18.6.10

José Saramago (1922-2010)


"Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto."

in As Intermitências da Morte (2005)
Editorial Caminho, pp. 158-159

5 comentários:

kimikkal disse...

singela e certeira homenagem, parabéns.

Carlos Pires disse...

Um colega contou-me uma vez que Tolstoi, já muito velho, confessou que por vezes era 'assaltado' pela esperança de que a natureza abrisse uma excepção para ele e não o deixasse morrer. Mas de facto a morte não é intermitente.

Moura Aveirense disse...

Um dos meus livros preferidos de Saramago, de uma ironia desconcertante.

São dias muito, muito tristes. Vai fazer falta.

Rosa dos Ventos disse...

Este também está na minha lista dos preferidos!

Abraço

Claudia Sousa Dias disse...

tenho de comprar mais 4 livros dele para ler durante o próximo ano;

e mais 4 no ano seguinte.


csd