15.7.08

Mesura, grafia

(...)
Comprei um diskman, pus as pilhas, o cravo bem temperado, escolhi uma fuga. É uma tardia modernidade, dilatada adolescência, pressiono esta tecla, play, ouço, atravessando a cidade. Chove, já é noite; as pessoas não saem às lojas, que recolhem os toldos. Em torno dos candeeiros a chuva é uma auréola, mas não é disto que queria falar. Avanço e os meus passos de quatro por quatro. Porque me dou conta: em torno dos piscas dos carros, das vozes que monologam, esta repetição: o quaternário e eu. Torno-me máquina, em cada desenlace da fuga os meus pés tocam no chão, pesam sobre a terra. Obedeço, sou uma máquina de música, inteiramente feliz.

Os meus pés sabem o ritmo da fuga como um relógio: alcançam o mundo numa confirmação absoluta, dança silente (ninguém me ouve). Confirmação: sim. Perdidos no ruído silente, os meus pés, ali, mesuram. O imenso ruído e o meu esquecimento – é preciso não pensar a palavra que se segue, não prever, estar aqui, não temer a chuva, infinito trilo contra o guarda-chuva, a ameaça das pequenas varetas a abrirem o ar. E os meus pés, baixo contínuo, gravíssima entrada do tema na vibração das vísceras. Há o que ouvir sem ouvidos, música que não embate contra os tímpanos, pura potência no som que empurra o sangue. Há o ruído das ruas e a música como um ditame. Eu faço o que não ouço, obedeço sem ordens.

Se entro noutra fuga, o compasso é ternário; então os passos mesuram a mesma cidade com outro assentimento. Não a mesma cidade. Outra: a cidade obedece. Ao fundo, um lixeiro abrigado sob um toldo esquece o tempo batendo com as duas pás no rebordo de um contentor que se equilibra. Bate e o som fere a chuva, sorri com agrura, é o tempo dele, bate para medir o espaço, para ordenar o mundo. Eu passo, não preciso de pôr o volume mais alto no diskman, somos abafados pela mesma chuva, que é também o ruído fantasma desta gravação muito antiga do cravo bem temperado, cada um na sua música, ouço: o mesmo ritmo.

Se atravessares a cidade ouvindo uma fuga em quaternário, os teus passos serão diferentes dos que terias ouvindo uma fuga em ternário. Porque medirias o teu espaço com outro palmo, pois a tua mão tem deveras o tamanho da música que ouvires, e ouvir não é sequer receber a música como recebo a chuva, mas suster este discorrer dos músculos em sintonia com o mundo que chama os teus pés. A terra ainda nos quer, nós somos os desejados – escrevia Benjamin. É para nós esta música.

Por isso não há cidade, mas passeios em que te arrebatam a chuva o sangue o compasso de um apelo inaudível. Aquele que passeia com o diskman recém-comprado, que leva consigo a gravação antiga – passa e não insiste demasiado em pressionar a terra. Está de passagem, apenas não o sabe porque saber seria ainda demasiado violento, palavras seguidas. Para ouvir, basta ser o corpo de música, esta coisa carregando um feixe de cordas estiradas, ferida do ar que atravessa o espaço e crava as pegadas efémeras de uma ordem, esta ordem, depois outra, como quem tacteia o mundo com uma mão a transformar-se em régua, depois lagarta, depois lençol de água.

Porque atravessar assim a cidade é o mesmo que não existir. Avanças, os teus pés obedecem a um adagio, transformas-te em lentidão. Olha como em ti os pés ficaram longe, eco que se adivinha, e no centro só a série de sons, a inflectir para um tom desconhecido a qualquer instante. O que vês e te cerca é uma sombra dessa oferta de sons. Pois não deves ter medo de retirar à tua visão o privilégio de ser real. Real é esta música, e tudo quanto vês depende dela. Era o que eu te dizia: os teus pés batendo contra a terra em quaternário, não a terra em si, que nunca saberás o que é.

Modernidade tardia, ouço bem, prisão e engano dos meus sentidos, esta música que se faz em mim porque tenho os ouvidos perto das fontes electrónicas, estereofonia, para se tecer como um só objecto perene nesse sítio onde me esqueço de ser eu. Diskman desaparecendo para que haja só esta máquina de música em que me tornei, relógio que me constitui me projecta para a gravidade. Não uma cidade que atravesso, mas a cidade que sou, não os passos na rua, mas a repetição rigorosa de um regresso marcando o espaço onde não havia.

Na verdade, a ausência da verdade, esta verdade apenas.

E se o cravista suspende a resolução do compasso, quando as múltiplas linhas se harmonizam em mim, o brevíssimo instante sem respiração transtorna-me como se eu tropeçasse num abismo. Mais perigoso do que os carros regressando desenfreados a casa, para o jantar. Onde a resolução se demora, o espaço distende-se infinitamente, e eu espero a confirmação. Como se a minha vida dependesse desse encontro marcado, e é verdade que depende. A corda vibra enfim e eu toco o chão real, quente, amparado.

Cercam-me vozes, um grupo de pessoas discute um acidente, insta. Circundo e por instantes há uma perturbação no que ouço, imagem turva distendida para todos os lados, imerge de súbito numa neblina. Quero ter consciência de mim outra vez. E outra vez volta a música, e o meu corpo à distância. Sobre as vozes exaltadas, uma ordem refaz-se com suas expirações de sentido. Olho, mas a vibração sobrepõe-se ao mundo, não como uma legenda, sim como o pintor que retoca a fotografia, e diz melhor as cores que ali dormiam. Pois a música não é anterior a esta imagem da cidade – antes a cidade nasce daqui, pelas aberturas que a música deixa no espaço. O mundo obedece, responde submisso às cordas.

Um homem bate com duas pás no tempo da sua vida repetida. Eu sou inteiramente feliz.

Pedro Eiras

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