1.7.08

Poema para pesar maças

Às vezes ainda fecho os olhos, mas já não funciona tão bem.
Outrora, podia pensar numa coisa e fechar os olhos
que de imediato havia uma similitude entre o que pensava
e a imagem que surgia na escuridão. Hoje em dia, nem isso.
Posso, por exemplo, pensar em ti com muita força
e, acto contínuo, cerrar os olhos que me aparece (olha,
quem diria) a motorizada do meu pai.

Mas eu, de olhos abertos, penso mais no teu filho
do que nos cisnes. Uma pessoa nasce e cresce.
Conhece um pai e uma mãe, aprende a falar e a escrever
«mãe» e «pai» e outras palavras mais em idiomas perversos.
Há um dia em que nos deixamos tomar por alguém
pela primeira vez e ocasionalmente a gente
apaixona-se que é o momento da vida em que duvidamos do Newton,
na medida em que verificamos que o centro de gravidade nem sempre
é a Terra: todas as maçãs passam a cair na cabeça da pessoa amada,
esteja ela onde estiver. Viveste tudo isto, ou talvez um pouco mais,
para chegares a uma tarde em que estás sentada na relva
em frente a um lago e olhas para o lado
e vês um rapaz. E eu imagino que, pela primeira vez,
percebes que aquele miúdo (para além de ter todas as maçãs do mundo
a cair-lhe em cima da cabeça) surgiu algures, como quem não quer
a coisa, numa curva mais apertada da tua existência.
Fomos dotados de um poder do qual somos indignos
que é trazer para o mundo um ser apto a detonar
todos os verbos que conjugámos no passado.
Tudo isto é inimaginável e terrível, embora não deixe
de ser belo até à comoção, que é normalmente o nome predicativo
de todos os sujeitos terríveis e distantes.

Lembro-me igualmente de quando te fui ver ao hospital
e recordo ainda com maior exactidão a vontade
que tinha de te ver, pois para mim era óbvio que era outra
a rapariga que estaria ali. Tinhas dado um salto. Pisado um risco.
Nitidamente entrado para outra divisória. Esperava ver-te
transfigurada, na plena posse do teu poder criador,
e não deixava de ter um pouco de medo ao pensar na possibilidade
tão verosímil de não admitires uma presença profana
(inclino agora um pouco o pensamento para os cisnes,
pois era o que me faziam lembrar as enfermeiras ao deslizarem
em silêncio pelos corredores). Entrei no quarto e vi-te.
Estavas bem bonita, sabes. Despojada do teu milagre,
mas bonita. Olhavas para a luz que era a única forma de matéria
que deverias reconhecer naquela altura. Chamei-te pelo nome,
olhaste para o vazio. Estavas cansada e sorriste.

Fecho os olhos e não vejo o teu sorriso. Porém, na
memória, um odor a maçãs e outros cisnes.

João Pedro da Costa,
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