13.12.09

Temos de criar esse futuro

Mais uma excelente entrevista de Alexandra Lucas Coelho no Ípsilon (10-12-09). Caetano aos 67 anos. A infância da velhice, diz ele. Ouçamos o canto:

«Há algo muito importante no facto de Lula ser pouco ilustrado do ponto de vista formal, no facto dele continuar falando como no ambiente de pessoas, em geral analfabetas, onde ele cresceu. Isso é relevante, e mais ainda do que possamos pensar. Não conheço nenhum caso. Não posso imaginar o que aconteceria na França se um homem que usasse os verbos todos errados em relação aos sujeitos chegasse a se candidatar a presidente, e a ganhar as eleições. Que escândalo não seria na Argentina. Então, o facto de um homem ignorante nas letras e na informação escolar ter-se tornado presidente - e ser um presidente importante, relevante, e sob muitos aspectos bom, embora sob outros muito mau também -, é algo que diz muito sobre o Brasil, sobre a informalidade brasileira, sobre um caso extremo de não-vigência do preconceito linguístico.
Gente!, este homem foi eleito Presidente da República dizendo "as porta", sem fazer o plural, a concordância! Então, os brasileiros são um povo que não demonstrou preconceito quanto a isso. Nem sequer as classes altas o fizeram. Porque se houve quem o comentasse, isso não atrapalhou a eleição, e muito menos atrapalha a aprovação que ele tem, recorde em qualquer época no Brasil, e um dos maiores índices de qualquer presidente em qualquer país do mundo.
O Brasil é muito especial quanto a isso também. Ou seja, eu olho para Lula e vejo um número enorme de coisas de que posso me orgulhar, e são características do Brasil.»

«Uma vez, fiquei uns 20 dias na África, sobretudo na Nigéria e na Costa do Marfim. Nunca tinha estado lá. Passei pelo Senegal, que achei muito bonito, mas em Lagos era terrível.
E conversando com o professor Agostinho [da Silva], dessa segunda vez, eu disse para ele: "Professor, sabe que eu me senti mal na África? Achei que nos dá a sensação de que lá não há futuro. Não há futuro possível. É terrível dizer isso." E ele falou: "Mas é, não há mesmo. Por isso temos de fazer mais fortemente o que fazemos. Temos de criar esse futuro." Acho isso muito bonito.
E a ideia de que Portugal civilizou a Ásia, a África e América e falta civilizar a Europa é muito bonita, porque é muito desabusada, e na contramão do óbvio. Portugal é justamente o país da Europa Ocidental que ficou mais para trás na história.
Mas acontece que o pensamento dele desde sempre foi que terá sido uma benção Portugal ter ficado para trás quando a Inglaterra entrou nesse mundo que o fez como o conhecemos hoje, e a França, e a Alemanha. Ele era muito erudito e muito inteligente, e ao mesmo tempo tinha esse pensamento de que eu gostava muito.»

«Na história que se ensina no Brasil, os professores tendem a ir para a esquerda, e os livros passaram a tender também, e muitas vezes toda a história de Portugal, da descoberta, da colonização brasileira, é apresentada como um mau sucesso. D. João VI seria um sujeito que ainda estava ligado às ideias católicas medievais, seria uma corte que não se modernizou, e isso teria levado para o Brasil um negócio atrasado.
Isso é que o professor Agostinho, e acho que Fernando Pessoa também, viam como uma vantagem, A minha vantagem, e talvez eu me identifique muito com essas pessoas, foi sempre considerar as desvantagens como uma oportunidade.»

«No livro "Verdade Tropical", o momento mais criticado foi eu dizer que o Brasil deveria ser ateu. E criticado com razão. Não há o menor indício de que o Brasil tenha vocação para isso.
Mas o ateísmo filosófico moderno, que tem a ver com a experiência do mundo moderno que vimos vivendo, não pode ser simplesmente negado. Eu não acredito na nova religiosidade, e acho que isso é um problema imenso, que tem de ser transposto. O Brasil tem tarefas imensas, e uma virada grande tem de incluir isso [o ateísmo].»

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