1.7.12

Tinha valido a pena

Não é possível dizer mesmo o que quero dizer!
Mas se uma lanterna mágica mostrasse na tela a imagem dos
nervos:
Tinha valido a pena*


Tinha valido a pena, apesar de tudo. Pela ordem de pulsões e sentimentos desordenados em causa. Falo-vos de um amor, é claro.

Encontrámo-nos numa improvável taberna.
Habitavam-na velhos, galdérias
e miúdos
como nós
atraídos por cheiros fortes, formas feias, ideias complexas, política embaciada___ a nossa ideia de realidade.

Acho que estávamos um pouco cansados de representações porque
logo depois seguiu-se o caixote na cidade, despojado, simples,
tenro
como nós,
que nos abrigou e deixou febris
no amor durante anos,
determinados a calar o desejo e todos os ruídos.




ah os vizinhos se soubessem!

um dia caímos do sofá que era azul quente de veludo, lembras-te?
Sim, há sempre um compasso contenção travão que se acciona antes do fecho da porta do antigo amor, se era amor diz-se.
Mas ele arrepiava-me.
Cortámos os laços com o mundo.

Um dia surpreendi-me. Distraída, olhei para ele enquanto dormia

frágil e feliz.
Guardei-o assim.
tens um sinal pequenino numa pálpebra___ eu não sabia e soprei

Até que, coisa de jovens, começámos a medir desafios.
arrepiavas-me
Demorou muito tempo até sermos engolidos pela mágoa.
As pessoas não acreditam. Acham que os grandes amores são eternos.
Mas não são.
o bébé não nasceu. se tivesse nascido, estaríamos juntos?
uma vez bati-te, olhaste para o espelho e disseste: dói tanto!
Um dia esvaiem-se as pulsões.
Anos depois, os sentimentos cheios.
Mas não é isso que desejo.
tinha valido a pena, apesar de tudo, se hoje te encontrasse
e corresses para mim sem saber porquê
e me abraçasses

e até podias falar do teu trabalho da tua mãe que já morreu da tua irmã que não casou e daquele primo que sempre foi para arquitectura e os meus pais? vão bem, envelhecidos é claro, tenho dois e tu tens filhos?

e depois parares a olhar para mim e eu chorar
Eu quero sentir a pele a alma arrepiada mesmo depois da nossa morte.

Aconteceu assim.
Encontrámo-nos numa improvável fábrica.
Habitavam-na velhos, galdérias
e gente
como nós
habituados a cheiros fortes, formas feias, ideias complexas, política embaciada___ a nossa certeza de realidade.

Tinha valido a pena, apesar de tudo. Pela ordem de sentimentos e pulsões desordenados em causa.
Falo-vos de um amor, é claro, desses que no momento hoje nos precedem,
se cristalizaram sem consciência
e de repente nos acenam.

Acabam e não acabam.

Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semidesertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hotéis baratos de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes "Qual será?"
Vem lá comigo fazer a tal visita.*


Maria do Rosário Fardilha

*T.S. Eliot, A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock
que tu me declamavas

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