25.7.08

«sem ajuda de varão»

"Na verdade, D. Joana cresceu até aos dezasseis anos, quando partiu para casar, numa corte em que o gosto pelas coisas da cultura, no seu sentido mais lato, ganhara um lugar destacado no conjunto de interesses e da sociabilidade aristocrática da corte castelhana de então.
Em particular, a cultura letrada e o interesse pelas novas correntes italianizantes e ainda as novidades da Flandres merecem o favor de Isabel, a Católica, possuidora de uma notável biblioteca de cerca de quatrocentos volumes reunida ao longo da vida em que, para além do natural destaque e predomínio dos livros de carácter religioso, estavam presentes autores clássicos como Aristóteles, Virgílio, Tito Lívio e Séneca, este último tão amado pela cultura hispânica medieval, mas também modernos, como Boccaccio, igualmente presente nas livrarias de outros reis peninsulares, como na de D. Manuel. Por outro lado, Isabel, a Católica acolhera e protegera destacados humanistas como Lúcio Marineo Sículo, em 1484, e sobretudo o milanês Pedro Mártir de Anglería, chegado a Castela em 1488, trazido por D. Iñigo López de Mendoza, conde de Tendilla, que havia sido embaixador em Roma.
Num outro plano, em que são mais evidentes as preocupações pedagógicas relativas à aquisição de saberes no universo feminino, a rainha D. Isabel solicitou em 1486 ao prestigiado António de Nebrija que elaborasse uma versão da sua gramática latina para que as mulheres pudessem aprender «sem ajuda de varão». Ficou aliás célebre a presença, na corte de Isabel, da erudita Beatriz Galindo, a quem chamavam «la latina», que muito contribuiu para a aprendizagem do latim por parte das damas da corte de Isabel, a Católica, mas também de Juana de Contreras, outra das mulheres desse círculo próximo de Isabel e que se destacaram pela sua grande cultura.
Neste quadro e ambiente, a cuidada educação das infantas suas filhas Joana e Maria foi confiada a um humanista, Alejandro Geraldino, que lhes ensinou latim a partir dos seis anos de idade e lhes deu alguma formação humanística. Dizia Juan Luís Vives, autor de uma das obras centrais da instrução feminina no século XVI, incessantemente traduzida e copiada, De Institutione Feminae Chritianae, que quer Isabel e Joana quer Maria e Catarina respondiam com facilidade em latim a quem nessa língua as interpelava.
Tal não significa que da formação das filhas de Isabel e jovens da mais alta nobreza que integravam a sua corte estivessem ausentes aqueles que eram, por tradição e quase natureza, os saberes próprios da mulher honesta e virtuosa, ainda que fosse filha de reis e de rainhas - saberes que, como já se dizia nas Siete Partidas, também «pertencem a nobres donas». E na verdade, o mesmo Vives, num outro passo da sua obra, referia como Isabel, a Católica quis que as quatro filhas «aprendessem a fiar, coser e bordar com soltura [...]». E, evidentemente, a piedade e a devoção cristãs que, inculcadas pela prática quotidiana e pela participação em ofícios litúrgicos - mesmo quando, no caso vertente, a rainha D. Joana com frequência a eles se furtava -, se completava, nesta alta nobreza de que falamos, tantas vezes a partir da leitura de livros de horas e de devoção, da leitura de episódios de vidas de santos, de sermonários e tratados morais e de edificação, que sabemos que circulavam e faziam parte, se assim o quisermos dizer, de uma religiosidade de feição aristocrática.
Para lá, portanto, de alguma abertura a outros saberes e a alguma erudição que eram também sinal de pertença social, poder, distinção e não indício de verdadeira criação cultural por parte das mulheres da nobreza - a música, os livros, as línguas clássicas, sobretudo o latim, por vezes também o grego-, e de certos comportamentos próprios da sua condição social, a educação das filhas de reis e de grandes senhores partilhava com todas as outras mulheres, no limite, tudo o resto - embora esse resto viesse, naturalmente, a revestir várias e diferentes configurações."

in Buescu, Ana Isabel, Catarina de Áustria Infanta de Tordesilhas - Rainha de Portugal, Edit. A Esfera dos Livros, Novembro de 2007. pp 55, 56 e 57

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