12.10.08

Suze #4

Dante Gabriel Rossetti
Design for Pætus and Arria, 1872
Lápis, 18 x 19 cm

Prà Suze, tudo na vida era um detalhe.
Ela que se deu a saborear a tantos homens, duvido bem que conhecesse um ensaísta, espírito de síntese, à Carlyle, que enquanto eu nesta noite de insónia a recomponho, com uma saudade sem esperança, friamente medite um grosso tomo, que deveria assim chamar-se: - A Filosofia de Suze (livro póstumo).
E em subtítulo, de um chique transcendente: - Ensaio sobre a supramulher. Dir-se-ia no futuro: - isso é um detalhe, como outrora se disse: - penso, logo existo, como hoje se diz: - o homem é uma ponte prò Sobre-humano.
Se Eça de Queirós fosse ainda vivo, eu, que nunca o conheci, havia de apresentar-lhe Suze, e juro, juro, que a acharia bem mais subtil, bem mais complexa e humanamente fascinante que o seu extraordinário figurino - Carlos Fradique, dandy e epistológrafo.
Fialho, mais feliz, pôde falar-lhe; viu gestos que valiam máximas, e ouviu-lhe memórias e anedotas bem mais significativas que parábolas. Mas por mais que insistentemente lho pedisse, nunca escreveu sobre ela; recusou-se.
Não posso eu, como quem empalha uma asa, amortalhar o génio de Suze em frases sábias, articular-lhe em sistema as formas típicas, erguer enfim essa arquitectura metafísica, que ficaria na névoa das idades, como um farol pra sempre...
Não, não posso. Sinto ainda correr-me o corpo todo, em ondas lentas, o afago dos seus cabelos, dos seus dedos, que eram vivos, enervantes como línguas...
E não é assim, a arder de desejo póstumo, que eu posso lançá-la à posteridade... De resto, Suze, que era para ti a posteridade? Um detalhe, um detalhe apenas...
Mas quero afirmar que nessa frase - que nem sequer, pra muitos que a beijaram, foi mais que uma ironia sem estilo - se condensa o estoicismo, o galbo heróico, que fez desta parisiense tão estranha, na sua vida de cocotte nobilíssima, uma neta espiritual de Marco Aurélio.
Foi nobre e foi cocotte. Não estranhem.
Viver, pra uma mulher, na sociedade de hoje, é quase sempre prostituir-se. Mesmo as que casam, e que casando amavam os maridos, quantas vezes não sofrem sem desejo um cio incontinente, numa humilhação de prostitutas, até que toda a emoção se lhes estanque e o hálito lhes embote o corpo e o espírito?...
Depois da primeira fase em que a sede de amor lhes doira a vida, quantas não reconhecem no convívio que o seu ídolo moral é um canalha, e que o amoroso é só o macho sórdido, sem delicadeza, sem ternura - contundente, ferocíssimo, legal...
As outras, são apenas fêmeas broncas presas à canga do lar animalmente, ou semiloucas resignadas que um catolicismo castrador perdeu, ou índoles lunares de amorosas esperecendo de martírio e tédio. E, consciente ou inconscientemente, todas vão afinal prostituir-se. Só a moeda difere: nada mais.
Mas se viver, pra uma mulher, é quase sempre prostituir-se, não o é menos afinal pra um homem.
Prostituir-se é deformar, ou anular mesmo, o que em nós há de individual e caracterizante, pela necessidade de captar alguém, patrão ou mestre, rico ou superior hierárquico, e até mesmo o pobre, que nos dá a ilusão de sermos bons e a consideração hipócrita dos outros.
Cada um de nós, ao entrar na aula ou na oficina, no escritório ou na repartição, no salão ou na taberna, é postiço, é convencional, é um outro; ao princípio confrangidamente, através de mil torturas; depois inconscientemente: mecanizado, deformado, quinquilharia andante e cérebro de lixos, contribuindo assim para esse ideal que nos empala, e os moralistas chamam - solidariedade humana.
Era fácil mostrar como, violentando o temperamento, esta prostituição se repercute até nos gestos, na nossa maneira de andar e de vestir. E, isto em todas as classes, porque ninguém é suficientemente forte pra se bastar a si mesmo; todos precisam da consideração dos outros, da opinião pública, e vão vivendo sob a garra do preconceito, que os desengonça e deforma, que os raquitiza e anula, como os saltimbancos às crianças.
Quantos resistem íntegros ao penitenciário que é a vida de hoje em sociedade? Alguns pelo isolamento; - bem poucos dos que ficam.
Não riam portanto ao ouvir que a Suze, a minha pobre Suze, foi nobre e cocotte. Cocotte, sim. Como nós todos. Porque, em suma, eu sou cocotte, tu és cocotte, ele é cocotte...
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

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