9.8.05

A dúvida

Senhor Pêndulo,

Houve momentos em que o odiei, até me quis separar dele mas era um escândalo, etecetera.

É engraçado começar este testemunho assim. Mas acho que devo resistir à imagem de felicidade que nos querem colar. quarenta e cinco anos de vida a dois e depois a sua sincera dedicação, e eu uma espécie de âncora, etecetera, remetem de imediato para um grande amor. Mas a verdade é que já não penso nisso, se é mesmo amor, o que é o amor, etecetera. É certo que nos mimamos de todas as maneiras. Mimamos os gestos um do outro. um dia dei-me conta disso. até o que me irritava nele eu mimo. a resmunguice, os sobressaltos de repente, as unhas dos pés sempre grandes, etecetera. já sou muito como ele é e isso em parte até me desgosta.

Estávamos nós sentados no sofá a ver notícias, concursos, novelas, etecetera, quando o senhor apareceu no talk show a falar da sua mulher e se queria morrer antes ou depois dela. agitámo-nos. ele a olhar para mim com uma lágrima no canto do olho, o que me irritou, e eu a pensar que sem ele, morria. podia lá aguentar o silêncio! mesmo que me enerve aquele feitio que ele tem de quase nunca dizer nada. tens fome? unh... tens frio? unh... vamos dar uma volta? unh..., etecetera. mas morria mesmo. já ele, não sei, tem o coração forte. mas aflige-me que fique sozinho porque ele não sabe tratar de nada, nem tem o hábito de comprar. comida, calças, peúgas, sapatos, etecetera, nada. só jornais.

Foi por isso que lhe disse - primeiro vais tu que eu depois demoro pouco a ir também. Mas ele não quis. e exaltou-se. Que eu era como a mulher daquele senhor - se me percebe, como a sua mulher! que já me custa subir escadas, entrar no banho, baixar-me, e a brincar até falou que temos as mesmas mamas. Disse-lhe logo que só ele para se lembrar disso, porque eu já nem me lembro que as tenho, nem às mamas nem ao rabo nem à barriga, etecetera. ai lembras lembras etecetera. e acabou mal a noite. que me vou deitar que és sempre o mesmo, e que tu também, etecetera.

Agora escrevo-lhe para lhe perguntar uma coisa: amar é cuidar ou a gente acaba por amar a quem nos acostumámos ou amamos agradecidos porque nos aturam ou_____etecetera?


(Resposta ao desafio do Pêndulo, no Relógio parado)

1 comentário:

Rita disse...

Texto tocante.

Dúvida eterna?

Excelente (re)(con)versão do texto original.