1.11.08

Suze (7)

Dante Gabriel Rossetti
Detalhe de Paolo e Francesca da Rimini, 1855


Conheceste príncipes, é certo, mas nem um místico: só mais ou menos imbecis... Não te fossem falar do céu - a ti que tantos viras de platina na boca de gozadores com avaria.
Por isso não tiveste gritos, não te estorceste: nem sei mesmo se choraste.
Posta em teatro, não farias uivar as galerias nessa paródia de circo tão grotesca que é um quinto acto para burgueses e povinho; eras pròs raros apenas como o matoidismo poético da minha terra. Na tua voz de folha seca, dizias de todo o teu calvário apenas isto: é um detalhe.
Mas para mim, Suze, o teu corpo serpentino, que ora começa a decompor-se, o teu génio a fagulhar num incêndio múrmuro de élitros e, sobretudo, o supremo encanto da tua dor heróica, sem desfalecências e sem queixas, para sempre ficarão no meu espírito, como qualquer coisa de belo, de perfeito, pois que correste os bastidores da vida, todo o egoísmo, toda a lama, toda a infâmia, em vítima serena - tão serena como essas que na Grécia iam hirtas de dor entre colunas...
E amaste sempre o sol! E amaste sempre o sol!

Deixa-me lembrar-te: é a última carta que te escrevo. Desta vez serei sincero, porque estás morta, porque a não lerás...
Espera!... As nossas tardes no Rio Doce, em Leça... Os olhos dos mortos ainda reflectem, ainda vêem... Pudesse eu ir arrancar-tos, trazê-los nas mãos com cautela, como dois pássaros mortos, e dar-lhes ainda a beber - pobrezinhos! - sol, mar, areias ruivas, águas correntes...
Pudesse eu beijar-te os olhos mortos!
Chamava-se Sol o nosso barco. Eu levava-o à vara, lentamente. Tiracas o chapéu, estendias-te à popa e nem falavas. De quando em quando, ia colar à tua a minha boca: beijava-te as pálpebras de manso.
Parava sob um chorão, à sombra dos teus cabelos verdes. Cingia-te. Poisava a cabeça nos teus seios, que eram lindos, tersos como de virgem. Todo o teu corpo desfalecia, se humilhava no teu vestido de seda crua como o duma criança adormecida... E era então que eu sentia, que eu palpava, que eu vivia a vida divina do silêncio.
Era mais vago o marulhar da ramaria e fazia mais silêncio, como faz mais silêncio, à noite, o acorde das ondas numa praia...
Sentia-se cair silêncio como se sente cair névoa.
As nossas bocas colavam-se num beijo húmido, calado, de volúpia tristíssima, confrangida. Era como uma despedida sem palavras, muito lenta, de dois suicidas...
Eu não te via os olho, adivinhava-os: estavam maiores, mais nevoentos, como janelas deitando prò silêncio que se cavava em torno, fazendo leito ao nosso pensamento pelo espaço...
E confusamente sentíamos que o tempo passava, passava sempre entre os nossos corpos enlaçados...
Por fim - era à boca da noite - voltávamos.
Devagarinho, dizias tu, devagarinho...
Eu ia levando o Sol na água mortuária, e à nossa passagem partiam sempre, iam partindo, pássaros mal adormecidos nos salgueirais das margens, reflectiam-se no rio em fugas de asas, e era tudo mais triste como se esse voo fosse o adeus de tudo...

-continua-
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«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

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