29.8.05

E o livro vai para...







Fazem ideia de como foi um prazer ler estes 26 textos e de como, depois, se tornou tortuoso ter que escolher O melhor texto! Existem textos para todos os gostos, uns mais poéticos, outros "de época", muitos bastante nostálgicos, uns tantos absolutamente originais, outros tantos bem estruturados, a grande maioria muito bem escritos. Alguns textos não respeitaram o mote inicial e por isso foram penalizados. É o caso dos textos 3, 6 e 19 (sem referência ao escritor ou à relação entre o escritor e Helena). Mas porque são textos excelentes, aconselhamos a re-leitura. Enfim, depois de muitas leituras e re-leituras, o júri chegou a um resultado.

A grande maioria dos votantes no Concurso escolheu o texto 18 da Marquesa d'Aires.

O somatório dos pontos (de 1 a 10) atribuídos por cada membro do Júri definiu a seguinte classificação:

1. Texto 2, O sorriso, de Didas (47 pontos)
2. Texto 21, A Helena , de Ivo Cação (46 pontos)
3. Texto 10, Estranhos frutos do vento, de Elisa (45)
3. Texto 12, O Adamastor, de Ivar Corceiro (45)
3. Texto 16, A máquina do tempo, de Maria (45)
3. Texto 18, Com Saudades de Helena, de Marquesa d'Aires (45)
4. Texto 15, O escritor famoso, de bastet (44)
5. Texto 17, Analepse de Verão, de Renato Quintas (41)

Aos nomeados dou os meus sinceros Parabéns mas, dada a qualidade global dos textos, quero deixar uma palavra aos outros autores de textos.

A subjectividade inerente a este tipo de "avaliações" é tão óbvia que as pontuações dos membros do júri não foram de todo coincidentes, e a esse facto se deveu a (ligeira) "descida" de alguns textos na tabela das classificações. São as regras do jogo! Mas como eu gostei dos SMS do Rui, um dos textos mais originais, ou da Helena de grão de pó e da imagem da hora no espelho, do "voyeurismo altruísta" do Ivo Jeremias, da criação dos vários planos da história pelo Palavras em Linha, da fluidez de textos como o do Alfredo C. Silvestre ou das deambulações inteligentes e criativas de Prólogo e de Sísifo! Cada texto merece de facto uma menção e os não referidos agora sê-lo-ão mais tarde.



O nosso prémio será atribuído mais uma vez a dois concorrentes, a Marquesa d'Aires e a Didas.

Minhas Senhoras, vão pensando no livro que gostariam de receber... porque no final de Setembro vai realizar-se a cerimónia de entrega dos prémios. Antes, vamos ver se o escritor continua ou não a passear pela blogosfera...

E agora, Senhores e Senhoras, os textos eleitos:


  • Com Saudades de Helena, de Marquesa d'Aires

E Helena? Não sei o que disse à mãe, que explicações encontrou. A última vez que andámos de baloiço, tinha os olhos pregados no chão e um aperto na voz. O pai, que sofria da febre do sucesso, estava decidido a partir para África e levava a família. A carta de chamada, enviada por um tio de Joanesburgo, pousava sobre o aparador da sala de jantar, prometendo a todos um futuro melhor. Uma máquina de lavar roupa para a mãe, uma bicicleta para o irmão e a colecção completa dos livros da Anita para Helena. A mulher que não esqueci, que me fez desembarcar nesta cidade sitiada, era, aos 10 anos, uma miúda de sonhos simples. E o meu coração sobressalta-se, agora que deixo o aeroporto e avisto, ao longe, os edifícios fantasma do centro. Temo pelas minhas memórias, pela ternura desse primeiro amor. Os anos, e são muitos, podem ter engolido a rapariguinha tímida, de olhos rasgados, cabelos escuros e ondulantes. Quem sabe que rumos tomou, se mudou a cor do cabelo e enfiou nos dedos anéis de ouro. No bolso do casaco, tenho um endereço e um número de telefone. Mendiguei-os à família, a pretexto de uma viagem de trabalho. Não quis saber mais. Helena não regressou quando o medo tomou o espírito dos emigrantes e transformou as ruas em lugares desertos. Por algum motivo, não fugiu, não se escondeu das armas e das balas, cujos ecos se ouvem assim que entro no hotel. Do outro lado, estende-se Alexandra, nome de mulher para um bairro onde convivem todas as sombras que atormentam as pessoas de bem. Roubos, homicídios, violações, SIDA. Aqui, na cama do meu quarto, o conforto impede-me de pensar sobre o destino dos desafortunados. Vim atrás de uma menina de 10 anos que me dava a mão e fugia comigo para o parque, no intervalo maior das aulas. E é essa a imagem que me enche a alma, que me faz tremer os dedos. Não sei que voz me responderá do outro lado. Apenas peço que seja meiga, que guarde alguma lembrança da infância. Sinto que as palavras me fogem quando oiço uma mulher rir-se no fim da linha, como se estivesse à minha espera. Ou é o coração que me engana, a emoção que me atropela a razão. Todos os tons, todas as inflexões, os risos e as gargalhadas da conversa de 10 minutos dançam-me na cabeça. Helena não se esqueceu.
No bar do teu hotel, disse ela, antes de desligar. E cá estou, afundado numa cadeira, com um uísque duplo à frente, incapaz de ouvir a música que se toca no piano. Nem sei quem espero. Uma trintona desleixada, uma mãe de família ou uma rapariga como a que acaba de entrar, de cabelos soltos e andar gracioso. Baixo os olhos para tentar ler algumas linhas do livro que trouxe e convencer-me do pior. Nenhum amor permanece intacto durante 25 anos. Ou se perde o sentimento, ou ganhamos nós barriga, cabelos brancos. Não o escrevi e disse já, vezes sem conta, nos livros e nas entrevistas? O amor é o momento, a circunstância, a disponibilidade. Não as ilusões de um escritor, homem feito e, dizem, bem parecido que, aos 35 anos, decide tirar a limpo uma história de mãos dadas e lanches partilhados. E apesar de todo o sentido prático dos meus romances, sou eu quem espera pelo passado, com o peito agitado e trémulo de um adolescente. Espero um sorriso cheio de covinhas e quase não reparo que, no fundo da sala, a rapariga de cabelos soltos e andar gracioso me acena.
A mulher à minha frente é linda. Tal como prometia ser. Um olhar onde cabe toda a paz do Mundo, um modo de cruzar as pernas que dá vontade de abraços e beijos. Um sorriso com covinhas, uma voz com travo africano. E eu a gaguejar desculpas para a viagem, a falar dos meus livros, do muito tempo que passou. É Helena quem puxa o assunto, quem fala do nosso namoro inocente. Dos cromos que trocámos, dos gelados de um escudo que partilhámos e do teste de matemática que me deu a copiar. Sorri quando conta que, tantos anos no país do râguebi, do críquete e do hóquei em campo, continua a preferir o futebol. Anda, como todo o povo, feliz com o Mundial, acredita numa nova esperança. E, aos poucos, vai revelando a sua vida, os seus dias, a sua paixão. Não é uma família ou um homem que a tem cativa. É a terra. A imensidão do espaço, o pulsar dos dias, a poesia que se extingue a cada pôr-do-sol e o futuro que não existe. Os seus vieram com sonhos de grandeza, Helena chegou com mágoa no coração, sem desejos com preço em rands. A família partiu, depois, assustada com as mudanças políticas. Ela ficou, apaixonada pelo lugar.
Perdido nos olhos de Helena, lembro-me que vim para fazer uma pergunta, para saber que explicações deu à mãe, quando fomos repreendidos por mau comportamento na escola. Desajeitado, conto como disfarcei tudo com um simples «andamos de baloiço». Um largo sorriso nasce-lhe no rosto, sinto um certo embaraço, mas a miúda com quem andei de baloiço aos 10 anos não sabe mentir. Não esconde emoções, não me contará meias verdades. De olhos pregados no chão, um leve rubor no rosto, a mulher que não esqueci responde-me como o fez à mãe, há 25 anos: «disse que eras o meu namorado».


  • O Sorriso, de Didas (Farinha Amparo)
Preciso de me lembrar das nossas tardes no baloiço do parque, do meu vestido vermelho de pintas brancas a esvoaçar e das nuvens lá em cima que se afastavam e aproximavam em movimentos sucessivos. Dos risos que a vertigem me provocava. De ti ao meu lado, silencioso, sorridente e feliz.
Preciso de me lembrar dos recados em forma de poema que me escrevias nas aulas. Ainda os tenho todos, mas é só na memória que os guardo sem pó. Também tenho todos os teus livros, alinhados na estante e todos os dias os abro para que eles não se desabituem de ser manuseados. Tu sempre me disseste que os livros têm que ser manuseados, que não podem ficar só para ali, perdidos na estante.
Preciso de me lembrar do teu sorriso. É importante não esquecer o teu sorriso.
Preciso de me lembrar do dia em que comprámos a nossa primeira mobília a prestações porque não tínhamos dinheiro para a pagar de uma vez, mas estávamos tão felizes! Era a mobília mais cara da loja e nós comprámo-la mesmo sem termos dinheiro. Lembro-me que me disseste - “Agora somos ricos” – e eu ri muito e estava nervosa porque não sabia como íamos pagar aquilo, mas estava feliz. Nesse dia tinha o meu vestido azul, que era novo, e tinha apanhado o cabelo com um elástico.
Preciso de me lembrar da boneca que me ofereceste no meu aniversário. Era exactamente meia-noite quando a tiraste do armário, toda amarrotada porque estava escondida debaixo das malas. Eu estava sentada no sofá e já tinha vestido a camisa de noite, era cor-de-rosa e tinha uma renda branca. Tinha calçadas aquelas meias grossas a que tu achavas sempre piada porque vestia uma camisa de algodão e meias grossas de lã. Ficava mal, eu sei. Mas eu tinha sempre os pés tão frios! Ainda hoje tenho! Compraste a boneca porque achaste que era parecida comigo e eu achei que não, mas não me importei, por causa do teu sorriso.
Preciso de me lembrar do dia em que me pediste para ficar contigo para sempre. Lembro-me de todas as palavras que trocámos e da ordem exacta delas. Lembro-me do teu sorriso. Lembro-me que estávamos sentados num banco do jardim e passou uma criança de mão dada com a mãe. Calámo-nos um bocadinho enquanto eles passavam, para que não nos ouvissem. Só depois é que te disse que sim. E tu sorriste.
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Preferia não me lembrar do dia em que te despediste de mim depois do almoço. Mas lembro. Com todos os pormenores que ainda hoje me fazem doer o peito por dentro. O médico diz que é sistema nervoso. Lembro-me que almoçámos peixe e eu me esqueci de pôr sal mais uma vez. Era péssima na cozinha. Tu voltaste a dizer – “Quando formos mesmo ricos contratamos uma cozinheira” – e riste. Eu fingia sempre que amuava quando dizias isso e dessa vez fingi também. Depois beijaste-me, disseste-me até logo e saíste. Eu levantei a mesa e pensei como era horrível aquela toalha bordada que a minha mãe nos tinha oferecido. Trinta e cinco minutos depois telefonaram-me do hospital e contaram-me do teu acidente. Eu não quis acreditar logo, porque acho que as pessoas nunca acreditam nessas coisas de imediato, demoram aqueles segundos em que o mundo pára. Depois, quando tudo recomeça, algo muito escuro e pesado se abate sobre elas, durante muitos anos. Foi o que aconteceu comigo, sabes?
Agora tenho este teu retrato em cima da mesinha de cabeceira para poder falar contigo todos os dias e recordar-te todas estas coisas, para que tu também não te esqueças e te lembres de mim quando eu chegar. Já não deve demorar muito porque cada vez estou mais fraca e doente. Mas não faz mal.
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Os teus netos brincam muito comigo. Riem-se por eu nunca saber onde pus as chaves, onde arrumei as compras, o que jantei ou que recado me deram para eles ao telefone. Dizem que a Avó Helena está a “bater mal”, é assim que eles dizem. Bater mal. Mas como posso eu perder tempo a lembrar-me dessas coisas se tenho outras muito mais importantes que não posso esquecer? O teu sorriso, por exemplo..."


[amanhã ponho os links todos em falta neste post]

3 comentários:

Anónimo disse...

Foi uma maratona de leitura muito agradável; o problemático foi ter de dar as classificações.
Parabéns a todos os participantes, à Navio de Espelhos e a ti, Rosário.

Beijinho,
Batatas

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Alfredo, os teus textos já geraram fãs. Tens uma escrita despojada e aprecio o elogio à simplicidade que constróis através das opções que "o teu escritor" vai tomando.
E escreves sem mácula :)

Parabéns e Obrigada por todas as tuas formas de participação (reparei que já foste actualizar o blog do Escritor Famoso)

Fica com um grande abraço

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Batatas, OBRIGADA PELA TUA AJUDA. Eu sei que foi mesmo uma maratona mas, como sempre, e como os outros membros do júri, percebi o cuidado que puseste nas tuas "avaliações".

E a tua tabela chegou just in time.

Beijo, amici cagaréu!