precisar dele, o sogro vai desta para melhor não tarda, Deus me perdoe, mas ainda bem que é assim, tanto sofrimento não serve para nada, a morte anda-lhe atrasada, é uma chatice, mas não deve tardar e assim é que deve ser. O que é que terás para me dizer que não tenha também morrido ainda? (...) de ti não sei, nunca tive a certeza, é melhor ficarmos por aqui, hás-de vir buscar o fato do teu irmão, vou guardar a tua carta no bolso do casaco dele.
(Carta pp. 21-22)


in cartas de amor de Luís Mendes

[e malmequeres . facas . amores-perfeitos de Alexandre Sampaio (adaptação ao teatro)][Papiro Editora, 2010]

Imagem: Jean-Sébastien Monzani, The Still Travelers.

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